Festal 2019: O destino do Sorriso Ignoto



O destino do Sorriso Ignoto

Tessitura Cênica: Jocianny Carvalho



Ô viajante fica se te apraz, parte se é preciso. O que importa é sempre buscar o ignoto. Lula Nogueira



Dentro de uma Maceió existe uma singular cidade, ela merece essa nomenclatura por ser particularmente livre, dentro da sua estrutura organizacional ela tem sua própria atividade cultural, industrial e financeira. O sorriso é custoso, recôndito e apartado. Para conhecer é necessário a vontade, um olhar fraterno e curiosidade. A nossa moeda é a mesma, nossa língua e o valor da passagem de ônibus, mas o significado… Esse é bastante antagônico. Não só se gasta horas para encontrar o local no google maps, como presencialmente se gasta horas para assimilar tudo que esse espaço propõe.


O fato é este: Cidade Sorriso, com uma insolência desmedida, esta que vos escreve pretende ser grata e respeitosa contigo, julgando te conhecer infimamente dentro de sua amplidão. Afora esse encargo tem a questão da escolha, essa eleição por parte da 5ª edição do Festival de Artes Cênicas de Alagoas 2019 que nos provoca enquanto artistas a ir aonde o povo está. E nos inquieta com várias questões: É preciso um palco para ser um artista? O público de Alagoas se reduz a cada dia ou eu reduzo minha arte a um local específico? O quão longe eu posso ir dentro do meu próprio chão? Reconhecendo a bravura, urgência e humanidade da organização do FESTAL, penso falar por toda a classe artística quando digo: Gratidão. Dentro de suas possibilidades reafirmaram o indispensável para ser um artista, o outro. 


A programação do dia foi gradualmente cativando a atenção dos moradores, o Grupo Senzala Capoeira iniciou as apresentações e de forma muito contida nas laterais o povo observava, como quem observa à espreita para criar sua própria opinião sobre o que é visto. Logo na tardezinha veio com sua musicalidade ancestral a contação “História do Lar...de lá” com Toni Edson, os sorrisenses já pensavam em ir para o centro, ainda de forma comedida, alguns recriaram a forma infantil de receber histórias e sentaram diante do palco para ouvir, e cada história trazia uma experiência como a da menina Fanatu, que nos lembra a importância de voltar para casa.


O consentimento foi explícito de vez quando a Companhia Hip Hop começou a relatar o real, e todos os presentes se reuniram, os de fora e os dali e ouviram por um tempo o que aquelas vozes queriam dizer, os dali se reconheceram e os de fora identificaram-se por meio de empatia e foi um momento perdurável. 


“A onda leve não traz a margem. (...) Vai fundo, vê se sobrevive.” - Companhia Hip Hop


O coletivo Afro OGBON com seu ritmo forte e presente acessou o imaginário da criança dentro de nós, e nos convidou sonoramente a participar, de forma muito parecida nos atravessou o Coletivo Afro-Caeté, com uma singela diferença que aquela presença feminina quase total causou ali, o olho que brilhava das que assistiam e o acompanhamento forte da música saindo dessas meninas fez parecer que naquele momento elas tinham voz e vez, sui generis.

Tudo era muito atípico para um viajante, mas o artista precisa necessariamente ser confrontado, e estamos acostumados a sermos confortados. Um lugar muito corajoso escolheu o Coletivo Mambembe com o espetáculo In Progress, que aterrissou bem no meio da enorme euforia. A euforia causa diferentes reações a diferentes tipos de pessoa, ela pode ser tão incontestável que a pessoa não para de sorrir nem um segundo, e ela pode ser tão grandiosa em nós que sentimos necessidade de expulsá-la até mesmo de forma afrontosa. 



O espetáculo contava com uma cenografia bem circense, assim como o figurino e a maquiagem, e tudo girava em volta da caixa e o grande mistério que teria dentro dela. A dinâmica dos três palhaços em cena (Cafifofi, Criatura e Taquarana) é a marca mais significativa, a forma como se conectam com o espectador e com a cena, é de onde surgem os sorrisos mais sinceros. A performance entre os três é tão acalorada, que quando se põem sozinhos em determinadas cenas perde-se um pouco dessa energia, e acabamos procurando os outros com o olhar, e achamos imersos em outra ação. No teatro de rua estamos sempre em cena, por que nunca se sabe de onde vem o olhar, não estamos no nosso espaço cênico confortável, mas no espaço cênico indomável. Certamente foi o espetáculo onde o Coletivo Mambembe mais foi confrontado, e por isso extremamente cheio de ensinamentos, como o nome do espetáculo certamente já demonstra a sabedoria de nunca dar um ponto final, continuem avante! Dentro de sua incontestável impavidez, o coletivo se mostrou feito por artistas.

Todos esses escritos acima, a qualidade
 do encontro e o que reverbera em nós, faz surgir questões: Que tipo de artistas somos se não conhecemos nosso lugar? Se nossa busca não for sempre essa de seguir ao ignoto, somos artistas? Que tipo de vandalismo egocêntrico é esse que fala de mim e não fala de onde estou? Que onda leve é essa que nos transforma em ilhas solitárias em um terreno tantas vezes utilizado que já não é mais fértil? Por que escolho estar na ilha se posso conhecer a cidade? 

A cidade Sorriso expõe toda sua curiosa forma de ser sobrevivente, conta com a existência do Mestre Cabelinho e sua Banda Afro Dendê e se mantém insubordinada diante de um cenário cultural quase que excludente, alcançou o topo e nos dá lição de: Juntar, Criar e Resistir!








ARTISTAS PRESENTES:

Grupo Senzala Capoeira - @capoeira.senzala.alagoas

Toni Edson - @tonidiscipulo

Companhia Hip Hop - @

Coco de Roda Barreiros das Alagoas - @cocoderodaBarreirosdasAlagoas

Coletivo afro OGBON - @ogbonoficial

Coletivo Mambembe - @coletivomambembe

Coletivo Afro-Caeté - @coletivoafrocaete_al

Banda Afro Dendê - @afro_dende_9685

FOTOS: Benita Rodrigues


Aldeia Arapiraca 2019: Chocobrothers (SP)

     Tessitura _ Bruno Alves

     Chocobrothers é um espetáculo circense do grupo homônimo que circula o Brasil pelo projeto Palco Giratório. Tivemos a oportunidade de assisti-lo na tarde do dia 18 de setembro na Escola Pedro Correia das Graças, durante a programação da Aldeia SESC Arapiraca 2019.

     É um show de habilidades circenses que vão de malabares, barra fixa e equilíbrio, composto pelos personagens Jeniffer, James e Brian.


     O circo se instalou na escola. Crianças, adolescentes e funcionários romperam a rotina escolar para vivenciar uma aula diferente. O circo dentro da escola ampliou as possibilidades de diálogo entre artistas e comunidade escolar, trazendo uma troca direta e sincera entre todos que estavam presentes.

    As habilidades dos artistas impressionaram a todas as pessoas presentes. Uma trilha sonora divertida que nos fez rir e vivenciar de perto os anos de 1970.

     O mais legal de Chocobrothers é quando eles brincam com a inabilidade, e isso vai se mostrando com as repetidas tentativas do desastrado James de se equilibrar sobre o cilindro. Rimos do “não conseguir” e isso se torna uma potente metáfora da vida, na qual muitas vezes somos forçados sempre a acertar. O fato de trazer o riso para o “não conseguir” aproxima os artistas de muitos de nós que assistimos. Nos impressionamos com as coisas que são capazes de fazer, mas nos reconhecemos quando brincam de errar, mostrando que pode ser divertido até mesmo o erro.



     Com coreografias bem ensaiadas, é divertido ver como aqueles corpos brincam com tamanha força e nos trazem o reflexo de uma época que aquelas crianças não viveram.

     Um espetáculo que nos entretém e nos faz sorrir da vida. É uma sensação de renovação pelo riso que causa quando assistimos. Fomos ali crianças, todos nós, mergulhados na experiência do circo.

Espetáculo: Chocobrothers 
Chocobrothers (SP)
Fotografias: Frederico Ishikawa
Revisão: Felipe Benicio

Aldeia Arapiraca 2019: A mulher braba - Cia LaCasa (AL)

Tessitura _ Bruno Alves

    No calçadão do comércio da cidade de Arapiraca, assistimos na tarde do dia 19 de setembro ao espetáculo A Mulher Braba, da Cia LaCasa, durante a programação da Aldeia SESC 2019.

     O espetáculo é uma adaptação de Abides Oliveira do texto espanhol de 1335 O moço que casou com a mulher braba, de Don Juan Manuel.

     O espetáculo possui um elenco experiente com a prática da rua, um figurino com cores e camadas visualmente interessantes e uma musicalidade executada ao vivo por Gama Júnior, que traz um tom de suavidade e leveza ao espetáculo.



     Esse elenco conhece a rua e sua necessidade quando o assunto é estar nela para fazer teatro. Sabem improvisar com o espaço e estão abertos a tudo que acontece ao redor para responder sem negar o chamado da rua em nenhum instante. Essa maneira de jogar faz com que nos conectemos rapidamente à história que querem contar. São engraçados, com uma caracterização não convencional ao espaço cotidiano, e possuem essa musicalidade que nos atrai. Embora, nessa apresentação especificamente, o grupo parecia estar um pouco desconectado de si mesmo, deixando o ritmo do espetáculo mais lento, o que pode ter sido ocasionado pelo atraso, devido a problemas técnicos.

     Há de se destacar que o uso de aparatos tecnológicos (no caso o microfone facial), embora sejam grandes aliados do teatro e, principalmente, do teatro de rua, muitas vezes pode causar muito incômodo a quem assiste, principalmente na hora em que cantam e realizam muita movimentação. O que poderia ser um aliado, pode, muitas vezes, atrapalhar se não for bem executado.

    Mas a grande questão do espetáculo ainda está na construção dramatúrgica, especialmente da dramaturgia falada e cantada. A Mulher Braba é uma história de relacionamentos abusivos tanto para os personagens masculinos como para os femininos. É uma história sobre violência, sobre A Mulher Braba ser obrigada a casar e, além disso, casar com alguém que tortura seus animais para tentar exemplificar o que pode acontecer com ela, caso não se amanse.

     O que em 2019 poderia ser uma história sobre protagonismo feminino, como sugere o título, acaba por reforçar estereótipos relacionados à imagem da mulher que é obrigada a casar e tem que se tornar mansa para agradar ao marido.

     A Mulher Braba tem tudo para ser o que ela quiser em 2019, no entanto, mesmo com tentativas de dizer que ela não se amansou, o que vemos é ela cedendo à tortura psicológica do marido, que possui uma tentativa de mostrar que o que ele faz é por conta de um estado de loucura. 


     Outra cena emblemática é quando o noivo da mulher braba diz ao sogro que conseguiu amansá-la e ensina as técnicas de tortura psicológica para que ele faça com a sogra. E quando o sogro tenta reproduzir com a esposa o que aprendeu, ela responde dizendo que é tarde e que ele deveria ter feito isso há trinta anos, quando começaram o casamento. Nesses discursos vemos o quanto é perigoso a reprodução do uso da violência sendo reforçado dentro do teatro e, principalmente, na rua, um espaço onde pessoas das mais distintas histórias e culturas atravessam e são atingidas de alguma maneira por aquela história.

    Termina o espetáculo e nos entristecemos ao ver que ela foi domada, mas, no fundo, a tristeza pode ser por se tratar de uma história em que todos os personagens são abusivos e vivem histórias de desamor.

     Embora a experiência e a técnica teatral do grupo nos conquistem, e saibamos de sua importância para o teatro de rua em Alagoas, somos afetados pelo tempo em que a obra é exposta e pelas vezes em que ela poderia ampliar possibilidades e se limita a, de alguma maneira, alimentar discursos que o teatro tem lutado tanto para superar.

Espetáculo: A Mulher Braba
Cia LaCasa (AL)
Fotografias: Frederico Ishikawa
Revisão: Felipe Benicio

Aldeia Arapiraca 2019: "Os Filhos do Céu e os Corações de Tambor" do Coletivo Heteáçã


Tessitura_Bruno Alves

É bem antes do surgimento da escrita que está o ato de narrar histórias. As histórias que nos são contadas ao longo da vida nos formam, nos ensinam e fortalecem em nós, na maioria dos casos, um sentimento de pertencimento a uma comunidade no mundo. Elas nos revelam e nos mostram a força da palavra na construção de um mundo melhor, mesmo que imaginado. Esse universo possibilita uma viagem para além daquilo que é real e cotidiano, nos levando a entrar em outras possibilidades de ver e sentir o mundo ao redor. As histórias dão sentido a vida, encontram outros sentidos, nos fazem ver as coisas de outras maneiras.

O Coletivo Hetéaçã assume essa tarefa de nos mostrar e nos revelar o mundo através da contação de histórias no seu espetáculo “Os filhos do céu e os corações de tambor” que fez parte da programação da Aldeia Sesc Arapiraca 2019.






Foi num espaço ao ar livre voltado para a discussão e o fomento da preservação da mata ciliar do Rio Perucaba chamado ECOBRISA, no residencial Brisa do Lago em Arapiraca, que o espetáculo aconteceu. 

Não por acaso a curadoria do SESC escolheu esse espaço para a realização da apresentação. Os espaços nos contam histórias. Somente de ver e estar na Ecobrisa percebemos a relação das pessoas com aquele espaço e o quanto as narrativas estão ligadas a ele.

Era um entardecer, com chuviscos e arco-íris, com crianças e adultos ao redor para se reconhecerem nas histórias.

O espetáculo é composto por narrativas da tradição oral africana com músicas originais do grupo. Muita coisa tem mudado no espetáculo ao longo dos anos. Toni Edson, que é também o diretor, e Manu Preta executam a sonoplastia e trilha sonora ao vivo junto com as atrizes e o ator. 

Falar da musicalidade é ressaltar a importância dela e como ela é construída de uma maneira que se torna um elemento fundamental na composição das histórias. Uma experiência enriquecedora e executada de forma sensível e vigorosa, mas que em algum momento nos perguntamos de onde vem aquelas pessoas que cantam e por que elas não adentram mais essa história, como parte dos povos cantantes, contentes e contintas. Seriam de outro povo do mundo das histórias? Estão ali por que são parte de todos eles?

Não há como não se deixar envolver pelas histórias que ali são contadas, muitas vezes por formas diferentes de narrar entre os três contadores. Como pessoas do teatro é comum que ao contarmos histórias a gente se envolva ao ponto de teatralizá-las, mas em alguns momentos parece destoante as formas de narrar entre os contadores. Às vezes existia uma linha mais linear de narração e parece que falta uma maior entrega a brincadeira de contar histórias e fazê-las de forma teatral arriscando-se mais na construção vocal e corporal, pois o espetáculo propõe uma corporeidade muito intensa na construção das histórias e é importante ressaltar a presença do corpo que conta como um dos elementos fundamentais na construção do que vimos.  Não que a linearidade seja ruim, pelo contrário, nos envolvemos de toda maneira, apenas com esse texto tento observar as formas distintas de contar.



O espetáculo possui uma visualidade bastante alinhada, com figurinos, maquiagens e adereços que nos trazem texturas, cores e volumes que encantam pela composição.É um espetáculo feito para encantar nossos ouvidos e olhos. Causa-nos sensações, desperta-nos medos, curiosidades, dentre outros.


Identificamo-nos com os povos que vem de longe, de um lugar talvez além do mundo real, para nos contar histórias. E ao fim queremos ir junto com eles para o mundo dos Cantantes, Contentes ou Contintas.


Espetáculo _ Os filhos do céu e os corações de tambor
Realização _ Coletivo Hetéaçã
Fotos _ Jadir Pereira

Aldeia Arapiraca 2019: Jornada de uma heroína - "Chica Fulô de Mandacaru", da Casa Circo (Amapá)

Tessitura _ Bruno Alves

     A Casa Circo (AP), em sua segunda passagem por Alagoas, pelo Projeto Palco Giratório, apresentou, no dia 20 de setembro de 2019, na programação da Aldeia Sesc Arapiraca, o seu espetáculo Chica Fulô de Mandacaru.

     Chica Fulô de Mandacaru é um espetáculo sobre partida. Uma mulher sertaneja, fugindo de um casamento arranjado, percorre o sertão em busca de um lugar melhor para viver. É através de um Brincante ( Jones Barsou) e personagens mascaradas e a própria Chica (Ana Caroline) que vamos descobrindo, através de uma dramaturgia rica e poética, todo o seu percurso, as causas de sua partida, o crime que foi levada a cometer para escapar da violência contra o seu corpo e sua liberdade.  As lembranças são narradas, as imagens são construídas e as situações vivenciadas. Vamos percorrendo e retomando junto com ela a jornada de saudade e de dor pela partida.



     Quando começa o espetáculo, vemos ser construída uma imagem muito potente de uma mulher nas costas de um homem a dar-lhe punhaladas. Somente no decorrer da dramaturgia é que veremos essa imagem retornar de outro ângulo e dentro de um contexto.

     O personagem Brincante, que, com sua rabeca, nos introduz a história de Chica e seguirá narrando ao longo do caminho, nos pega de cara pela sua sonoridade e naturalidade fascinantes. Jones é um Brincante que, ao contar a história, envolve a plateia e consegue entrar em sua frequência, seja esta plateia um idoso quieto ou uma criança inquieta. Sua presença cênica nos leva junto com ele pelos caminhos da narrativa.

     Ana nos conta com seu corpo sobre Chica. É interessante observar na construção da personagem como ela não beira os estereótipos e segue um caminho de um corpo que possui formas e força nos movimentos. Sabemos que Ana percorreu, em sua trajetória, o balé clássico e agora vivencia a dança contemporânea. Vemos traços dessa trajetória na construção de Chica. Um corpo muitas vezes destoante do Brincante, mas que pode ser bastante interessante nessa narrativa. Um fato importante de se observar na construção é o como Ana é capaz de desconstruir esse corpo e se assumir uma Brincante toda vez que ela faz uso das máscaras. Seu corpo foge dos códigos de dança e acessa outros estados, nos conectando ao universo popular.



     Com uma dramaturgia poética, Chica Fulô de Mandacaru nos faz percorrer um universo popular com bastante ressignificação, pois, nessa história, Chica é uma sonhadora e, ao mesmo tempo, revolucionária ao ir de encontro à cultura de opressão feminina de seu tempo.

     Uma das cenas mais impactantes, e bem humorada, é aquela em que Chica foge de seu abusador dando-lhe golpes de facada e, num número acrobático misturado a xingamentos populares, eles reconstroem a imagem do começo do espetáculo com potência, humor e poesia.



     Chica é também um espetáculo que fala sobre sair do seu lugar para se reencontrar no mundo. Chica foge de um casamento arranjado, mas foge também de muitos estereótipos e preconceitos presentes na história de muitas mulheres. Foge para se perder no mundo ou como diz o espetáculo, "Chica ganhou o mundo e o mundo ganhou Chica".

     Não podemos esquecer da iluminação do espetáculo que narra essa história junto com esses personagens e as músicas que são de uma particularidade capaz de tocar com profundidade as nossas memórias. Quando Chica, em sua jornada de heroína, canta a saudade do colo de sua mãe, é a nossa saudade que ela canta.

 Espetáculo: "Chica Fulô de Mandacaru"
 Cia Casa Circo (Amapá)
Fotografias: Tarcísio Ferreira
Revisão: Felipe Benicio

Aldeia Arapiraca 2019: A corpa de Joana - “Mamilos”, da Coletiva Corpatômica (AL)

Tessitura _ Bruno Alves

     Tinha quatorze anos, ela, quando na rua descobriu que ter uma corpa poderia ser um crime. Alguém puxou-a pelos cabelos, olhou em seus olhos e falou que desejava que ela caísse em sua cama. Alguém, um homem.

     Joana descobriu ali, naquele fato, que uma menina com uma corpa na rua, querendo apenas passar e seguir seu caminho, estaria sempre em risco.

     “Nunca esqueci o que ele me disse. Fez me sentir violentada na rua”, ela nos contou.

     Passaram-se anos. Joana cresceu, mas a memória do assédio que sofreu percorre vez ou outra a sua mente.

     Mamilos poderia ser somente sobre os seios de uma mulher, mas é sobre uma corpa inteira.



       Essas mulheres voltam à cena e se mostram por inteira. Revelam-se e continuam a nos revelar.

    Não somente um espetáculo. Mamilos percorre uma jornada e agora entende-se como uma denúncia e como performance e dança também. 

     Uma dança que se propõe a dançar a honestidade de se sentir vulnerável e em risco constante a todas as horas. Uma dança que existe por que a corpa já não quer ser controlada e violentada. Agora a dor se transforma em códigos e símbolos.

     Descodificam o medo e a opressão.

     Mamilos poderia ser sobre Maria, Yolanda (que tem encontrado sua dança e se mostrado cada dia mais verdadeira e inteira) e Mirela, mas é sobre todas as corpas, as de ontem, as de hoje e as que virão. Poderia ser somente sobre elas, mas é sobre suas mães e sobre as nossas mães também.

     É interessante observar como um homem enxerga a denúncia de Mamilos de uma forma diferente. Enxergam a corpa muitas vezes tentando desconstruir uma ideia de fetiche, porque passam a enxergar a dor mesmo quando molham de sangue aquelas corpas ali presentes.



     Uma mulher verá Mamilos de uma outra forma. Não só verá a dor, mas voltará a sentir a dor, essa companheira tão íntima que só elas conseguem sentir. E quando se derrama o sangue sobre as que denunciam, é o sangue delas ali que também se derrama.

     Mamilos, que se apresentou na Aldeia Arapiraca 2019, segue cada dia mais forte, coerente em seus discursos, dramaturgicamente provocante, silenciosamente denunciante, corporalmente violento para nos mostrar o que fazemos, o que sabemos e aquilo que ainda precisamos fazer na construção de uma sociedade igualitária.

     Não à toa Joana, ali na plateia, se reconheceu.

     Era sobre Joana aquela noite.

     Sobre elas, sobre todas elas.


Mamilos
Coletiva Corpatômica 
Fotografias: Frederico Ishikawa
Revisão: Felipe Benicio

Aldeia Arapiraca 2019: MAMILOS, OLHARES E VOZES - Coletiva Corpatômica (AL)

Tessitura _ Felipe Benicio*

     Mamilos, da Coletiva Corpatômica (AL), foi o espetáculo ao qual o público presente no Teatro Hermeto Pascoal assistiu no segundo dia da mostra Aldeia Arapiraca. Mas eu também poderia dizer que Mamilos foi um experimento social, realizado pelas artistas da Corpatômica, ao qual, nós, o público, fomos submetidos/as. Ou ainda que Mamilos foi uma experiência artística coletiva construída pelas artistas e pelo público. 

       Mas Mamilos foi tudo isso e nada disso.  

     Partindo de inquietações das integrantes da Corpatômica no que se refere às pressões sociais marcadamente machistas de controle sobre o corpo feminino, Mamilos ocupa um lugar de hibridez entre a performance e a dança, e sua dramaturgia é uma incursão profunda no universo do poético e do simbólico. 



     O poético, em oposição ao prosaico, é aquilo que nos tira da nossa zona de conforto, que nos desautomatiza, que nos obriga a lançar um olhar renovado às coisas mais cotidianas. No espetáculo da Corpatômica, isso já está presente desde o momento em que entramos no teatro, uma vez que todo o público fica no palco, ou seja, é deslocado de seu local habitual de contemplação; e, no palco, as cadeiras estão dispostas de maneira não linear, criando um pequeno labirinto no centro do espaço cênico. 

     Uma vez em cena, sentadas em meio às pessoas, seria quase impossível distinguir as integrantes da Corpatômica da plateia. Então, um blecaute. Quando a luz inunda o palco novamente, as três artistas estão vestindo apenas shorts vermelhos e nada mais. E ali estão os “mamilos” do título. 

     Creio ser possível dividir o espetáculo em três momentos: no início, as performers ficam sentadas e observam a plateia, olhando, fixamente, uma pessoa por vez. No segundo momento, em que predominam as ações dos corpos, elas, primeiramente, correm pelo espaço; depois, performam três solos simultâneos. Por fim, cada uma delas pede para um homem da plateia “molhá-las”, entregando a eles garrafas de vidro que contêm um líquido vermelho. 

     A sequência inicial de Mamilos é de uma quase inércia: sentadas, os seios à mostra, as três mulheres em cena apenas observam as pessoas, numa cena em que o tempo é bastante dilatado, fazendo nascer uma rede de olhares cruzados, como uma grande teia invisível na qual eu, embora fosse a aranha, me via mosca. Embora as performers estivessem sentadas de maneira bastante confortável, parecendo até, em alguns momentos, como se posassem para um retrato de John William, eu via no olhar delas um ar de desafio, como se fosse uma espécie de vingança antiescopofílica: aqui estão nossos corpos, à mostra, mas somos nós quem observamos vocês. Não que essa minha leitura tenha caído por terra, mas, posteriormente, ainda naquela noite, eu veria a mesma cena com os olhos de outra pessoa. 

     Os dois últimos momentos são aqueles em que mais predomina o simbólico. A dança contemporânea, liberta das amarras da representação e da narrativa, enveredou por uma perspectiva de arte não mimética, em que os movimentos do corpo não são tributários de um conteúdo que se encontra fora do universo particular de cada obra, nem precisam ser orquestrados de maneira a contar uma história. Em muitos casos, os movimentos dos corpos, por si, nada dizem, adquirindo sentido apenas dentro (e a partir) do microcosmo criado pela obra.  


     No segundo momento de Mamilos, embora cada uma das mulheres em cena construa um solo a partir de movimentos distintos (ou seja, na contramão de uma coreografia), esses três segmentos simultâneos gravitam em torno de alguns elementos em comum: é como se uma força aprisionasse os corpos delas ao chão, e a tentativa de levantar-se e colocar-se sobre duas pernas é o que parece reger os movimentos. Observadas de maneira isolada, essas ações corpóreas poderiam significar muitas coisas — desde uma luta interna, consigo mesma, passando por questões de autoaceitação, até conflitos externos, seja com a sociedade ou com questões de ordem metafísica. 

     Mas uma obra não existe senão enquanto conjunto, e, em Mamilos, assim como na montagem cinematográfica, o plano seguinte (neste caso, o momento seguinte) é o que confere significado ao anterior. Na última parte do espetáculo, quando três homens da plateia cobrem de uma substância vermelha (que, simbolicamente, remete ao sangue) os corpos das performers em cena, é como se fosse entregue ao público a chave de leitura necessária para penetrar as aparentemente abstratas camadas que compõem a obra: o que está em jogo ali é a violência contra as mulheres, e aquela força que aprisiona os corpos ao chão de maneira tão agressiva parece ganhar um contorno mais nítido quando associada ao machismo.  


Durante o bate-papo, após a apresentação, ao compartilharmos nossa experiência enquanto plateia, sobretudo no que se refere à cena de inicial, descobrimos que homens e mulheres presentes tiveram leituras totalmente distintas a respeito do fragmento de abertura de Mamilos: o mesmo olhar que eu lera como desafiador foi interpretado como um olhar de dor por parte de algumas mulheres. E foi nesse momento que eu compreendi a dimensão do espetáculo para além do artístico — como uma espécie de experimento, que mostrava, na prática, como um mesmo dado (neste caso, uma mesma cena) pode gerar leituras distintas a depender de quem observa. 

     Como disse uma das integrantes da Coletiva: “Isto é uma denúncia, não um espetáculo”. E, nesse sentido, há que se reconhecer o grau de ousadia do grupo ao escolher como veículo para a sua denúncia uma dramaturgia que aposta em uma linguagem mais indireta, enviesada, que estará sempre exposta ao risco de soar hermética ou de ter seu sentido sequestrado por leituras descontextualizadas. Mas um aspecto positivo dessa escolha é que, ao abrir mão de um texto e até mesmo de uma trilha sonora, o grupo acaba evitando o didatismo excessivo e, por vezes, redundante de algumas produções artísticas contemporâneas que também trazem pautas marcadamente políticas para a cena.  

Por conta disso, acredito que o bate-papo após a apresentação deve ser considerado como parte do espetáculo (um quarto momento), pela sua força e importância, pois foi nesse momento em que vieram à tona inúmeras questões, relatos e leituras, ora conflitantes, ora confluentes. No entanto, fiquei profundamente curioso para saber qual seria a postura do público em relação à obra em um debate em que as artistas não fossem as primeiras a falar (o que, inevitavelmente, acaba predefinindo alguns caminhos para as indagações da plateia). Por ora, independente disso, tenho a sensação de que Mamilos foi uma experiência que continua a dilatar-se dentro de nós, como um vírus que se prolifera ou como uma semente germinando muito, muito lentamente.  

     Então, eu poderia dizer que, às 22h, fomos embora do Teatro Hermeto Pascoal. Mas, dentro de nós, Mamilos ainda não acabou. 

* Felipe Benicio é poeta, ficcionista e doutorando em Estudos Literários (Ufal). É também membro dos conselhos editoriais da Revista Fantástika 451 (SP) e da revista do Coletivo Volante de Teatro, #Textão (AL).

Mamilos
Coletiva Corpatômica 
Fotografias: Frederico Ishikawa


“Estendam ás mãos já! - Narrativas Individuais para Construções Coletivas”

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