Caminhando pelo espaço ou Arruando por Penedo

 Tessitura por Bruno Alves


        Quem já fez uma aula ou oficina de teatro sabe que em algum momento vai ouvir o comando: “Caminhando pelo espaço…”. 

        Aprender a caminhar no exercício cênico é um desafio que vai se aperfeiçoando a cada nova tentativa e com a continuidade da prática, mas pausar a prática não quer dizer que o caminho acabou, afinal:

“O Caminho de dentro

É um grande espaço-tempo”

Hilda Hilst

Em Penedo - Alagoas basta caminhar para se encontrar com o imprevisível, mas talvez caminhar não seja a palavra que comporta a dimensão da importância de viver a experiência das ruas, pois arruar seria o termo mais adequado, conforme nos fala SALES (2013, p.69) ao dizer que:

Como bem definem os dicionários, “arruar” designa o ato de vaguear pelas ruas como vadio. Ou, como ensina o escritor Mário Sette, “arruar é apreender o sentido dos vários trechos da cidade, penetrando-lhes a origem e saboreando o acerto de batismo dos bairros, das freguesias , dos logradouros”.

 

        Arruar pelo espaço é buscar compreender as histórias por trás das paredes pintadas ou mofadas. É penetrar mais fundo no movimento das pessoas, dos veículos, do tempo das águas do Rio. É preciso percorrer mais de uma vez os mesmos lugares e perceber o que foi perdido de vista, o que passou despercebido na primeira arruada. É antes de tudo dialogar com o sol, a chuva, o vento e o cansaço das pernas.

        Arruado pelo espaço, cruzando os caminhos, avenidas, becos, ruas e vielas, nos encontramos com o outro que atravessa, somos guiados pela outra que acabou de nos conhecer. Andreza foi uma dessas pessoas que nos olham nos olhos e parecem que já nos conhecem. Ela nos deu a mão e caminhou fazendo um reconhecimento do espaço logo no primeiro dia que chegamos a cidade em junho do ano em vigência. Fez questão de nos contar sobre os lugares, pessoas, gastronomia e a arte e seus artistas. Sim, Andreza nos falou dos artistas que procurávamos e nos falou de outros que nem sabíamos. Em um determinado momento da caminhada olhando a grande avenida em nossa frente, ela sentenciou:

“Até aqui seguimos juntos a mesma via. A partir daqui dois caminhos se abrem, o dos que vão e o dos que voltam”.

Andreza (ao centro) guia Lili (a esquerda) e Jocianny (a direita).

        Partindo do princípio que para voltar é preciso primeiro ir, nós seguimos reconhecendo a cidade e tentando compreender em tão curto espaço de tempo como é ser artista do teatro naquele lugar. E embora possa parecer estranho esse meu questionamento, quero dizer que venho de uma cidade do interior, no meu caso Viçosa, e sei como por lá as coisas funcionavam ou desandavam.  Ser artista de teatro em um interior como o que eu vim, é muitas vezes percorrer caminhos apertados e estreitos e antes que esse texto vire um muro de lamentações, prefiro acreditar nos versos da canção da minha conterrânea May Honorato que ao cantar diz:

... acontece

Que a gente, pele a pele, é como prece

Que a gente, mesmo em solo seco, cresce

E quanto mais se mostra mais parece

        Assim como na Viçosa, a cidade de Penedo é atravessada por um Rio, o Paraíba na primeira e o São Francisco na segunda. São solos molhados, férteis, alagadiços e que transbordam. A água arrasta tudo, a água transforma, renova, dá vida e mata. E se Brecht diz que: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.  Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” não podemos negar o quanto ainda é violenta a falta de abertura, investimento e diálogo com os artistas que vivem em outros eixos para além da capital alagoana e que até na capital não é essas maravilhas todas, a exemplo do tratamento recebido pelos artistas locais nos festejos juninos realizados pela prefeitura de Maceió na última edição. 

        Parece que ser artista é estar sempre tentando caminhar e sobreviver entre gestões públicas na incerteza do que poderá acontecer quando entram ou saem novos agentes públicos que comandarão as pastas da cultura e que muitas vezes não possuem nenhuma relação com a pasta e estão ali por acordos políticos.

        Espaços para se fazer arte em Penedo não faltam. É lá que está o Teatro Sete de Setembro, o mais antigo de Alagoas e concebido pelo mesmo arquiteto do Teatro Deodoro. É nítida a influência do edifício na formação dos artistas locais, mas dependendo da gestão corre o risco de se tornar um lugar de eventos aleatórios e um lugar de difícil acesso aos seus fazedores de teatro local.

        Fora do edifício teatral, arruando pelo espaço, a vida artística também acontece e talvez pulse num lugar de força e resistência. É pensar e reconhecer que fora dos espaços oficiais existem blocos de carnaval de rua, como o Bloco da Raquel que desse ladeiras e atravessa outros caminhos, organizado por Ednilson, conhecido como Chinho Pato, um grande anfitrião e memória viva do seu lugar.

        Caminhos outros que vamos descobrindo com os santeiros e seus ateliês, mercados com artesãos, ou mesmo espaços como um porão de uma rádio onde outro artista vive e cria dividindo o lugar com o mofo e infiltrações. Penedo possui muitos espaços, prédios históricos, biblioteca, lugares com fachadas históricas e coloridas, onde poderiam fervilhar emoções, criação artística e outros caminhos. 

        Caminhos… Arruamos muito por Penedo até chegar ao edifício teatral. Foi o último lugar que chegamos durante essa jornada de descobertas. Propositalmente queríamos respirar a cidade e sentir a vida que pulsa nela, para além da efervescência dos influencers digitais pela qual a cidade se tornou conhecida em todo o Brasil. O espaço do teatro geralmente é ocupado por muitas ações das secretarias diversas da prefeitura. É um espaço aberto ao público com profissionais receptivos e acolhedores. Fomos recepcionados por pessoas comprometidas com aquele lugar. Emmanuel Painho, ator e produtor da cidade, mediou esses encontros. Quando pensamos em uma cidade que tem edifício teatral, pelo menos em minha cabeça vem a impressão de ser uma segunda casa dos artistas de teatro, mas caindo na realidade, sabemos que em nenhum lugar é assim. Depende das gestões, das políticas públicas e dos investimentos e interesses dos gestores de cada lugar.

        Queríamos encontrar os fazedores de teatro da cidade. Penedo possui uma forte tradição teatral. É referência de teatro de grupo e de trabalho em coletividade no nordeste. Na adolescência, quando comecei a fazer teatro em Viçosa, foram eles a minha primeira grande referência fora do meu interior e tive a oportunidade de dialogar com a Cia Penedense de Teatro através de trocas com o Grupo Teatral Riacho do Meio do professor Ronaldo Aureliano.

Encontro com fazedores de teatro de Penedo.

        Mas como sem escolas oficiais de teatro Penedo construiu e constrói uma história bonita com o teatro? A resposta está no fazer, no arruar pelo espaço, no descobrir, no experimentar, no estar aberto ao encontro e as trocas. A/o artista de teatro penedense se forma assistindo o outro, tem como referência e inspiração as pessoas que cresceram assistindo na cidade e que dividem esse mesmo território com eles/elas. É caminhando que chegam em outros lugares e que movimentam o espaço em que vivem.

        A Cia Penedense de Teatro, que pausou temporariamente seus trabalhos devido aos rumos e caminhos da vida de cada artista, ainda é viva na memória de cada cidadão. Andreza logo nos falou da Cia ao pensar em teatro. Foi a Cia quem organizou o Festival de Férias no Teatro que em seguida se tornou o Festival de Teatro de Penedo, um marco e referência na história das nossas artes cênicas. Ela parece nunca ter saído de cena e nas duas vias de caminho que se mostram parecem sempre que estão indo, seguindo, caminhando e preparando o corpo para pegar a via de volta.

        Assim como a Cia, foi preciso que a gente continuasse a caminhar pelo espaço e nesse caminho nos deparamos com paisagens, pessoas, gerações diferentes do teatro que se encontram, a exemplo da Cia Flor do Sertão ou mesmo Priscila Calumbi, frutos de encontros em festivais estudantis e hoje uma das organizadoras do Intercâmbio Teatral Estudantil que está chegando a sua sétima edição e reunindo uma nova geração de artistas do teatro de todas as escolas da cidade. O fazer teatro em Penedo nunca parou e está sempre formando as novas gerações de artistas e plateias.

        Arruando pelo espaço vamos encontrar “Allê, o Santo” e conhecer sua poética que atravessa a música, o teatro e a espetacularidade da quadrilha junina “Chapéu de Palha”... Allê sabe que para seguir caminhando e levando a arte que acredita se tem muitas vezes um caminho desgastante e desestimulador pela frente, mas continuar caminhando é a sua opção, é o chamado e vocação.

Gravação do Podcast no Theatro 7 de Setembro.

        Talvez tenhamos em comum os percalços do caminho e a vontade de continuar caminhando.

        Pelas ruas e avenidas existem os que vão e os que voltam, nos alertou Andreza. O artista de teatro penedense nunca parou, está sempre indo, reinventando as possibilidades de caminhos, construindo novas formas de ser teatro por onde quer que seus pés possam pisar, seja numa escola, num escritório de advocacia, numa usina, dentre tantos outros lugares que a vida vai nos levando a ocupar. 

        Por hora sigo arruando por Penedo na minha memória e pensando na resistência e poesia de Allê, O Santo, Jéssica Oliveira, Anderson França, Emmanuel Silva,  Fernando Arthur, Miranildes, Priscila, Juliana Félix, Ravy Thiago e tantos artistas do teatro de Penedo. Esses encontros nos abrem e fortalecem os caminhos e fazem a gente se apaixonar e acreditar na caminhada.


Referências:

HILST, Hilda. Exercícios. São Paulo: Globo, 2002. p.75.

HONORATO, May.  Música “Acontece”. Maceió: 2022. Plataforma Digital Deezer. Duração: 2m50s

SALES, Francisco Alberto. Arruando para o Forte: roteiro sentimental para a cidade de Penedo. -2.ed. - Penedo: Fundação Casa de Penedo, 2013.

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