CRÍTICA "Ainda está ali" do Espetáculo Ele ainda está aqui

Tessitura _ Lili Luca

Ele ainda está aqui, espetáculo com direção e dramaturgia de Silvio Guindane, foi apresentado no Teatro Deodoro em Maceió, no dia 06 de julho de 2019. A encenação realista conta a história de três irmãos de continentes diferentes unidos pela língua portuguesa, que o destino acabou reunindo com a morte do pai e que nos diálogos desse encontro revelam mais do que a divisão de uma possível herança de bens materiais. É nesse diálogo de afetos e estranhamentos que nos encontramos com a cena. O espetáculo de conversa cotidiana com conflitos comum a todos, é uma comédia, ou seria uma tragicomédia. Na tessitura dessa dramaturgia o riso está estruturado a partir de um conflito trágico, desencadeando o riso e o drama continuamente na ação, drama esse afastado da tragédia e que tratado de forma irônica vira comédia. Ou seja, independente do gênero que se aloca, a dramaturgia passeia, pois:

“Os dois gêneros respondem então, a um questionamento humano, e a passagem do trágico ao cômico é garantido pelo grau de investimento emocional do público.”1


E o público ali presente independente de suas vivências e conflitos familiares, pertence a uma família logo se vê refletido na cena. E assim temos a história. Uma família. Três filhos. Um pai. Uma ausência multiplicada por três. A falta de afeto e da relação que corre quilômetros de distância, mas que se faz presente mesmo estando ao nosso lado. 

Os três atores em cena, seguem a linha realista de interpretação, e isso é um opção concreta de toda encenação do espetáculo, sotaques burlescos, mimeses bufas e uma manutenção do conflito pelo diálogo intenso dos atores, feito com competência e responsabilidade por ambos, exibe nuances de interpretação essas que por sua vez são sustentadas pela dramaturgia precisa e concreta. 

Três personagens.  José, brasileiro, criado entre a zona sul e subúrbio, tem a malandragem carioca e a força de resistir com a falta de carinho. Miguel, pequeno empresário português que nutriu a vida toda um apego nunca correspondido. Francisco, um angolano aficionado por desenho que na falta de afeto cria suas versões de afeição a partir das imagens. O DNA os une em uma partilha, a língua portuguesa os aproxima e os afasta no diálogo, mas é a discussão pelo capital que consegue os fazer extrapolar as emoções e falar tudo o que nunca falaram, que os faz sentir tudo de novo. A carência, a falta de um pai que nunca esteve ali, presente. Mas que agora, ele ainda está ali. É nessa lacuna e nessa amargura, que eles se reconhecem irmãos e é ali que nos atravessam, nos tocamos pela sua dor e por entender o que é a constituição dessa família. Que sendo família independente da forma, da culpa que carrega, das dores que gera é acima de tudo amor. Amor, que acolhe, que cuida, que cultiva e que se finda no nosso cotidiano seja por prazer ou determinação do que é paterno. Uma ausência paterna sentida e refletida em ambos, uma ausência comum em lares do mundo inteiro. Um pai que cuida, que nutre e que não esteve ali. 

“ Penetrar este silêncio e entender a questão do pai, tendo como eixo a identidade masculina, culturalmente determinada……. O pai exercia o poder na casa, com força para manter o círculo vicioso em que a família estava secularmente encerrada. Sua autoridade valia tanto para os filhos como para a mulher, que dele dependia economicamente e a quem se submetia de acordo com as regras estabelecidas. A importância do pai, do patrimônio e da religião reduziu, expressivamente, o espaço físico e sentimental da criança". 2


O pai ali era a imagem do patrimônio, o motivo do encontro, das conversas, dos risos e dos choros. O que precisamos nós filhos e filhas? Do amor de um pai, amor que é afeto, que gera memórias e marca nossas histórias, um pai que “ainda está ali” mas que permanece ausente na vida emocional de três filhos, homens hoje. A culpa do trabalho e do tempo social que nos toma a vida. E o tempo da vida é sempre roubado. É preciso trabalhar para viver, e não viver para o trabalho, mas na história que se conta vemos que  tempo de vida tende a correr e mais uma vez não deixar o tempo para vida, e o que temos de mais precioso, o outro e o que vivemos com ele. E os pais se continuarem a exercer a força do trabalho e do sustento apenas, não vivenciarão o que tem de mais precioso na vida, o que dinheiro algum compra, o amor e a troca deles com seus filhos. Despertem pais, o amor é o que constrói, ele é o básico de um ser humano. Confusões habituais, em uma divisão familiar. É tudo muito claro na cena pela realidade de vida, que buscam pelo cênico. Palco esse que vemos na cena:

“A encenação é a arte de aspirar o mundo exterior para fazê-lo desempenhar um papel numa ficção.” 3
E nessa cena, estão expostos no palco sofá, cadeiras, tapete, almofadas uma sala de um lar tradicional no Brasil, ao fundo uma mesa/bar com garrafas de bebidas e algumas taças, dando um ar de “sofisticação” é assim que se compõem o cenário. Com uma iluminação sem muitas nuances e trocas ela cumpre seu papel de deixar tudo sempre muito próximo do que seria um lar. Lar de uma classe alta carioca, evidenciado pela ação dramatúrgica, e pela interpretação dos atores. Uma tela ao fundo projeta imagem de uma janela dando ao público uma informação já bem cumprida pelos atores, eles são a mola que desenha toda história basta estarem ali, experienciando seus diálogos e ações. Como descreve P.Brook:

“Posso pegar um espaço vazio e chamá-lo de palco vazio. Um homem atravessa esse espaço vazio enquanto alguém olha para ele e aí está tudo o que se precisa para criar um ato de teatro.” 4

“Ele ainda está aqui” é um espetáculo que traz o que tem de mais cotidiano em nossas vidas as relações familiares, a dificuldade do diálogo, a busca de uma solução para problemas reais. Um espetáculo que é desenhado com realidade, que consegue nos afetar pelo que há de mais valioso para o ser humano, a relação com o outro. Tudo está na troca do teatro, como dito acima por Peter Brook, seja um espetáculo local, ou o que está de passagem pela terra dos marechais. Seja contemporâneo ou realista, o que é necessário para que o efêmero do teatro se mantenha é a presença, dos que circulam pelo país acreditando no teatro como contato direto com o público, como os que resistem no teatro alagoano fazendo o que lhes é mais válido, o encontro com o público. 

Referências:
1-Pavis, Patrice- Dicionário de Teatro/Comédia; pg53 2- Benczik, Edyleine- A importância da figura paterna para o desenvolvimento infantil 3-Pavis, Patrice- Dicionário de Teatro/Realidade Teatral; pg326 4-Brook, Peter- A Porta Aberta
Serviço:
Ele ainda está aqui

Texto e Direção _ Silvio Guindane
Elenco _ Emílio Dantas, Thelmo Fernandes e Omar Menezes
Produção _ Nacional Selva Produções/ Vira Lata Produções
Produção Local _ GA Produções

CRÍTICA:"Pós-Medusa" do espetáculo "Medusa ao Reverso" de Kamilla Mesquita

Tessitura _ Jocianny Carvalho 


  O espetáculo de dança “Medusa ao reverso” foi visto no sábado dia 29 de junho de dois mil e dezenove. O solo de dança é da bailarina e professora Kamilla Mesquita, que conta agora com o dramaturgismo de Jessé Batista. Antes de mais nada é uma espécie de ritual feminino, algo que reverbera sensações mesmo que distante. Talvez essas vibrações não sejam perceptíveis num texto, talvez não seja possível colocar num texto, talvez nem seja visível para todos, a olho nu.


  Um corpo feminino que dança, um corpo inegavelmente conquistado. Uma carne que pesquisa, que se mantém firme e elástica a todos os vieses dessa medusa. A estrutura física oferece a liberdade para que surjam dali centenas de significados possíveis. O seu olhar não assusta a todos. Assustar quem sabe não é sua intenção, alertar possivelmente? A medusa seria um terrível monstro ou uma criatura forte o suficiente para intimidar? Os grunhidos delas, das várias criaturas ali poderiam ser interpretados de várias maneiras, elas estavam encarceradas dentro daquela ordem carnal.


   A estátua grega feita de mármore deixava até a luz que sempre fora quente, fria. O corpo cinza, só o vermelho é fogo. A consciência corporal é exposta sempre de dentro pra fora, difícil acompanhar só com o olhar tantos detalhes, o tufo de cabelo, a briga interna, os dedos das mãos, os pés, o vestido, são camadas e camadas mas é apenas uma mulher. A água posta através do som parece uma lâmina cruel que reflete cada deslocamento e deixa claro para os seres ali que não há nenhum completo domínio, deve ser um corpo que gira, deve ser um corpo volante, deve ser tensão, deve ser equilíbrio.



  Uma mulher e um universo inteiro, o corpo feminino e toda sua mutação, seus hormônios e órgãos postos pra fora fazendo uma dança inquieta, sendo levemente ou bruscamente convidados a voltarem para o interior. A mulher que deveria ser contida, em sua trança, mas que não conseguia por ser forte sua natureza fêmea. A mulher que se auto mutila e se desfaz, e refaz. Essa mulher é reconhecida, o alumínio cancerígeno nas axilas, depilação à cera, sutiã, salto alto, cinta modeladora, o furo na orelha da recém-chegada, cerrar cabelo com os dentes, todas formas de se lacerar. É um enfrentamento de uma parte feminina que cabe no universo de maneira dócil e uma intransponível e insubmissa. Uma Pós-medusa que não cabe em si, mas que deve caber.


FICHA TÉCNICA:

Espetáculo _ Medusa ao Reverso

Criação e Interpretação _ Kamilla Mesquita

Dramaturgismo _ Jessé Batista

Produção _ Sara Lessa

Fotografias _ Nivaldo Vasconcelos

CRÍTICA de "Tarja Preta" da Cia do Chapéu

Crítica de Tarja Preta *
Tessitura _ Bruno Alves


Estamos em uma sala escura.

O tic tac do relógio anuncia que vai começar uma jornada em uma madrugada dentro de um corpo insone, corpo do nosso tempo, nosso corpo ali talvez, presentificado em Joelle Malta. Corpo que se repete e se desloca no "silêncio" e no escuro.

Relógio parado. Tempo parado. Tempo que parece nunca passar. Minutos que duram uma eternidade no corpo de quem sente.



A Cia do Chapéu, que celebra em 2017 seus quinze anos de atuação, retorna com o espetáculo "Tarja Preta" estreado em 2014. Nele, somos convidados a testemunhar, a se fazer presente dentro da temática da depressão em nossa sociedade.

Nenhuma palavra se fez necessário verbalizar para que a ação dramatúrgica se fizesse forte e impactante. É a imagem, a luz, a sombra, a respiração, a repetição dos movimentos que nos contam como é viver dentro desse corpo.

A dramaturgia do espetáculo é construída a partir dessas imagens potentes, como um filme que se desenha em nossa frente. É a ação. A ação no escuro. A ação sendo mostrada através da luz. O relógio que parece não fazer passar o tempo, a comida que não consegue ser engolida e o corpo fastioso, o corpo que se rasga para aplacar a dor.

Joelle ali naquele espaço em que desenha sua ação entre a luz e o escuro nos transporta para dentro dessa história e nos deixa ver como testemunhas bem próximas.



Uma luz é construída a cada ação, e eis que essa luz sempre me chamou atenção desde a estreia em 2014, por criar imagens fortes. Uma luz cada vez mais precisa sendo manipulada de uma forma que não sabemos quem está por trás, se é um(a) técnico(a), ou se somos nós. O poder da luz vai ganhando cada vez mais força quando percebemos que agora é aquele corpo que a manipula, que dança com ela no espaço. Uma dança que nos deixa aflito, que desenha no espaço angústias e inquietações.

Joelle constrói esse corpo potente, que comunica, que faz uma anatomia do assunto, desenhando de forma honesta e sem melindres. Mostrando de forma forte, como é na vida real. Ela está entregue. O mínimo dentro do espetáculo é muito para nos fazer entender a dimensão do assunto.

Joelle Malta se coloca diante da situação. Transita entre memórias e criar um universo coletivo que nos faz estar ali em cena.

Resta o silêncio ao final. O silêncio e o tic tac do relógio dentro de nós.

* A crítica foi escrita durante o Festal 2017 e publicada em seu Blog em outubro daquele ano.


Ficha técnica:
Direção: Donda Albuquerque e Thiago Sampaio
Elenco: Joelle Malta
Plano de luz: Donda Albuquerque
Execução do plano de luz: Lais Lira
Execução de cenografia: o grupo
Plano de Indumentária: o grupo
Sonoplastia: André Cavalcanti
Arte Gráfica: Alex Walker

Fotomontagem: Nivaldo Vasconcelos

CRÍTICA "Os que vêm de longe" do Teatro da Poesia

Crítica "Os que vêm de longe" *
Tessitura _ Jocianny  Carvalho

A condição da existência humana pode ser a possibilidade de gerar significado. Ações, objetos, pessoas e reticências... Literalmente tudo pode significar, e o quão longe podemos ir com uma cadeira? Palestina? Sudão? Síria? Congo? Colômbia? Um oceano de possibilidades. A companhia Teatro da Poesia propõe uma imersão na realidade dos refugiados lançados ao redor do mundo, e é inegável que conseguimos enxergar, a cada momento de apresentação, todo longo dia de trabalho que aplicaram ao longo de nove meses, e como resultado, sem dúvidas, temos um belo espetáculo que reflete de forma benéfica o Festival de Teatro de Alagoas - FESTAL e o cenário teatral maceioense.



Em seu livro A imaginação, Sartre diz que a imagem é “uma coisa menor, que tem sua existência própria, que se dá à consciência como qualquer outra coisa e que mantém relações externas com a coisa da qual é a imagem”. Faço esse passeio por Sartre porque o espetáculo em questão, Os que vem de longe, proporcionou uma infinidade de imagens que se transformaram potencialmente em coisas diante de nós. E ainda que a imagem seja teoricamente menor do que a coisa, neste caso, de forma tênue, ela foi tornando-se quase real, mas, mesmo conseguindo esse status de imagem-coisa, ela não deixa de ser imagem, não deixa de ser ínfima, o que a transforma em mito, utopia. 


A montagem trata de várias realidades, que conseguimos acessar através das várias imagens e diversas palavras poéticas. E sim, eles podem esbarrar com algum espectador cansado, querendo mudança, que diga: fake news e apropriação cultural!  Mas, a ele, simplesmente responderia: tornamos imagens em coisas, então, nesse caso, o resultado é totalmente positivo. Tornamos o invisível em visível. E visibilidade é realmente algo especial. Algo que faz com que o ser humano que habita, às vezes descansando, em cada um de nós, desperte e faça alguma “coisa”, que pode ser apenas uma lágrima simplória, mas que nos lembra da nossa banal existência.  Mas, para além desse espectador cansado, também é necessário dizer que, mesmo com todo esmero e dedicação de uma pesquisa, jamais conseguiremos estar lá naquela grama, procurando as cabras curiosas de Sunamita. É preciso dizer que isso é poesia, por mais que essa vívida representação nos toque, nos cause catarse, ainda assim é necessário dizer: não estamos no mesmo barco. E talvez, ainda assim, seja necessário explicar: existem muitos barcos. 



Cadeira. A única coisa que de fato é posta concretamente para nós. E que, por ironia ou poesia, como diz Faruk, “queimamos primeiro das escolas”. Escolher a coisa que mais rapidamente pode ser descartada como o eixo central da cenografia, e que também podemos associar a esses “refugiados”, que facilmente foram (e são?!) descartados e lançados à diáspora — não podemos negar, isso é poesia. O que propõe, já no nome, o grupo. 

Se possível for, não usem mais o canhão de ar: ele corta as suas palavras e banaliza a sua poesia. Se esse robô fosse programado evaporar quando a cabra curiosa fosse bisbilhotar na grama, poderia ser um “talvez”, mas, ainda assim, parece que sobra. 

É possível imaginar? É possível ser mãe e sentir-se só? É possível voltar a comer patacones com alegria? É possível não sentir algo musicalmente celestial? É possível existir? É possível resistir? Eles nos mostraram que sim. Eles, que vem de longe. 


* A crítica foi escrita durante a apresentação do espetáculo no Festal 2018 e publicada na Revista #Textão nº 7



FICHA TÉCNICA
Direção: Jadir Pereira
Dramaturgia coletiva
Texto: Jadir Pereira, Jamerson Soares e Louryne Simões
Elenco: Aldine de Souza, Camila Moranelo, Jamerson Soares, John Fortunato e Louryne Simões
Direção de Produção: Geraldo Neto e Lídia Santos
Cenografia: Jadir Pereira e Louryne Simões
Figurino: Meson de Lira
Iluminação: Moab de Oliveira
Sonoplastia: John Fortunato
Maquiagem: Lucas Lerato
Responsável Visual: John Fortunato
Fotografias: Amanda Môa






“Estendam ás mãos já! - Narrativas Individuais para Construções Coletivas”

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