CRÍTICA: "Se eu fosse Iracema": Sentir tem que ser ação

Tessitura _ Lili Lucca

Se eu fosse Iracema, espetáculo do 1COMUM Coletivo do Rio de Janeiro, passou por Maceió, na mostra Aldeia Sesc Palco Giratório, propõe um olhar sobre o universo indígena brasileiro, transitando entre a tradição e a sua situação atual, e questiona: qual a real possibilidade de convivência entre as diferenças? 



Como um raio de sol que surge, a luz corta a cena e um olhar. A imagem de um ver que compõem a imensa escuridão, dali somos apreendidos pela atriz Adassa Martins. Sobre um tronco de árvore, com botas e saia de “plástico” e um colar foice de metal/aço a cena é desenhada, e ela se reconstrói durante a encenação juntamente com a iluminação, desenvolvendo espaços e trazendo contornos para todo o espetáculo. 

Espetáculo esse que em se tratando de teatro suas formas de pesquisa e de execução, foi feito com muita responsabilidade e habilidade. Percebe-se ali um trabalho intenso e harmônico dos que estão e estavam nessa pesquisa de criação e feitura. Nesse fazer a luz torna-se não apenas um elemento do teatro como constitui as imagens desse, todas as configurações de luz feitas no decorrer da cena acessaram não somente nossos sentidos como nos reportaram para lugares e nos rendiam perante as ações.

“A luz intervém no espetáculo ela não é simplesmente decorativa, mas participa da produção de sentido do espetáculo.” Pavis, Patrice¹

A luz da sentidos, ela age como um elemento vivo, junto a performance da atriz em cena. Espetáculo esse de uma atriz só, narrando fatos, contando histórias, apresentando personagens, encarando o público. De peito aberto e livre, gerando alegorias indígenas, do povo originário dessa terra. Uma atriz que usa seu corpo instrumento para o cumprimento da ação. Ela compõe a cena com concretude. 

“A verdadeira composição é aquela que imprime inexoravelmente uma experiência, mas não expõem as razões de sua escolha. Deixe somente rastros…” Bonfitto, Matteo ²


E ela deixa não só rastros, traz para cada um ali presente no que diz pela dramaturgia o ato de refletir sobre você, sua história e seu lugar, o Brasil e seu povo. 



“Se eu fosse Iracema”, Iracema é uma história de amor inventada. O amor entre uma colonizada e um colonizador. Quem seria você se fosse Iracema? Aquela que na literatura é a que amou seu colonizador. Seria impossível enumerar aqui nessa tessitura todas as pautas lançadas pela dramaturgia do espetáculo e sua relevância e urgência, na atual história desse país. Pautas ditas como do povo nativo, do povo Indígena. Pautas que são nossas. 

A busca de ato pela consciência, é o que me grita a dramaturgia, ao relatar genocídio, depredação, violência, colonização, e EXPLORAÇÃO de um lugar em todos seus espaços com vida. Apagamento da história desse país, de seu povo, história nunca contada. História dos povos INDÍGENAS.  A todo instante, somos lembrados que a exploração acontece há 518 anos, todo dia. Assim é contada a história, a história que eles nos contam. A Terra de Vera Cruz, existe a partir do que nos conta o homem branco, aquele que está no poder da colônia que vem sendo oprimida e dizimada a cada dia. Por isso um ato de consciência a quem ouviu aquelas falas, a quem se atravessou, a quem estava no teatro e sentiu, será que realmente nos importamos? 

Pessoas dormem nas ruas, pessoas comem do lixo. Pessoas que dormem na rua são queimadas vivas. 100 famílias expulsas de suas casas. 80 tiros no carro de uma família. Pessoas são decapitadas. Pessoas perdem o seu direito por ser. Gentes (gentes mesmo ou gentis?) perdem o direito por serem primitivos. Por ser primeiro dessa terra. 

“Que é o primeiro a existir; no momento inicial ou na origem de; original: a condição primitiva do ser humano; o estado primitivo do ouro.”³

Um ato de consciência, por essa consciência ser uma ação. Uma sociedade de consumo, uma sociedade que produz, um capital que consome tudo. Sociedade produz e cultiva para gerar capital, cultivo de misérias humanas, que acabarão em extinção total. Extinção que começa por um povo primitivo e originário e determina o nosso próprio fim. Fim enquanto pessoas, fim de todas as gentes deste país. Fim de gente que sente. É como se num ato de decisão o ESTADO e a JUSTIÇA daqueles homens brancos do poder, determinam que sua casa não é sua, que sua existência e modo de vida não servem para modernidade. Gente como você que lê esse texto, você e seu grupo. Você e a gentes do seu bairro. Você e as pessoas de toda sua cidade. Você e as gentes de sua família. É decisão, do estado que você saia e deixe de existir para que possamos produzir e crescer, produzir e evoluir. Produzir para ter progresso. Você e suas gentes sair para termos ordem. O ato de consciência tem que ser sentido agora, ou chegará ao ponto que não sentiremos mais. Sentir tem que ser ação. Se não assinaremos por um fim, o verdadeiro fim de nossa história, aquela nunca foi contada. Em breve, apagada: 

”Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós.  
De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs, avós, bisavôs e bisavós, ali estão os cemitérios de todos nossos antepassados.
Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui.

Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos.
Sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo em ritmo acelerado. Sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo e indígena histórico, decidimos meramente em sermos mortos coletivamente aqui. Não temos outra opção esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS. “  




Quantas pessoas tem na sua casa? No seu prédio? Vocês estão prontos para retirar-se do seu lugar? O trecho acima é da carta dos Guarani-Kaiowá em outubro de 2012, onde esses solicitavam o direito à morte, já que os homens brancos que estão no poder lhes negam o direito à vida, cerca de 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças. Um povo inteiro. Uma comunidade inteira, um condomínio inteiro, uma rua perto da sua casa. Se não nos importarmos. Se não agirmos na ação consciente agora. Qual a real possibilidade de sobrevivência entre as diferenças? Entre os diferentes povos que formam essa nação?

“Disse aos homens brancos que, se algum dia eles herdassem aquela terra, que a pisassem suavemente, porque se não aprenderem a respeitar vão acumular detritos sobre detritos, até que vão acordar enterrados no próprio vômito.” Ailton Krenak  

Referências:
1- Patrice Pavis- Dicionário de Teatro
2- Bonfitto,Matteo- O Ator compositor
3-Dicionário Google- Palavra_Primitivo.
4--Carta dos Gurani Kaiowá á Justiça do Brasil -https://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/carta_pyelitokue.pdf
5- Entrevista do Expresso- https://leitor.expresso.pt/diario/quinta-1303/html/caderno1/temas-principais/03_entrevista-indio-brasileiro--christiana-

*Lili Lucca, é atriz, encenadora e crítica no Coletivo @FilédeCríticas.

Se eu fosse Iracema

// Ficha técnica //
Intérprete: Adassa Martins
Dramaturgia: Fernando Marques
Direção, iluminação e cenografia: Fernando Nicolau
Figurino e caracterização: Luiza Fardin
Trilha sonora original e desenho de som: João Schmid
Preparação vocal: Ilessi.
Direção de arte e projeto gráfico da comunicação: Fernando Nicolau
Escultura do busto: Bruno Dante
Caracterização das fotos: Luiza Fardin
Fotografia: Imatra
Produção executiva: Clarissa Menezes
Idealização: Fernando Nicolau e Fernando Marques
Realização e produção: 1COMUM Coletivo

Myo_Clonos, uma dança de sintomas



Tessitura Lili Lucca



Ontem em Maceió, mais precisamente 18 de maio de 2019 deu se início a semana do Aldeia Palco Giratório, uma mostra de trabalho dos artistas locais e dos que circulam pelo projeto nacional do Sesc. Para além da mostra de teatro, dança, exposições e música aconteceram atividades formativas e troca entre os artistas alagoanos e os que circulam nacionalmente. Nesse espaço estou eu na tessitura do que vejo e sinto. Colocando palavras a pensar as obras e registrar, mas também na busca de dialogar com todos que estão no movimento necessário do fazer a arte acontecer.

Na abertura tivemos a obra de Alexandre Américo de Natal-RN. Com o espetáculo Myo_Clonos. Um corpo. Sua história. Um corpo com sua história. Uma dança. Um Dançar intransitivo, ir de um lado a outro desordenadamente; oscilar, balançar. Uma dança convulsionada pelo seu movimento de se pôr em distúrbio alternando com seus silêncios. Um corpo em pesquisa que baila ao som dos impulsos dado pelos espasmos de seu corpo. Um corpo vivo. Um corpo que sente. Que faz sentir. O movimento não é linear. Não é contínuo. Mas tem latência de vida. 

“Não há intenção se não há uma mobilização muscular adequada.”J. Grotóvsky

Grotóvsky, quando pede a atores que compreendam suas ações no impulso é totalmente acolhido por Alexandre, que em sua dança, coloca perante nossos olhos uma obra que é feita pelo artista que descobre em seus músculos o impulso de criação, de seu movimento. Aquele que sente e que nos faz sentir, que nos assenta perante os olhos um corpo no seu pulsar espasmado foliando e dividindo o que sente. Nesse território do corpo em dança, do corpo em ação, o ponto aqui é de um corpo em pesquisa intensa de investigação na tentativa de expressar o movimento na sua forma mais bruta do espasmo, como nos coloca o próprio criador quando diz sobre sua obra. O movimento dançado no espasmo, o espasmo que gera movimento real, que gera impulso.

“ A dança teatro se alimenta da realidade, em vez de abstrair se dela, como na dança pura; traz a realidade até si, em vez de afastar se dela” Pavis.

Sinceridade, uma obra onde o artista não aloca a representatividade, nem o seu dançar precisa de extensão. Ele sente seu corpo, sua concretude, tudo ali é consciente e é assim que se revela aos nossos sentidos.

Não vejo precisão nem necessidade de nomenclaturas para essa obra, não a coloco com dança-teatro quando cito Pavis, apenas a vejo no ato consciente e leal do artista que enquanto se movimenta dança. A arte não necessita da representatividade. Tudo bem se ela acontecer ou for vista por alguém assim. Vejo um corpo posto em cena impulsionado pelos espasmos. Esse corpo age, reage e dança. Um artista com o microfone na mão que inventa e se delineia: Sou um negro e periférico no sentir. E sendo franco.

A ARTE HOJE PRECISA SER VERDADE. 

Pode ser lúdica, representativa, utópica. Ou não. Mas a sinceridade de quem a faz precisa estar no ato de sua ação. Uma música, que toca uma guitarra que corre o espaço com seu som, em meio a espasmos dançados. Espasmos esses sentidos por ele e que impulsionam o movimento que o lançam no espaço. Silêncios para sentir. 

Espaço em que um corpo que dança. É sentido. É sentido em todas as possibilidades da palavra. Um corpo que se ofende ou melindra facilmente; suscetível, sensível, que causa pesar; plangente, lamentoso, que está em começo de decomposição, um tanto podre ou estragado. Um corpo que está vivo. Um corpo que opera e vibra em sua dança. O instante, o impulso que move e dança.

Assisto Alexandre Américo pensando que sua dança está a margem de tudo que pode ser a dança, ele coloca ali uma pesquisa de ações dos seus espasmos coisas que no mais comum devem ser “ajuizadas” para que na dança flua o movimento, ele quebra essa forma de dança quando no seu dançar traz esses espasmos que o colocam movimento. Sua dança não tem a busca figurativa e intencional no ver. Ela vai além é um corpo que dança para ser e para existir. Quando abrirmos os sentidos do ver, as imagens e sensações poderão ser colocadas na experiência e assim a arte no seu mais alto grau de sinceridade se transformará em obra, em dança no olhar de quem sente.

E o que seriamos nós sem sentir? Sem caçar sentido? 

Sentido do olhar de Alexandre, que por vezes ultrapassou o palco e fez sentir, na música hora vibrante, ora pausada que se estendia até a ação de forma presente. No lugar de sua fala, sincera. No posicionar - se. No lugar da fala que assume a invenção de uma obra. Com o microfone na mão ele nos autoriza. Estimula. Cada vez mais devemos falar. O artista é aquele que cria, que incita, que expressa, que luta. Sua vida, sua arte, atrelada ao ser e seus sentidos e sua voz. Não paremos de inventar e de criar, ou então pararemos de existir. A obra nos convida a exteriorizar nossos espasmos, é necessário pegarmos nossos microfones e falarmos nossas verdades, para não convulsionar. Ou para sentir o que nos faz convulsionar e então reagir e atuar, a arte é cada dia mais luta e arma de verdades que precisam ser ditas por sujeitos únicos e indispensáveis. Dancemos. 



Referências:
1-GROTÓVSKY, Jerzy.Conferência feita por Grotóvsky em Liége; em T.Richards, op.cit.
2- PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro.pág84.b.


Espetáculo- Myo_Clonos
FICHA TÉCNICA:
Bailarino e criador: Alexandre Américo
Trilha Sonora: Alexsandro Araújo
Foto: Sesc Alagoas




F.E.M.E._narrativas do que nos contam essas Mulheres



Tessitura Jocianny Carvalho



Estejam os homens vencendo ou perdendo a batalha, oh meu país,
As mulheres entraram em cena e o honrarão. 
Malala Yousafzai¹



Dramaturgia. Do grego, compor um drama. Dizem que nós mulheres somos dramáticas, sim! Somos! Mas também somos produtoras, sonoplastas, diretoras, intérpretes de libras, cantoras, atrizes, espectadoras, fotógrafas, palhaças, escritoras, e talvez te surpreenda saber, mas tudo isso coube num presente chamado F.E.M.E. Um Festival de Mulheres Engraçadas, acontecendo em uma capital muito atrativa turisticamente pela sua bela orla, mas pouco lembrada culturalmente, é por si só um prato cheio “pra dar ruim”, muitos diriam, muitos pensaram. O fato é que deu bom! Vários dramas e narrativas elaboradas por mulheres palhaças, todas elas dramáticas e cômicas na medida que querem ser. Cada espetáculo abarcou plateias muito diversas, crianças, homens e mulheres que não saíram os mesmos, rimos muito, e nem sempre com o peito leve, tinha riso que era de dor, reconhecimento, descontentamento e como cada artista construiu sua escrita particular, dentro da infinitude de ser uma mulher engraçada, ligaram-se a nós de maneira muito perdurável e única.


O que une a todas essas dramaturgias? O riso, a graça e a técnica do Bufão, usada para perverter mas também para fazer rir, que já se modificou e moldou-se com o tempo, mas sempre sendo cômica, irônica e principalmente de uma afronta babilônica a sociedade. E socialmente, enquanto mulheres e artistas, o que temos? O que significamos? O que representamos? São várias as respostas, mas todas as perguntas são facilmente respondidas com: pouco. Bom, essas “fêmeas” nos deram bem mais que pouco, afrontaram com a dominação do sexo oposto, a zombaria aos machismos cotidianos, as palmas diante de discursos feministas, a naturalidade do ser homem conquistada por uma mulher e principalmente, ao direito de diante de todos, ser quem se é. Reparação histórica, né mulher? Todas elas de alguma forma, subverteram, satirizavam e foram bufantes principalmente por estar dentro do coletivo ao qual a sociedade julga como acessório:


A esse coletivo pertencem os negros, os
gays, as mulheres, as prostitutas, os doentes, os
aleijados, os despatriados, os sem-terra, os sem
teto e todos aqueles que são inadequados na sociedade.
Indiferente à sua adversidade, o “bando”
se diverte zombando da hipocrisia e mediocridade
humana. Eles se divertem muito
satirizando as autoridades. Como na sociedade
em que se espelham para debochar, eles são comandados
por um chefe, a quem todos se alegram
em obedecer. Eles zombam até do “inzombável”:
da guerra, da fome do mundo, de
Deus (Lecoq, 1997, p. 35).²


Durante os cinco dias do F.E.M.E., o Filé de Críticas esteve presente em seis espetáculos de mulheres engraçadas de Alagoas e demais regiões do país. Nessa tessitura a composição é feita por duas filezeiras, eu que vos escrevo e Lili, mas coube a mim a tarefa de tecer essa costura dramatúrgica. É inegável a subjetividade envolvida nas escritas do F.E.M.E., e de como é particular a mensagem para cada ser do sexo feminino, como foi importante conhecer cada peculiaridade desses olhares femininos, como enquanto mulher foi enriquecedora a experiência de ver textos ditos em vozes agudas (nem sempre, mas sempre femininas), pra variar. Te convido a ler apenas alguns desses recortes significativos feitos por duas filezeiras críticas: 


Desgovernadas, SIM!




Tessitura_Lili Lucca


A abertura do F.E.M.E aconteceu com o libertário Cabaré das Desgovernadas, como é bom sermos e estarmos desgovernadas e livres, viva a anarquia feminina de ser. De ser mulher e de mostrar como bem quiser. E rir de si mesma. Desgovernadas, descontroladas onze palhaças no palco, solos de si, do seu escárnio, da sua libertação, do seu ridículo. Por suas escolhas e vontades próprias. Todas elas musicadas por Natalhinha Marinho e a Banda das Cabritas. Cenas curtas de riso leve à gargalhadas sem fim, cenas em que a plateia ria e fazia junto. Com mulheres e travestis que tanto são motivos de casquinadas, mostrando que a beleza vai além da imagem. Com indígenas da Amazônia e sua crença poderosa, aos passos do tango russo onde todos dançam improvisando. Caindo levemente na poesia do clown e truques de palhaçaria, desembocando para etiqueta e finesse do absurdo, e então indo parar no inesperado da fome vinda do Grajaú sem perder alegria de viver e a competência de ser mulher e definir tudo. Fomos finalizadas pelo miado da gata que dança, sem é lógico esquecermos de gozo feito no palco pelo livre-arbítrio da mulher e do que ela gosta e quer. Uma noite no palco do teatro Deodoro de coragem e energia tudo muito bem cumprido e concretizado por fêmeas. Que além de nos colocarem no devaneio do riso inesperado, colocaram em cena os homens mostrando a eles que na cena o riso feito pela mulher não julga e condena apenas liberta, ensinando mais uma vez a eles o que é fazer rir. Nessa cena de contemplação de mulheres engraças o que ganhamos foi a liberdade do improviso e historietas que se contam e que se constroem no improviso do teatro e na construção de dramaturgias. Avante Palhaças, que o caminho é árduo mas a força é muita. Assim as vi.





Naturalmente Valdorf
Sobre Valdorf de Aline Marques




Tessitura_Jocianny Carvalho





O que cabe num pote de pepino em conserva? Cabe um garotinho chamado Valdorf e todo seu imenso mundo engenhoso. Ele(A) relembra aqueles fundamentos teatrais básicos, com um cenário quase nulo, não fosse um banco de madeira, traz o necessário e não se perde em nenhum pacote de salgado gigante, pepino gigante, cartaz e tintas. Ele(A) reafirma com simplicidade de que o teatro precisa de um lugar, uma atriz e o público, e ele(A) atesta como essa simplicidade é potente, porque faz emergir tanto sentimento que ficamos com a sensação de sermos nós até então naquele potinho de conserva, e ele(A) que na verdade nos libertou. Na verdade, a verdade é que não ele, e sim ELA merece todo esse nosso enaltecimento, Valdorf é um espetáculo feito por Aline Marques, que o faz com tanta sensibilidade que conquista com pequenos gestos, literalmente quando interage com o intérprete de libras, estranhamente quando diz que não gosta da moça da plateia, arrebatadoramente quando percebemos que sua presença necessita da nossa adulação para existir e te pedimos pra voltar. Valdorf mexe com nossa criança, por isso os estados são tão diversos quando ele(A) grita: fim, alguns levantam com a sensação de saudade, outros melancolia e outros não conseguem definir.


P.S.: Às 07:15 da manhã Valdorf foi deixado na escola, por sua mãe. Presenciamos o fato, Valdorf se comportou muito bem, pediu desculpa a Julia Derma e brincou com o Tio Simão portanto não merece voltar para o pote de conserva.



Cabaré Minimalista
Sobre Mini Cabaré Tanguero de Julieta Zarza



Foto: Amanda Môa

Tessitura_Jocianny Carvalho


Cheiro de nicotina como em todo cabaré. Luz vermelha. Casaco gigante. Pernas e mãos. Atente para as pernas e mãos. Todo o acontecimento gira em torno desses membros tão facilmente esquecidos e triviais no cotidiano. Aquela sensação de plateia circense que tem diante de si algo inesperado, afinal essa é uma sensação recorrente, porque ninguém lê mesmo os releases dos espetáculos. Aquele circo mulher é a grande surpresa, que nos provoca milhares de mini abalos, com suas chicoteadas no ar, a cada vez que convida um dos desavisados a participar. Há um jogo muito interessante de se jogar, o sexo oposto geralmente está compartilhando o espaço, mas são totalmente controlados por ela, o marionete, o dançarino e o aluno, a escolha de entrar e participar sempre vem do seu convite, nada é aleatório. Cada mini atração é encerrada sem muito prolongamento, o ritmo é tango e este é sexual, agressivo, duro e masculino. Ao trazê-lo ao palco, ela uma mulher, seus dedos, suas pernas e seu batom, faz o necessário para fazer rir, por que ela transcende, perverte e nos provoca.




Respeita as mina!

Sobre “Entre Rio e Mar Há Lagoanas” do Coletivo Hetéaçã





Tessitura_Jocianny Carvalho




"Em todas as lágrimas há uma esperança",
Simone Beauvoir.³


Eu começo com Simone por que não sou indiferente e acredito que elas também não sejam. A labuta resume o que vimos diante de nós naquele grande palco ocupado por caixotes de madeira empilhados, um pouco a direita, um pouco a esquerda e bastantes deles no centro, e principalmente, ocupado por mulheres. Por que labuta? Como poderia descrever outro verbo masculino para falar do que vimos naquela noite? Existia uma lida ali, dedicada, esmerada, sensível e poética. A lagoa estava presente, estava em casa. Eu não culpo a intérprete de libras por sua entrega emocionada a cada tradução, aliás, a parabenizo, eu sei que ela também voltou para casa naquela montagem. Entre rio e mar há alagoanas, e elas surgem meninas, adultas e senhoras, e recorrem ao recurso da máscara para isso e algumas pequenas alterações no figurino, que parece de fato acabado de sair da lagoa. Isso é labuta, há essa existência e estão ali para afirmá-la, num texto essencialmente político, necessário e que talvez peque por excesso, mas jamais por falta de discurso. Infelizmente, com toda essa poesia há quem decida olhar apenas para a beleza, ou a ausência dela, ou pior ainda, para o pedaço de carne exposto e é por isso que essa lagoa tem que resistir, mostrar que essa lama não existe sozinha. Sei que vocês entendem quando as mesmas afirmam: “Ele continua, e é por isso que eu sigo…”. O que nos encoraja também a continuar, fortalecer nosso cenário seja lá o assento que ocupamos, porque sabemos o quanto foi duro conquistá-lo, mantê-lo e o tempo todo vigiá-lo. Enquanto a lagoa existir, existirá também a fé. É por isso que nunca será demais relembrar: Respeite o assento moço, respeita as mina.



OPÁ UMA MISSÃO
de Lívia Falcão





Tessitura_Lili Lucca


OPÁ- uma missão, aconteceu na sexta feira no centro cultural Arte Pajuçara, com um lindo cenário e uma sensação de ritual entramos no teatro. Em cena uma atriz, uma palhaça, uma xamã, ela discorria sobre sua trajetória de crenças, contos e histórias, atendia ligações e conversava com todos a fim de tornar tudo um encontro. Suas histórias contadas tinham um tom de palavra que pegava delírio, como ela nos disse. Magia, mistura com poesia e conversa conduzida a todos presentes. Esse espetáculo me trouxe a memória da minha vó, indígena e benzedeira. Que acreditava no poder das palavras e das ervas, no poder da natureza e com seu andar levava a cura pela fé. Opá, em sua estreia no F.E.M.E, fala sobre acessar os nossos, acessar os presentes, colocar em práticas nossos rituais e crenças, voltar a si e sua história e que fazer arte é missão que se constrói juntas, eu por minha vez terminei no palco descalça em dança, pensando em memórias e re-assumindo minha missão sempre que piso no tablado.




CHÁ COMIGO
de Giulia Cooper





Tessitura_Lili Lucca





Chá Comigo, um solo da palhaça que pouco fala e muito faz de forma bucólica e singela aconteceu na Vila dos Pescadores. Crianças sentadas em semicírculo já esperavam para saber o que aconteceria com aquele fogão, utensílios e mesa expostos em sua frente. A nossa anfitriã do Chá uma palhaça de poucas palavras e muito malabarismo em sua cozinha chegou pela plateia, ela limpa, cozinha, toca, canta sempre dividindo o seu fazer com todos presentes. Era uma cozinha circo, onde ela preparava um chá e conquistava as crianças com sua magia e suas breves cifras. Sentíamos-nos com ela em casa preparando uma pequena ceia, todos queríamos sentar e tomar aquele chá. Essa magia do circo, aliada ao teatro, suas charadas genuínas e livres orquestradas pela palhaça e sempre ritmada pelos comentários e risos das crianças, são muitas vezes mais que sentido para a vida, são o impulso para continuar. A arte e a poesia acontecem no encontro, e Chá comigo foi o encontro do riso com a veracidade da criança, que brinca de ser sempre a todo momento, que não nega o acontecimento mais puro da vida: a diversão, e ao rir de si e do outro sem crueldade, revela a arte em implemento eficaz.





Referências:

¹Yousafzai, Malala, 1997 - Eu sou Malala: a história da garota que defendeu o direito à educação e foi baleada pelo Talibão. - 1ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
²Lopes, B. (2005). A blasfêmia, o prazer, o incorreto. Sala Preta, 5, 9-21. https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v5i0p9-21
³Simone de Beauvoir BEAUVOIR, S. A Força da Idade, Nova Fronteira, 2009.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro, Perspectiva; Edição: 3ª (1 de janeiro de 2015).





Fotos_Nivaldo Vasconcelos

F.E.M.E. e o riso contra a barbárie


Tessitura _ Bruno Alves

“Respeito muito minhas lágrimas
Mas ainda mais minha risada
Inscrevo, assim, minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada”
Caetano Veloso



Impossível não falar do Festival de Mulheres Engraçadas - F.E.M.E. sem reconhecer sua importância dentro do contexto em que estamos inseridos.

É em um período marcado por um desgoverno que o riso nasce com toda a sua força para enfrentar a barbárie que se instaurou no nosso país nos últimos meses. São cortes de verbas e patrocínio nas ações culturais, perseguição aos artistas, aumento da violência e morte da população (negra em sua maioria), aumento e invisibilidade de casos de agressões e mortes de mulheres vítimas do feminicídio, dentre outras questões que chegam ou não até nós diariamente.

O F.E.M.E  é o que de mais pulsante e renovador surgiu em terras alagoanas nesses últimos cem dias de 2019. E falar isso pode soar apressado, visto que o ano está só começando, mas a realidade mostra o quanto de crueldade e perversidade pôde se instalar no país em tão pouco tempo.

O F.E.M.E aponta caminhos de ação, aliás, de renovar a ação.

Eis a missão que o FEME assumiu desde quando foi gerado no ventre/coração de Wanderlândia Melo, Nathaly Pereira e Elaine Lima.




Ação essa que nos últimos meses pós- eleições presidenciais, já não conseguimos pensar ou enxergar. Ação que nos falta, pois não sabemos para onde ir e o que fazer. O desgoverno nos paralisa. Estamos sempre reagindo a uma ordem estabelecida para nos desestabilizar.

É a ação do riso como posicionamento político e resistência. Faz-nos lembrar que precisamos rir, que não devemos esquecer do riso, que não devemos ceder aos que nos querem tristes e desanimados.

Não é um riso simples que nasce nesse festival. É um riso que vem das mulheres. Protagonistas e mais uma vez detentoras do grito de não as opressões. Não  ao machismo e patriarcado que tenta cada vez mais se levantar. Mais uma vez elas gritam não. Gritam que ele não.

 Luciane Olendzki nos lembra que:
O riso está essencialmente ligado à vida, a vida em toda sua potência e plenitude, em seus aspectos trágicos e cômicos, tristes e alegres, sombrios e luminosos. Ancestralmente e miticamente, o riso é ligado à mulher e à fertilidade. O riso, que aporta o renascimento, a ultrapassagem da morte e do luto para a celebração e a continuidade da vida em sua exuberância e fertilidade, tem a mulher como figura simbólica e mítica. A mulher como portadora e provocadora do riso, que traz a luz, a vida e o eterno jogo de recomeçar.   1



O FEME nasce nesse luto coletivo para nos lembrar a continuidade da vida, o recomeço, a luz e a vida que pode ser transformada. É com o riso que elas, donas da ação, nos fazem revisitar as nossas vidas, as nossas escolhas e o que podemos fazer daqui pra frente.

São as mesmas mulheres que um dia tiveram negadas a sua liberdade de rir e fazer rir que agora assumem o comando.

Desgovernadas, como propõe o título do Cabaré de abertura, donas de si, rindo e fazendo rir das nossas questões mais humanas. Desgovernadas, porque não há governo que as represente e por que jamais cederão ao machismo e patriarcado.

Mulher que faz rir é transgressora. O “fazer graça” nunca caiu bem a figura feminina como nos lembra Luciane ao dizer que:


Ora, somos, ainda, educadas para ser graciosas, não engraçadas.Tampouco incentivadas a fazer rir e “bancar a palhaça” da turma. É necessário se portar direito, como meninas, mocinhas ou mulheres devem se comportar.Fecha as pernas, penteia o cabelo, se arruma, não ri alto, fala baixo, fecha o decote, olha a bragueta, não coça a xereca, mastiga direito, seja mocinha, dança pro titio, não te exibe, põe um saltinho. Bonitas, belas, simpáticas, agradáveis, sociáveis, polidas, sensuais, elegantes, bem-educadas, etiquetadas, lustradas e boas-moças.
A figura da “bela, recatada e do lar” vez ou outra insiste em surgir cada vez que as mulheres se manifestam e se colocam da maneira como querem, sendo protagonistas de suas histórias. A sociedade insiste em querer enquadrar a mulher em padrões de opressão e de inferioridade aos homens.


“Mulher palhaça é coisa fora da norma, do padrão e do esquadro, do que se espera de uma “boa” mulher, com vida e profissão direitas e decentes – ainda hoje é assim.”


Nos lembra Olendzki ao escrever sobre o avanço da palhaçaria feminina no Brasil e no mundo.

A mulher engraçada que nos trouxe o FEME vem para afirmar esse espaço de empoderamento e de afirmação em uma área ainda dominada por homens.

Durante a mesa “Mulher Faz-se Rir” pudemos conhecer um panorama da palhaçaria feminina no Brasil e em outros países. Sentíamos vontade de poder ter tempo para passar uma tarde com cada uma daquelas mulheres que ali estavam. Estiveram presentes e mediadas por Wanderlândia Melo, a homenageada Peró de Andrade (AL), Geni Viegas (RJ), Nara Meneses (PE), Dani Majzoub (SP) e Vanessa Rosa (SP).
De regiões diversas, com contextos diversos, pudemos conhecer as temáticas que cada uma traz consigo. A palhaçaria feminina é um universo amplo e que trata de questões das mais diversas possíveis, como escreve Luciane:

A meu ver, a palhaçaria feminina não se detém em uma questão de gênero, tampouco em assuntos em torno do que se pode caracterizar como sendo “feminino”, de ou sobre “mulher’. Tudo cabe no nariz, no corpo-ser e na arte das palhaças – a vida, a arte, o existir, as realidades e a humanidade.
Foi isso que ficou comprovado durante a conversa e todo o festival. Cada palhaça traz consigo as questões de seu universo. “Tudo cabe no nariz”.

Nesse contexto de diversidade de temas e questões não podemos esquecer de destacar a presença de Dani Majzoub (SP) que relatou seu processo de criação em palhaçaria trazendo questões de aceitação do próprio corpo e a desconstrução através do riso de questões relacionadas a gordofobia. Dani passou por um processo de criação que lhe emociona ao falar, pois foi mexer em questões que lhe acompanharam e acompanham durante toda sua vida.

Vanessa Rosa (SP) é também um forte exemplo que nos provocou bastante, pois possui uma pesquisa encantadora sobre a palhaçaria negra e indígena. Sentimos vontade de conhecer mais sobre a pesquisa e trabalho de Vanessa Rosa, pois o que ela traz consigo é ainda pouco conhecido e discutido dentro desses espaços. Vanessa além de trazer a questão negra e indígena dentro da palhaçaria, ela traz em seu corpo e vida todo o pertencimento e força de sua ancestralidade.

Poder conhecer o panorama da palhaçaria feminina e histórias como a de Dani e de Vanessa foram verdadeiros presentes para a nossa vida.

É observando o crescimento dessa rede de mulheres engraçadas que vemos fluir o empoderamento e o ato de ser feminista por estarem ali ocupando um espaço que é por direito de cada uma delas, refletindo em suas criações questões e tensionamentos das mais variadas origens, pois Stubs escreve que:
(...) uma estética feminista se caracteriza também por um elo indissociável entre arte e vida, entre arte e experiência e entre arte e produção de subjetividade. Elos que reforçam o entendimento de que a arte pode ser tanto um espaço de tensionamento e resistência social e política, quanto um espaço de produção de um outro ethos com a vida.

Enquanto nos últimos dias vemos um humorista famoso condenado por oprimir com suas piadas a minorias sociais e protestar o direito de poder rir do negro, da mulher, do homossexual, do nordestino, e de outras minorias, aqui em palcos alagoanos, vemos mulheres assumirem o comando do riso, trazendo questões das mais distintas para serem colocadas através do humor de uma forma que não nos envergonha ou oprime, pelo contrário, nos liberta.

São dois risos que se apresentam dentro do nosso contexto atual: De um lado Gentilis e afins cobrando o direito de rir do outro, não importando o quanto a pessoa poderá ficar ferida; do outro existem as mulheres engraçadas, donas de si, governadas pelas próprias vontades e ideias, levando com seus corpos, peles, cabelos e histórias de vida questões que revelam uma outra possibilidade de riso: O riso que nos revela como seres humanos, iguais, diferentes e necessários uns para os outros.

O Riso das Mulheres Engraçadas aponta caminhos não somente para o fazer rir, mas também para o como se organizar, como estar junto, como se fortalecer e como estabelecer relações de sororidade.

Ao levarem para as plateias outras mulheres (e homens também) elas fortalecem um público que passa a rir junto, porque se reconhece e se sente representado nas ações ou mesmo por achar em alguma figura ali em cena um lugar de muito absurdo, mas não muito longe das pessoas da nossa realidade.
Eliane Brum escreveu em sua coluna recentemente que:

Precisamos rir. Rir junto com o outro, não rir do desespero do outro. É o perverso que gosta de rir sozinho, é o perverso que goza da dor do outro, como faz Bolsonaro, como riram os soldados que deram 80 tiros no carro da família que ia para um chá de bebê. O deles não é riso, é esgar. Já o riso junto com o outro tem uma enorme potência.

O FEME em sua primeira edição nos mostrou essa potência, nos ensinou a rir junto com todas as mulheres e a reconhecer que esse riso nos aproxima e fortalece.



Durante todas as noites que estive presente aos espetáculos saia sempre com um sentimento de renovação. Desde a virada do ano sentia-me paralisado e os espetáculos e ações de formação do FEME me fizeram voltar a rir e entender que é preciso muito riso para “estar atento e forte”, afinal, “não temos tempo de temer a morte”.

Todas as noites ao final de cada sessão eu pensava “Seria bom ter o FEME toda semana”, mas tirando a vontade um tanto longa para se ter um festival o ano inteiro, a frase foi para ilustrar o quanto minha alma se sentia renovada e não somente por conta dos espetáculos e ações que o festival proporcionou. Era por conta de todo o acontecimento. Tínhamos, finalmente em Alagoas, um Festival feito por mulheres, mulheres engraçadas, desgovernadas e donas de toda a graça.

É preciso muito riso. É preciso que as mulheres engraçadas ocupem todos os espaços. E o F.E.M.E. veio para trazer a tona o que já existe, o que sempre existiu, mas que há muito tempo é negado e reprimido. 

Outro dia conversando com uma menina de 9 anos ela dizia que um dia sonhava em ser palhaça, os que estavam ao redor logo riram achando absurdo, quando lhe contei da existência do F.E.M.E. seus olhos brilharam por saber que é possível sim, ser palhaça! Que receberia em sua cidade pela primeira vez um encontro com mulheres palhaças de todo o Brasil.

O F.E.M.E. fortaleceu esse espaço, mostrou a existência e resistência das mulheres engraçadas e como em um mapeamento sensível e amoroso foi em busca das mulheres que tanto nos fazem rir por aqui.

Trouxe a tona e libertou risos diversos.

Essas mulheres e essas meninas, que desde cedo já sabem transgredir com o riso, precisam cada vez mais se empoderar e apropriar desse ato político e de resistência. É preciso que elas estejam nas escolas, em seus trabalhos formais, em suas casas, em suas ruas, na fila da padaria, no ponto de ônibus… Que mostrem cada vez mais a sua graça, que mostrem que não é engraçado a desgraça do outro e que a gente junto possa somar ao coro das risadas que libertam e vencem toda opressão.

Afinal, Eliane nos pede:


Vamos rir juntos dos perversos que nos governam. Vamos responder ao seu ódio com riso. Vamos responder à tentativa de controle dos nossos corpos exercendo a autonomia com os nossos corpos. Vamos libertar as palavras fazendo poesia. Como escrevi tantas vezes aqui: vamos rir por desaforo. E amar livremente.

O FEME foi e é esse primeiro grande passo de reconstrução de um tempo. Um tempo de riso, um tempo de força, um tempo onde as mesmas mulheres que um dia gritaram #elenão, permanecem mais fortes, somando coros, acolhendo a todos que queiram explodir de amor, de sonho e riso.


Referências:


OLENDZKI. Luciane. T.P.M. (tantas palhaças mulheres) em necessárias alterações do humor na palhaçaria. Para a Revista #Textão nº6. Disponível em:http://coletivovolante.blogspot.com/2018/05/revista-textao-n-6.html

STUBS. Roberta. Pensando uma estética feminista na arte contemporânea: diálogos entre a história e a crítica da arte com o feminismo.Rev. Estud. Fem. vol.26 no.1 Florianópolis  2018  Epub Jan 15, 2018.

BRUM. Eliane.  Cem dias sob o domínio dos perversos. Disponivel em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/10/opinion/1554907780_837463.html

Fotos _ Benita Rodrigues



“Estendam ás mãos já! - Narrativas Individuais para Construções Coletivas”

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