Festal 2021: Descendo pela máquina de Pinball

                                                                                                                 
Tessitura_Jocianny Caetano




Legenda: registro da performance Estranhe de Ayó Ribeiro. Fotografia por: Alvandy Frazão
Texto alternativo: performer no centro da imagem, sustenta-se entre fitas na cor preta que são presas através de três mastros de ferro. Atrás du performer está a entrada da Secretaria de estado da Cultura de Alagoas.


Em um desses programas sobre coisas grandiosas inventadas por humanos, uma mulher explicava porque era moradora daquele maior prédio do mundo, e ela conta que está ali porque quer participar da história, e mesmo com aquele prédio de 828 metros balançando, ela participa. Aquela mulher parece com essa que escreve.

O Pinball é um brinquedo retangular, que consiste em duas palhetas que seguram a bola e a empurram em vários desafios e obstáculos até que se chegue no final. O Festival de Artes Cênicas de Alagoas em 2021 - FESTAL 2021 é sobre girar, e esse movimento da infinitude de um círculo é uma idealização. O que se quer é circular, mas ainda estamos aqui descendo pela máquina de Pinball, é isso que percebemos na terceira gira do FESTAL com o tema de “acessibilidade”, a resistência de um Festival que permanece há seis anos e em sua sexta edição buscando aproximar-se de quem vê e quem faz artes cênicas em Alagoas, desta vez no formato online.


A janela é muito pequena

A mesa redonda com o tema “Acessibilidade: potências, entraves e pré-conceitos na produção e recepção de trabalhos artísticos” contou com as presenças de Igor Rocha, professor, ator e palhaço e da Isabel Alvim, pedagoga e poeta. São histórias potentes na arte, houve muita reflexão e luta para ocupar os seus lugares, apesar das cadeiras estarem reservadas para eles na mesa, as condições para chegarem até ela não foram iguais, e aqui cabe uma reflexão: onde está realmente a deficiência? Na pessoa ou na sociedade?

O palhaço Surddy de Igor trouxe para ele uma possível resposta do que significa a arte, que o corpo é uma língua que dialoga com u outru. Isabel se encontrou na poesia Slam, um espaço para compartilhar gritos guardados e corações que batem em todos os lugares. Igor apresenta Lucas Ranon, surdu cartunista alagoano, Isabel traz Catharine Moreira, atriz, poeta, Slammer e dançarina que lhe impulsionou a ocupar sua cadeira. Pessoas que oportunizam outras pessoas porque a janela é muito pequena. E nessas falas provocadoras para nós ouvintes, o que fica é a certeza de que vocês não são capazes de serem menos, continuem trincando os vidros.

O que se nota é um encontro nas falas sobre o momento em que se viram artistas, no dia 26 de setembro, dia du surdu. Pode ter sido em uma quinta para Isabel, em um sábado para Igor, mas o redescobrimento foi feito a partir desta data; o que nos faz voltar ao questionamento da Isabel, quando perguntada sobre a eficácia da legenda e da tela de acessibilidade, que questiona: por que a janela é tão pequena? Por que não ser 50%? Estamos em outubro, e refletimos sobre isso, mas o FESTAL, apesar de disponível em seu canal do Youtube, possui um mês de duração, o dia 26 de setembro apenas 24 horas, precisamos começar a reformar a janela.

O que acham de começar essa reforma de vez? Compartilho alguns nomes de artistas e coletivos aqui, e os convoco a também compartilhar nos comentários, valendo: Carolina Teixeira, Instituto Teatro Novo, Vitória Bueno… (continue)


Tapete marrom de pelos

 


Legenda: registro do espetáculo "O que existe entre nós da Cia. Mestres da Graça de Palmeira dos Índios. Fotografia: Mário Zeymison
Texto alternativo: dois atores no centro da imagem, vestidos de camisa e calça na cor vermelha. Um dos atores está sentado com os dois braços nos joelhos, se coloca de forma lateral, o outro está agachado com as duas mãos sobre o ombro do primeiro. Há um músico no canto esquerdo da imagem com seus instrumentos musicais.



No dia 15 de outubro de 2021, dia dus professores, a prática artística “O que existe entre nós?” da Companhia Teatral Mestres da Graça, localizada em Palmeira dos Índios, foi compartilhada no Festal 2021. São três personagens em cena, corpos que possuem a intenção de se perder mas ainda não são entregues ao abismo, porque se distribuem nos limites da dimensão do tapete marrom de pelos. Somus convidades a investigar as relações, mas no escuro das entradas e saídas e choque entre lirismo e cotidiano feroz, ouvimos o som curto e pontual do músico presente, um ponto e vírgula, exclamação, reticências e fica a interrogação: o que existe entre eles?

A morte de Leonardo, por apenas andar de mãos dadas na rua ao lado de seu companheiro nos causa revolta e tristeza porque nada é ficção, apesar da poesia com que se diz, o coração figurativo branco neve que repousa logo atrás do casal no chão do tapete marrom de pelos, que agora sangra, é real. Quatro casos de homofobia por dia, 5 mil mortes em 20 anos, um professor Acioli no mês de setembro. Há uma ação dita de Palmeira dos Índios e uma reação vinda de vários lugares, porque o arquivo cênico nunca morre, ele vive sempre que há alguém para acessá-lo, que esteja disponível, presente. O palco entre artista e espectador é sagrado, seja no espaço que estiver.


3x4 para guardar


Legenda: registro do espetáculo Eu sem você não sou ninguém da Cia. Turma do Biribinha de Circo e Teatro de Arapiraca. Fotografia por: Samuel Fotografias
Texto alternativo: ator e seu boneco no centro da imagem, ambos com maquiagem de palhaço. O ator à esquerda da imagem possui expressão de surpresa e blusa de listras horizontais nas cores, azul, cinza, vermelho e branco. O boneco está a direita da imagem, veste um colete zadrez amarelo, e blusa listrada nas cores vermelho e branco. No cenário atrás dos dois existem figurinos de cena e uma mala de bolinhas coloridas.



- Eu caí, e foi bom.
Denise M. Lucca


Eu sem você não sou ninguém da Cia. Turma do Biribinha de Circo e Teatro de Arapiraca, é o presente de um amigu. Uma foto 3x4 para por na carteira e te acompanhar. Ao assistir você sai com com a história de alguém de lembrança, Teófanes e seu boneco Biribinha, um fim que é o começo. Também é um diálogo com o tradicional e o atual, e que potência que o circo tem! Eles perguntam e nós respondemos, pelo chat ou pela tela.


O tempo da resposta está com eles há mais de 63 anos, quando Teófanes nasceu, nasceu também um leão. Um leão por dia desde então, Teófanes, Biribinha, Seliana e sua turma precisam matar, para manter o picadeiro que desta vez surge em luzes piscantes que formam um triângulo, remotamente. A necessidade de sobrevivência é o que torna Biribinha acessível a nós, e nos faz refletir se somos bonecos, ou se somos gente. Ou ainda, se estamos conscientes todo tempo ou são as quedas que nos tiram da alienação. A queda faz a gente se descolar e refletir sobre esses fragmentos. Teófanes caiu, e foi bom.


Placa da rua do sol


O que fica dito na performance Estranhe de Ayò Ribeiro, é que precisamos estranhar o centro, esse lugar tão terrivelmente confortável que traduz uma impressão de equilíbrio. O que fica dito, é que u performer está respondendu, sinalizandu e mastigandu lugares impostos ao corpu trans-não-binárie. Existem lugares impostos a corpus trans não-bináries? Ou será que ainda vão criar para vender, cobrando alguma moeda nova tipo pink money?


Ayó, atrás de você aparece o sol, é uma placa com o nome da rua. A rua do sol, o palácio do governo, o azulejo de uma representação de Jesus cristão, bandeiras, uma porta da secretaria de cultura que se fecha, pausadamente. São muitos signos, muitas simbologias, muitas reações. Ayó escancara o desequilíbrio, a censura, caixinhas de gênero, as notinhas de repúdio. Dançar aqui é urgente, é um reexistir. Essa performance se propõe a debater sobre as saídas e discursos criativamente preguiçosos que são impostos a corpus que não cabem na caixa. Confiem nelu e elu fará grandes coisas.


A terceira gira do festival termina com o show da cantora Malta Lee, que com sua calmaria canta sobre sobre “us que querem ser amadus e não permitem-se ao amor”. A delicadeza dela se encontra com us interpretes de libras : Danilo Jatobá, Roberta Rafaele, Charliane Ferreira, Bruna Vasconcelos, Renata Costa e Bárbara Lustosa, que buscaram traduzir com o máximo de gentileza cada palavra dita pelus artistas.


O engenheiro do prédio que foi citado no início do texto conta que ele balança mas que sua estrutura engana o vento. Que o FESTAL continue enganando o vento, sendo uma palma de mão aberta que se empenha para que o encontro das artes cênicas em Alagoas seja sempre acessível a todes, que a busca seja sempre ser um girar mesmo que descendo pela máquina de pinball.









FESTAL 2021: Girar entre ruínas

Tessitura _ Bruno Alves


   Estou dentro de casa, enquanto procuro palavras para descrever uma narrativa coletiva que se forma diante da tela. Uma parte de mim quebrou no meio da jornada e agora procuro encontrar as direções que desconheço, procuro escrever de um outro lugar desabitado por mim, por tanto tempo. Entre fraturas e ruínas, busco a vida que gira em formato de festa. Uma festa que se propõe colar pedaços, diminuir distâncias, ajustar o movimento, enquadrar a tela a cada corpa, possibilitar amparo entre estruturas desestabilizantes, encontrar rebocos, areias, cimentos, rochas, pinos, fios, tipoias ou qualquer coisa que ajude a manter de pé a casa que delicadamente construímos. Não é sobre o conforto ou conformismo que gira essa roda. É mais sobre fazer explodir os gritos e o sangue cobertos pelo concreto. Estamos em festa, embora o coração esteja em luto. Estamos em festa, porque nos resta a luta.

  Aqui não trago receitas ou mesmo respostas. Trago a dúvida debaixo do braço, direito para ser mais preciso. Permita-me aqui duvidar das coisas e reclamar ausências. Permita-se também. Giremos juntes no meio da dúvida e da ausência, é possível. Te peço a presença.

  É parte da construção e pesquisa das Artes da Cena, o estudo e a busca pela presença. Diante da pandemia da covid-19 que vivemos, pensar a presença se tornou um desafio para muites artistes que mergulham e provocam experiências cênicas dentro do universo online. Mas, ouvindo o professor Victor D'Oliver da Universidade Federal da Paraíba em agosto deste ano durante uma aula, eis que uma frase sua me conecta ao momento que vivemos. Naquela ocasião, ele nos provocou: "Estamos falando o tempo todo sobre presença, quando na realidade é sobre as ausências que devíamos falar".


  Em 2021 a sexta edição do Festival de Artes Cênicas de Alagoas - Festal, eu ouso dizer, que é para tratar sobre ausências. Ausências, não como sentido de inexistência, mas de apagamento, invisibilidade  e silenciamento dentro das Cenas de Alagoas. É preciso falar sobre essas ausências e isso o Festal se propõe nessas cinco semanas de outubro. 

  São cinco giras que farão esse festival online e gratuito. Reflexões e tensionamentos sobre "Artes Cênicas e Cultura Popular", Memória e política", "Acessibilidades",  "Gênero e Sexualidades", "Cenas Pretas/Negras" são temáticas que criam um aquilombamento de resistência e celebração das coisas que aqui acontecem.

  Memória é um dos eixos do Festal. Em 2018, foi tema central da quarta edição e contou com uma mobilização para a construção da exposição “Fios da Memória das Artes Cênicas de Alagoas” que ficou exposta no Museu Théo Brandão durante o mês de outubro daquele ano.

  Nossa memória é feita de resquícios, um quebra-cabeça que vamos montando coletivamente a partir do que vivemos e do que outres viveram. Nossa memória carrega ruínas. Ruínas deixam vazios, às vezes imensos, às vezes pequenas pistas do que por ali se passou.

  Costumamos dizer, que temos memória fraca, que esquecemos com bastante agilidade do que há pouco se passou. Por isso, criamos narrativas diariamente para afirmar nossas presenças e existências no mundo. E se tratando das Artes da Cena, as experiências permanecem acesas naqueles que viveram, pois trazemos também na essência a efemeridade como pacto para o acontecimento. 

  Foi sobre construção de narrativas, memória e política que Telma César e Glauber Xavier foram convidados a falar na mesa de abertura da segunda Gira que contou com a mediação de Ana Antunes e tradução em Libras de Claudia na quinta-feira (07/10). Assisti-los é reafirmar um espaço de construção de narrativas, frase que me fixo graças às palavras iniciais de Telma César. Um espaço político sim, por necessidade e essência de resistência no fazer local. 

  A mesa de abertura nos aponta caminhos que hoje refletem na nossa história, que desembocam inclusive no surgimento do Festal. São trajetórias que falam por si mesmas e vemos nos Saudáveis Subversivos já no começo de sua caminhada, um exemplo de diálogo com outras tecnologias, inclusive com a existência de seu site que traz um acervo da história do grupo. 

  Seguindo o movimento da gira, na sexta-feira (08/10), noite em que o Brasil atingia a marca de 600 mil mortes pela Covid - 19,  A Cia El Gibor trouxe para nossas telas o arquivo do seu espetáculo “Mariah 's”. Um espetáculo que traça com beleza e lirismo, o movimento construído no espaço para contar histórias de mulheres e reafirmar que #somostodasmarias. Quantas Mariah 's foram tiradas de nós pelo vírus e incompetência governamental? Eu me pergunto, enquanto assisto.


  Existe um momento em que surgem dois depoimentos de duas mulheres falando sobre suas trajetórias de vida, suas relações com fé e maternidade. São momentos que nos conectam de uma maneira muito pulsante na tela, porque estamos todos os dias em busca de narrativas. Ouvir aquelas mulheres nos desperta e ficamos esperando que surjam outras Marias na tela. Selma Pimentel, diretora da Cia, torna o palco um espaço plural com corpas e experiências de vida e dança diferentes. Selma se percebe também como uma Maria que dança. Carrega em sua corpa o “você não pode dançar ballet”, ouvido na infância por ser uma mulher negra. Transforma os “nãos” que recebeu em escola de dança, em Cia, em movimento. Ela se desvia da rachadura e cria a própria narrativa voltando aos palcos para celebrar outras Mariah’s através da dança. 

  No sábado (09/10) giramos na ausência. "Um túmulo chamado Pinheiro" retorna ao bairro, destruído pelas escavações da Braskem, para num ato político retomar e exigir o respeito à memória das pessoas que viviam no lugar. 

  Caminhar entre ruínas, procurar memórias diante de um cenário de guerra, exigir o respeito e respostas que até hoje famílias inteiras esperam. O trabalho do grupo nos chama para adentrar os buracos abertos pelo sistema em que vivemos. Quem vai fechar o buraco deixado na história? A voz de Wagner Santos, a fotografia de Roberta Brito e a atuação de Alan Cardoso e Rilton Costa nos fazem caminhar entre vazios e moradas interrompidas. A audiodescrição de Bárbara Lustoza entra no espetáculo de forma simbiótica, narrando para nós o que restou do espaço. É interessante como esse encontro entre a prática artística e a audiodescritora criam uma potência maior ao espetáculo. A presença das máscaras teatrais fazem essa mistura do teatro com o audiovisual, mas deixa dúvidas se a intenção era tornar aquele rosto fora do comum ou tentar não identificá-los, porque disputam de alguma maneira a atenção com o espaço que já nos diz muito.  Como essas corpas mascaradas expressariam com mais profundidade o encontro com o vazio e a devastação?




  "No próximo passo tudo acontece"... Uma rachadura, um abismo, uma voz silenciada, um disparo... Em "Cadáveres não dão depoimento", apresentado na mesma noite, Everlane Moraes aponta o dedo na ferida cotidiana vivida por mulheres e a violência que sofrem a cada passo. Fala, principalmente, por mulheres negras e periféricas, lugar que conhece, que vive. Seu lugar de falar. É a segunda vez que temos Everlane na programação do Festal. De lá pra cá sua voz tem se tornado mais forte, seus gritos mais urgentes. Ela nos leva para trilhos de trem, pra dentro do mercado com pessoas passando e carne ao lado sendo vendida. Ela dança no meio da vida que pulsa resistente dentro do Mercado Público de Maceió. Lembra-nos qual é "a carne mais barata do mercado". 

  Quando sabemos que Everlane vai estar presente, sabemos que vem uma verdade direta, crua, sem melindres. Para mim ela representa uma das vozes mais pulsantes e potentes da nossa cena. Ainda pouco vista, ainda pouco ouvida. Ao vê-la nas ruas, no meio das trabalhadoras e trabalhadores da cidade pensei: "Sua atitude, seu discurso político, sua voz, sua dança é tudo que essa cidade precisa. Nós também precisamos ser mais Everlanes". 

  Agora que ainda reverbera em mim a potência do seu discurso, eu pergunto: Como ela poderia construir suas imagens de uma maneira que torne cada vez mais forte e potente sua voz? 

  No domingo (10/10) fizemos a roda virtual com artistes e público através da plataforma Zoom. Foi momento de ouvir e compartilhar impressões sobre os trabalhos. Ficamos mais próximos das práticas e da vida de Selma Pimentel e Everlane Moraes. Infelizmente não pudemos ouvir as pessoas envolvidas em "Um túmulo chamado Pinheiro". Essas ausências causam impacto no ritmo da Gira, porque a velocidade em que giramos é feita com a força de todes, mas a tarde seguiu com os diálogos com as artistas presentes e a mediação de Lili Lucca. Pela noite, e de volta ao canal do YouTube do Festal, voltamos a celebrar a vida com o show da banda Gato Negro de Arapiraca, porque é preciso celebrar os caminhos percorridos para continuar girando.

  Vivenciar a experiência online tem sido uma aprendizagem sobre presença. Construir experiências artísticas e um festival virtual é um giro entre os detritos  que nos cercam nos últimos tempos.

  O Festal nos aponta caminhos para a resistência e sobrevivência. Reconstrói em nós pedaços quebrados no caminho. Levanta outras estruturas, pontes e atravessa muros. Essa narrativa coletiva de esperança segue girando, mesmo que entre ruínas.



Imagem 01_"Um túmulo chamado Pinheiro"
Imagem 02 _ "Mariah's"
Imagem 03 _ "Cadáveres não dão depoimentos"

Cenas do Nordeste: Entrelaçando Discursos Singulares


Tessitura_ Lili Lucca    


    Entre os dias entre 02 e 10 de abril de 2021 fomos apreciados por um encontro virtual com as artes cênicas nordestinas. Alguns dos artistas de Natal em conjunto com a Ardume Produções, que foram contemplados pelos incentivos da Lei Aldir Blanc, fomentaram mais um trabalho: a segunda edição do “Cenas do Nordeste”. Um encontro de artistas dos nove estados que compõem o nordeste representados em dezoito trabalhos, os quais aconteceram pelas plataformas virtuais, no aplicativo ZOOM Cloud Meetings e com exibição pela plataforma do Youtube.   

Um festival que interliga estados, fortalece esses territórios e os artistas que ocupam as artes cênicas, frente a uma vasta produção artística absorvida através de plataformas online, uma experiência única de conhecer, acessar e degustar a produção daqueles que nos cercam. As presenças e a proposta do “Cenas do Nordeste”, trazem consigo a troca com outres, por meio das janelas virtuais, em um momento no Brasil e no mundo em que vivemos uma pandemia há mais de um ano, vindo a ser estabelecida como a única possibilidade segura para o diálogo e encontro.  Hoje, há aqueles que quase em coro esperam ansiosos pela volta da presença física, mas há também aqueles que experimentam o virtual e compreendem nele outra viabilidade para olhares cênicos.  

No “Cenas do Nordeste”, ao vislumbrarmos os artistas e seus trabalhos, por meio de telas distantes, somos contemplados com novos olhares, às vezes com fotos ou imagens escuras que iam a cada encontro se revelando, e de lá vozes, olhares tímidos e sorridentes, cenários diferentes, expressões, cores e troca de gestos, palavras e sentimentos. Um encontro efêmero nas nuvens do online todos os dias, novos sons, imagens, sotaques, e laços surgiam, nesse ritual da conversa, da escuta, do simples nome impresso na tela escura, da contagem de pessoas chegando, da voz que diariamente anunciava os trabalhos, construiu-se o efêmero de um festival que deixará em seus vestígios de laços e fortalecimento indispensáveis.  

Espetáculo- Pra Frente o Pior - CE

Os dezoito trabalhos, que compuseram a programação do “Cenas do Nordeste”, trazem em seus discursos e imagens, toda a probabilidade de criação dos noves estados que compõem o Nordeste, de povos diversos, que são imensos e engenhosos, e que elaboram onde a probabilidade se resume de forma simples: aqui tudo é possível.  

Tecer essa experiência é uma forma aqui de saudar a troca, a força de trabalho desses artistas e produtores e documentar a memória efêmera de quem estava presente na construção diária desse festival, criando vínculos, tensionando cenas, respondendo perguntas, acendendo a escuta, esgarçando o tempo, rompendo e ultrapassando toda a potência desses artista, e nesses encontros tínhamos a acolhida acalorada de Daniela Beny e todo o magnetismo de Franco Fonseca. Ambos na curadoria, mediação e apresentação desses artistas e seus trabalhos, conversando com o público e promovendo arte. 

Entrelaçar os vestígios do online é um pensamento acerca da experiência da junção pela arte, é a construção de um olhar atravessadamente crítico do “Cenas do Nordeste” o qual lança um olhar para aqueles que nos veem de todos os outros lugares. Nesta cena, como eu já disse e repito, tudo é possível, o que escrevo, visita as minhas sensações e curiosidades, presenciando estéticas, atravessamentos de poéticas e dramaturgias, mas como dizem os antigos, o teatro, logo as artes cênicas, acontecem na presença, detalhado aqui que o que vivi nesses encontros efêmeros será um documento do que foi o “Cenas do Nordeste” em 2021. Demonstrando que os trabalhos exibidos são a história de artistas brasileiros, sua cultura, seu local geográfico, sua classe social e tudo que se ergue hoje em nossa sociedade. 

Desde que foi declarada a pandemia da Covid-19 pela OMS(Organização Mundial da Saúde) em março de 2020, estamos experimentando outras formas de ser em sociedade, nós os artistas, críticos e produtores, procuramos arquitetar novos caminhos de sobrevivência e para isso buscamos também nosso público, vislumbramos novos meios de encontro, de impulsionar a arte, como transformar a tela em “palco” e trazer o público para essa nova realidade. Como enxergamos tudo ao nosso redor no s recolocarmos em cena, para onde direcionamos esses olhares. Demonstro e sinto um pouco do que vejo, impossível não sentir, e acendo com minhas orações um olhar que quer ampliar essas cenas.

Olhar para o céu e querer voar, “PARA ONDE VOAM OS PÁSSAROS, da Sociedade T do RN”,  um trabalho que se direciona já para o online, um dia sairemos das animações da tela e voltaremos a contar histórias as crianças, a inventar. Dois meninos grandes, que se vestem igualmente, contam o que um dia lhes foi contado ou visitam uma história de livros criando personagens reais e concretos como o palco em que estão habitando.

 Você tem olhado o céu? 

Tem contado histórias? 

Tem visto os pássaros? 

Um trabalho que usa elementos de cena simples e simbólicos, que podemos criar com nossas crianças, uma história que te chama a olhar para o céu, a viver como os pássaros livres.  Reaprender a brincar, a imaginar, contar uma história com o que você tem em casa, rastros de um fazer de conta. Soltem os pássaros, é na liberdade que aprendemos, tanto é na liberdade, como naquilo que não é visto de forma nítida, que estão nossas forças alternativas de mundo e de arte. 

O artista cria com total liberdade, é assim que na criação de trabalhos ele alcança imagens e nos entrega o mundo, que muitas vezes não enxergamos. “SONHORIDADES PARA DESADORMECER SERPENTES, de Elton Panamby do MA”, um trabalho que segundo o artista em nosso encontro no zoom, foi também criado para o online, mas que traz consigo processos de alguns caminhos já percorridos pelo artista. A elaboração da imagem, acessa nosso despertar e nos leva a estados de sonho. Um trabalho cênico, em vídeo, editado e processado, uma estética para subverter a que tradicionalmente vemos. Estamos diante de outra corporeidade, um corpo que não ocupa espaço físico convencional, a imaginação tem um corpo, a imaginação ocupa um corpo. É como despertar perante um sonho, líquidos, sonoridades, fractais, apenas vestígios de imagens nos atraindo ao afundamento, é como se no sonho a vida estivesse latente e fizesse sentido. Vestígios de vida muitas vezes insignificantes, assentados perante todos nossos sentidos, conseguimos desadormecer e percebê-los? Até onde alcançamos nossa consciência. 

Sentidos, sentimentos, silenciamentos, sonoridades, vozes, caminhos, o caminhar de mulheres. Foram aproximadamente 26 mulheres em cena, todas empunharam sua voz, seu corpo, sua força, e poesia para contar suas histórias e das outras, outras essas que como nós muitas vezes, falam e não são ouvidas, passam e não são vistas. As mulheres presentes no “Cenas do Nordeste”, carregam em seus trabalhos o gestar feminino, trabalhando aliadas a homens elas apontaram para cena como protagonistas do Festival, não pela quantidade de trabalhos feitos por elas, e sim pela coragem de suas dramaturgias colocadas em cena. A mulher que por anos foi musa de artistas, agora desenha a cena e conta histórias, estabelece seu enredo, e seu corpo que foi inspiração, agora é revolução. O corpo fêmeo, a voz que grita e narrativas, que trazem mulheres diversas cheia de luta e vida. Artistas que em seu trabalho depositam no Cenas um diálogo feroz, revelador e aglutinador de muitas de nós.   

Espetáculo - Vulcão - SE

Nem todas têm a mesma cor, e muito menos a mesma dor e realidade, mas todas elas conversam e expressam em seus trabalhos o engajamento imprescindível dessa união. Corpas no espaço. Corpas em um espaço que já lhes foi negado. O movimento da mulher move o mundo, elas criam vidas. 

Um corpo que é livre, investiga, transpõe e subverte o que lhe foi posto pelo patriarcado. O corpo feminino que traz desobediências libertárias e únicas para sua criação. “”Utopyas to Everday Life, de PE”, são corpos expandidos, uma utopia de encontrar-se para existir, o desejo é simplesmente de colocar esse corpo em movimento. O corpo é maior que o espaço. Corpos e corpas que, em sua materialidade, se movimentam, criando sentidos, comunicando e dilatando-se. Libertas em uma única ação utópica, o encontro do meu corpo no espaço. A música, as imagens desses corpos são um convite ao movimento e à dança. Utopyas é o simples e preciso movimento de termos todas as corpas libertas!  Corpas em erupção, que correm, brincam pelo espaço, e dizem sobre si suas dores e desejos. 

Um VULCÃO. Anos convivendo com silêncio, mas agora elas se movimentam. “VULCÃO, do Caixa Cênica_ de SE”, vem cheio de memórias, palavras arrebentadas de uma atriz que explode em contos sobre sua “casa” teatro. Esse Vulcão, alcança a todas nós. Somos ensinadas a não sentir, a deixar tudo no avesso, e assim vamos definhando em nosso íntimo tudo que é sentido, tudo que precisamos dizer para viver. O Vulcão que parece íntimo diz sobre todas as amplitudes que pode conseguir a mulher, mas ela não sabe chorar, ela é apertada, seu corpo adoece. Até que uma revolução interna acontece e as erupções nos contagiam. No quintal de uma casa, com bonecas e vestidos correndo a cena junto ao público. O momento de falar da atriz é grandioso.  

Grandiosas. A continuar seus caminhos e criar suas histórias, de seus lugares, a olhar para suas mulheres, estender os braços, escutar e contar a importância de todas. Caminhar por solos arenosos, argilosos, rasos e profundos, caminhar mais e encontrar, mares, rios e lagoas.  

“Ela não sabia que dentro dela existia uma força.” “Entre Rio e Mar Há Lagoanas, do Coletivo Hetéaçã -AL” vem contar a realidade das mulheres à beira da lagoa, das mulheres à margem da sociedade e trazem para a cena o discurso de anos de histórias de mulheres que são invisibilizadas. Mulheres cotidianas, a máscara é o elemento que dá voz e protagonismo a essas história, e nesse solo híbrido que sobrevivem essas mulheres, o sururu, o canto, a esperança e a força das águas com seu movimento de todas as figuras femininas nesta região prossigam, mesmo contra a corrente. Ser mulher nesse país, ver e observar suas histórias, a violência sobre seus corpos, é sobreviver. Entender como sobrevivermos é a busca do poder, pela vida. Mulheres e seus corpos como objetos, servis, corpos negros, corpos que são diariamente violentados de todas as formas.

Medéia é considerada uma espécie de feiticeira, na antiguidade. “Medéia Negra, de Márcia Lima- BA”, traz em suas mãos o fogo em meio aos cantos, dança e ocupação de sua casa, ela apresenta suas palavras de ordem, violência, estupro e morte. A montagem traz em sua narrativa toda violência que o corpo das mulheres negras sofre diariamente em nossa sociedade. Aqui é necessário sobreviver e quando o poder é usado como violência, contra você, seu corpo, quem você sonha ser, não existe ato maior que resistir e lutar. Transcrevo a dramaturgia de Márcia Lima que nos diz: 

 “Quando se morre negra todos os dias, quando se compreende que você não pode mais que o estado, quando ele te coloca na senzala ou te encarcera. Não se pode mais ser ingênua. É preciso viver, arrastando o fardo de ser mulher, queimando panelas. O que restará dessas mulheres?”

 Por isso, a violência deve ser entendida como ação, afinal é a ela que resistimos e ainda vivemos. Fiquem atentas. Márcia Lima expressa: “Se der converse, se não der mate.”

Mas continue mulher, por dentro de sua casa, pela beira da lagoa, ocupando os espaços com seu corpo, despindo-se das dores, enfrentando os desafios, locomovendo-se, atravessando. “NEBULOSA, do PI”, é um corpo luz, que precisa continuar para atravessar e buscar outras formas de se mover, impulsionar seu respirar e assim pisar no chão e a cada passo o corpo estende-se com novas imagens, como o passar desse corpo no espaço, arquiteta-se a materialidade dos seus vestígios no caminho, uma evolução inventada na ação. Nebulosas, sombrias, confusas, é no movimento que esses corpos femininos também estão e são. Movimento e lugar, livre de cenários, apenas o essencial, assim esse corpo que já carrega histórias de passado e presente, além de passar, ele dança e não só dança como te convida a dançar. 

         Vamos dançar? “MI MADRE, do grupo Corpo Semente Sagrada-PE”, discorre sobre a ancestralidade de suas mulheres, mas dialoga diretamente com o público, em um dançar de cena trazendo suas avós, mãe, tias, irmãs e homens que passaram por suas vidas.  Uma dramaturgia-diário, antes trancada na casa de todas nós, se apresenta como um retrato nos álbuns e prateleiras de casas, que fala diretamente com cada um ali. Nessa conversa a atriz, que fala de todas as dores e amores, ao contar de si e de outras, ela nos invoca: “Se eu cair você me ajuda a levantar?” Ao levantarmos ela, estamos todes saindo um pouco do chão, expondo nossos traumas, curando nossas histórias, e dançando junto com ela toda nossa memória. Memórias que ficam. Que deixam dores, que o tempo faz germinar.  

Germinar. Gerar. Como a terra. As plantas e as mulheres. Uma performance, uma ação cotidiana que a vida de tão grande às vezes esconde, “PLANTAS E FANTASMAS do PI/SP”, apresenta o trabalho de três performances, relação do corpo vivo com corpos que já morreram, nomes que são escritos, entonados em vogais para germinar, para suspender o fim dessas histórias. Ritualizar na ação, o luto, lamentos, os choros, construir travessias, acolher, plantar esses nomes no tempo, para que germinem da vibração das vozes, que alcança nossas memórias ou fazem a nós mesmas alcança-las, a morte não tem história, germinar e gestar o tempo para que as plantas floresçam, e aos fantasmas dissipar-se pelas vozes. Vozes que nos afligem e desprendem. Cada ação, narrativa e escolha estética se cria a partir do que carregam essas mulheres, artistas que delegam suas vozes ao falar de todas, ao falar de si.  Vestígios de mulheres artistas que confirmam e peregrinam por todas as inúmeras configurações de arte e continuarão.

Prosseguem a fazer suas escolhas, aceitar os convites, inventar sua forma e suas teorias e que carregam a cultura do seu lugar que é imaginável aos outros. Pra frente. Avante. Reorganizando nossa existência. “PRA FRENTE O PIOR, da Inquieta Cia- CE”, anda pra frente pois não consegue parar, como o existir da vida, esses corpos se movem, vê-los pela tela é a certeza de que devemos ir, corpos que sobrevivem, que no movimento descobrem meios, acordos, conflitos para existir e para permanecer. Um indivíduo que carrega seu corpo, seu corpo que carrega suas subjetividades e ali estão imagens que dizem sobre eles e sobre cada um de nós. O movimento aberto como arte, que articula nossa existência. Que andemos sempre em frente, adequando-se aos espaços, lutando para ser, desviando dos rótulos, um corpo que continuará, um corpo em fim de festa. A festa é na rua. O palco é como rua, estamos de passagem.

E o brincante que passa, personifica e no movimento faz a dança circular. “TERREIRO ENVERGADO- PB” multiplica a potência dos corpos, apaga as linhas e territórios e demarca nesse mesmo corpo a manifestação de tudo que lhe atravessa e agita. São brincantes a contar uma história com uma sacola plástica, uma saia, malas e caixotes o que vale é o encontro com os outros. E o que os outros me contam, ensinam e dançam. Do break ao cavalo marinho, o corpo se expande, não é alegórico, é um corpo que se manifesta e que compõem imagens, do que somos, do que seremos e do que quisermos ser.  É pela dança que ele se manifesta, narra e comunica.

Espetáculo- Dança Anfíbia -AL

O existir desses corpos, que se encontram e bebem em seus territórios, por vestígios, cacos, formas, sempre catando maneiras de se erguer e locomover. É ser como anfíbios. Corpos que se adaptam, corpos que transbordam. “DANÇA ANFÍBIA, da Cia.dos Pés- AL”, vem desvestir aos nossos olhos com seus corpos, corpos como ilhas, que ao inundar se imersos a tudo que os rodeia, e os inventa coletivamente e enquanto indivíduos.  É pela dança que se cria imagens de corpos diversos, metafóricos que transpõem a realidade de quem os vê. Corpos que dançam as circunstâncias de um território em constante modificação. É como se nos invocassem aqueles corpos, transpassados de si e dos outros, estamos vivos e nos abraçando para viver com nossas circunstâncias. Nos vestimos e dançamos com eles, corpos híbridos encontrando seus caminhos. Um manifesto de corpos, pela potência de suas culturas, pela força de sua gente e pelo poder de sua arte, pelo movimento de seu corpo na dança e na cena.  Escutem o recado das comunidades. Abram os ouvidos, corpos manifestados, corpos que falam e dizem, essas terras podem tudo. Alguém nos ouve?  Ou querem nos dizer como fazer. 

“ATENAS: MUTUCAS, BOY, E BODY da Santa Ignorância Cia. De Artes – MA”, traz com suas mutucas uma narrativa que preenche a realidade de um nordeste explorado pelo capitalismo, anuncia em seu espetáculo aquilo que tudo já sabemos, quer seja em ATENAS, no Pinheiro, Porto Dantas, Paripe, Mucuruipe, São José, Potengi a exploração desse território servirá apenas a uma classe, anulará apenas um povo. É um projeto de cidade e país que não nos agrega, uma grilagem das terras e de nossas histórias, uma anulação e colonização de nossa cultura. Transformada em técnica, em rótulo e em folclore. Os mutucas rompem com as nossas divindades e crenças para sermos salvos, parece que já ouvimos essa história. Mutucas, é algo comum a todos os insetos dípteros, de corpo robusto e tamanho médio. É preciso exterminar os insetos. Mutucas são insetos, os povos são Mutucas. O espetáculo Mutucas, revela a realidade de populações, em meio a crenças e conflitos sociais temos a riqueza da nossa cultura popular, que se manifesta em nosso corpo. Atravessando o palco e se colocando em nosso cotidiano, trazendo a sabedoria e a oralidade...é um grito que precisa ser ouvido e seguido por todos.   

O que restará dos lugares? 

O extermínio de nossa população já se anunciava em uma sociedade onde o capital promove a barbárie de um contra o outro. Hoje em tempos de pandemia, a máquina da morte está apontada novamente aos mutucas, ao povo. Ou acordamos, levantamos nossas vozes em coro, ou a chacina das instituições nos aniquilará. Seremos todes nós, mutucas a rastejar pelo mundo com sua culpa. Cantos populares são a revolução. Revolução essa que está em cada corpo manifestado. Em cada corpo/corpa nordestino.

 Aos trabalhos apresentados, ofereço a todes que construíram essa edição e aqueles que vem fazendo o Cenas do Nordeste, que a cada frase aqui assista a esses muitos artistas e  seus agrupamentos como Grupo Estação de Teatro, Boca de Cena, Garajal,Grupo Graxa de Teatro e Cia de Teatro UFBA colocando na cena toda diversidade e expandido suas falas e corpas/corpos.

Corpo que se manifesta, que manifesta sua arte, sua cultura popular, seu folguedo, seu sotaque, que investiga e dilata seu corpo com todas as técnicas, teorias, ideias concebidas pelo colonizador. Entendendo o colonizador como aquele que está no topo da pirâmide cultural, que detêm o poder e as regras do jogo, tendo ao seu lado pelo “privilégio” da geopolítica desse país, a validação de suas práticas ambas cambiadas pela aceitação acadêmica ou do status quo da arte.  Somos corpos híbridos como os anfíbios, estamos à margem, não valoramos a arte dos demais, bebemos dela, aprendemos e seguimos. 

Mas nossos corpos nessa cena são Corpos Manifestados, pois nossos discursos, criam nossas estéticas, que dialogam com o mundo à nossa volta, que dizem tudo. O tudo citado aqui desde o começo, é aquilo que queremos dizer, que necessitamos gritar, que desejamos e vamos mostrar e criar. 

 

Espetáculo-Atenas: Mutucas, Boi e Body - MA

O Cenas do Nordeste nesses dias de encontro ONLINE, estabeleceu e afirmou uma ponte entre nós, não só pela troca de conversar efêmeras feitas pelas plataformas online. Como trouxe a experiência do encontro com o trabalho de outres, que distante pelo espaço, diversos pelas formas de fazer, foi nos apresentado o deleite da arte.   Revela, pelos arquivos e encontros online com artistas e público que estamos todos prontos para tudo e para avançar, para renovar e para ajuntar todas as possibilidades desses 9 estados e aglomerados de artistas e criadores. Seguimos e seguiremos agora mais fortes, durante esses 10 dias de encontro ouvir esses artistas e refletir o coro de suas vozes é único. Mas trago a imagem do épico clipe que vende nossas misérias, e diz se preocupar com elas ao exportá-las em tom de caridade, para servir a um capitalismo que nos serve em cotas. Michael Jackson, no clipe They Don’t Care About Us, traz uma voz de menina que diz:

     - Michael, Michael – ELES NÃO LIGAM PRA GENTE!

     Se eles não ligam para gente, nós seguiremos, com nossos terreiros, batuques, tambores, coco de rodas, salas de ensaio, exaustão, e como mutucas resistiremos, nós ampliaremos. Como mulheres avançaremos a gestar e germinar nossos discursos, escutem! E com nossos corpos dilatados e híbridos alcançaremos todas as possibilidades de cena. Corpos manifestados, e seu trabalho na arte. E se um dia eles ligarem, seja eles quem forem, nós estaremos prontos. Nossas conversas no ZOOM, efêmeras foram ditas pra ser ação, é como se nesse território do ONLINE, nós antes que por condições e realidades tantas não conseguíssemos alcançar uns aos outros e dizer que podemos seguir juntos, que estamos prontos nos fortalecendo e que queremos e devemos seguir coletivamente. O CENAS DO NORDESTE, ao interligar esses artistas, ao propor a efemeridade de palavras que irão virar ação, nos apresenta mais um trabalho pela frente. Raymond Williams, alega a organização pela luta e diz:

 “...sei que há um trabalho fundamental a ser feito em relação à hegemonia cultural. Acredito que o sistema de significados e valores que a sociedade capitalista gera tem de ser derrotado no geral e no detalhe por meio de um trabalho intelectual e educacional contínuo. Esse é um processo cultural a que denominei, a revolução longa e, ao fazê-lo, eu queria assinalar que era uma luta genuína, parte das batalhas necessárias da democracia e da vitória econômica da classe trabalhadora organizada. “....a tarefa de um movimento socialista vitorioso envolverá a imaginação e o sentimento não no sentido fraco- “imaginar o futuro” (o que é uma perda de tempo) ou “o lado emocional das coisas”. Ao contrário, temos de aprender a ensinar uns aos outros as conexões que existem entre formação política e econômica e, talvez o mais difícil, formação educacional e formação de sentimentos e de relações, que são os nossos recursos mais imediatos em qualquer forma de luta.”

Somos uma imensa coletividade, precisamos organizar a classe trabalhadora e criativa do Nordeste, investigar entre nós o que temos a ensinar e aprender uns aos outros. Vamos juntes? Os nossos recursos mais imediatos de luta, nossos sentimentos e relações estão colocados em cena... é muito de nossa criação. É preciso também reconhecermos a grandiosidade de nossos trabalhos, não em relação a qualquer hegemonia que nos cerca. Estabelecer nossas batalhas coletivas e avançar, imaginar nossas conquistas e concretizar nossa utopia e poesia, cada dia mais. O Cenas do Nordeste é um festival que por meio de arquivos anuncia vestígios de luta e revolução pela arte. Sigamos na luta, no entrelaçamento de nossas criações que a conversa entre nós avance, não estamos no topo da pirâmide, mas nós pulverizamos pelo espaço. 

 

Referência:

Williams,Raymond- Palavra Chave: Um vocabulário de Cultura e Sociedade.

 


Festival de Mulheres Engraçadas - F.E.M.E.: A Graça como construção de territórios possíveis


Tessitura:

Bruno Alves

Jocianny Caetano

Lili Lucca


Entre os dias 27 e 29 de março aconteceu o pré-encontro do Festival de Mulheres Engraçadas - F.E.M.E. de Alagoas, realizado pelo grupo Clowns de Quinta. Dessa vez, Salsichinha, Frella e Coxinha, as palhaças anfitriãs, preparam para nós uma nuvem virtual, onde pudemos nos abrigar, rir e dar cambalhotas de maneira segura e sem correr nenhum perigo, pois diante do contexto pandêmico que vivemos, saltar até as nuvens do F.E.M.E. é uma oportunidade de se fortalecer e encontrar no riso uma forma de resistência e força para viver.


Divulgação FEME. Arte Karna May

As memórias de um espaço circense geralmente são muito afetivas e ligadas à infância. A arte da palhaçaria sempre esteve permanentemente em movimento, um espaço fugaz, um cheiro, uma comoção ao risco, um estado de maravilhamento. E tinha uma convergência nessa experiência, o convite que vinha através de comunicados sonoros, que geralmente vinham de personagens, em um automóvel que circulava em todas as ruas, e esse chamamento no pré-encontro virtual do F.E.M.E. veio através do: Clipe do F.E.M.E. No clipe encontramos uma estética do lar, um quintal como cenário, vassouras como instrumentos de sopro, um varal de chão como teclado e as palhaças Salsichinha, Frella e Coxinha que a partir daí nos convidam a presenciar um lugar familiar onde se vê a palhaçaria feminina. Na nuvem e de casa elas vocalizam: “Tá, tá, tá, tá muito especial, (...) E esse é o F.E.M.E. pré-encontro virtual, vai ser tudo muito lindo, bonito e sensual”.


Foto de David de Oliveira

Wanderlândia Melo, Elaine Lima e Nathaly Pereira, protagonizam esse encontro que é resultado de anos de trabalho de ambas na palhaçaria feminina, conquistando nesse tempo espaços, empoderando e representando outras mulheres. Nesse cenário atual o F.E.M.E. se mostra como um espaço de acolhimento e oportunidade para artistas cênicas do riso que enfrentam as dificuldades, lutas, angústias e vitórias dentro dessas redes digitais para poder continuar a levar seus trabalhos e ter sua vez e voz representada. 


Foto de David de Oliveira

Nessa pré-edição o festival trouxe uma programação intensa envolvendo ações pedagógicas, rodas de conversas e apresentações artísticas com mais de 10 artistas mulheres de variados estados brasileiros e de contextos diversificados do riso.

Logo no amanhecer do dia 27, o encontro foi pelo Zoom com Vanessa Rosa na oficina “Comicidades Negras: Cosmos Percepções - Alegria como Fundamento”. Foram três manhãs nas quais ela provocou em diverses artistas alagoanes e de outros estados presentes a reflexão sobre a valorização e busca por uma comicidade ancestral relacionada com nossas culturas afro-brasileiras e ameríndias, valorizando o corpo, as histórias, os cantos, as máscaras, danças e caretas que sofreram e sofrem apagamentos dentro do contexto da palhaçaria e comicidade brasileira por conta da forte presença colonial europeia em nosso meio. 


Fotografia do Acervo Pessoal de Vanessa Rosa

A arte, a ancestralidade e a existência de Vanessa caminham juntas buscando encontrar terreiros e corpas dispostas a se descobrirem e celebrarem no riso o pertencimento, sem precisar esconder as suas origens ou buscar a construção de um corpo inalcançável. Certamente vivenciar esses momentos com Vanessa Rosa é entrar em profundas reflexões e entendimentos sobre silenciamentos, racismo, preconceitos, xenofobia e outras discriminações no universo da palhaçaria e do mascaramento. Porém, a oficina se propõe a apresentar outras percepções de comicidades, tendo a alegria como princípio e fundamento. É ela matrigestora do Terreiros do Riso que realizou esse ano a segunda edição  do Festejo Raízes do Riso, um espaço de encontro de comicidades negras e afro-indígenas. 

Vendo a oficina percebemos que o Terreiro de onde nasce e renasce Vanessa é também o lugar que outres vão se encontrando, se percebendo e renascendo juntes. Ampliando, se revelando e se afirmando por todos os cantos do país. O FEME é mais um pedaço desse imenso terreiro.

À noite nos encontramos com o espetáculo “Mary and Virtual Mood” de Enne Marx (PE). Pela tela ela canta, faz rir, busca a fama online, porém prefere o anonimato daquele encontro. Em meio a apetrechos virtuais e toda sua bagagem de poesia e arte, ela se torna virtual, mas nos mostra essencialmente Mary e seus dilemas em tempos pandêmicos, como nos escreveu Bruno Alves no “Post-It Crítico” em nosso Instagram a seguinte tessitura:


“Você é palhaça. Você tem que fazer rir!

Tem que ter uma voz suave, alegre, não falar palavrão.

Tem que ser poética, né?

Está todo mundo feliz, né? Alegre!

O famoso mostrando a mansão.

O não famoso querendo ser famoso.

Hoje é o instagram que temos que alimentar.

É tanta live que já não sei o que é de verdade.

Deus me live!


Foi trazendo frases como essas que “Mary en Virtual Mood” de Enne Marx abriu o pré-encontro do @f.e.m.e_ na sexta (27/03). Experimento concebido e tendo como contexto o isolamento da covid-19, revela o aspecto inquietante da personagem-artista buscando ao longo da quarentena formas de matar as saudades do teatro e das pessoas que não pode encontrar fisicamente.

O que nos surpreende e nos toca ao assistirmos são as entrelinhas dos conflitos que vivemos se espelhando ali. Do quão solitário tem sido viver os dias em um enquadramento digital; do tão fictício e atrativa tem sido a realidade das celebridades do instagram; e do quanto nos esforçamos e demandamos tempo para viver uma ficção parecida.

Mary é uma palhaça que assumiu o controle do microfone para cantar e dizer ao mundo que não está preocupada com teorias e hipóteses de como ser uma palhaça perfeita.

Se desobriga da imposição de fazer rir a todo custo e fazendo isso, nos faz rir, porque se mostra tão humana e incomodada com a situação atual, quanto qualquer um de nós.

Ela negando a poesia, torna-se poética.

Suas canções nos conectam, porque refletem as sensações que vivemos nesses dias e os desejos de fisicalidade que carregamos. Quando ela canta rememoramos momentos vividos na pandemia e também nos sentimos em um bloco carnavalesco dançando livremente em um tempo onde nada disso existia.

Há uma voz por trás do nariz vermelho que vai refletindo ao longo do experimento os dias, os decretos, as solidões, as ficções e os medos. Canta que se o mundo inteiro lhe pudesse ouvir, teria tanto pra falar e dizer o que aprendeu. Uma voz que diz, que tem rosto, história, memória e presença e ao desmascara-se no final da jornada se assume inteira, verdadeira e entregue ao palco que hoje lhe é possível.

Mary vem pra nos dizer que o essencial é o ser humano."



No dia 28 tivemos no Youtube o encontro “Caiu na Rede é Arte!” mediado por Nathaly Pereira, onde tivemos uma conversa com as artistas Enne Marx (PE), Priscila Souza (SP) e Larissa Uerba (BA), na qual conhecemos um pouco das suas narrativas e de como essas artistas que sempre ocuparam os palcos e a rua, trabalham em meio a esse novo cenário virtual. Desafios, conquistas, falas que precisam ser ouvidas para o fortalecimento dessa rede e para sua expansão. Para além da ocupação das redes com seus trabalhos, essas artistas apresentam suas realidades e coletivos, alinhavando nessa conversa uma possibilidade de crescer juntas e expandir territórios. 


Acervo Rede Social FEME

No encerramento desse pré-encontro, no dia 29, lá estavam elas (Salsichinha, Frella e Coxinha) prateadas, brilhantes e de peito aberto espalhando a alegria por seu trabalho como apresentadoras do “Cabaré nas Nuvens”. Um espaço de encontro entre diversas artistas da comicidade e da palhaçaria, nos apresentando todas as suas forças e resistências. O Cabaré estava ON como nos escreveu Jocianny Caetano no “Post-It Crítico” intitulado “Cabaré nas nuvens e dentro do frame”, onde nos fala que:

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“Foram três mulheres que inventaram a roda. As três mulheres pareciam vindas de outro planeta, porque naquele momento não era comum usar roupa prateada e ter nariz vermelho, as três conversaram sobre um objeto redondo que facilitaria a vida de todos, explicaram durante o debate as configurações que esse objeto deveria ter. Um homem escutava tudo atrás de uma árvore, saiu dali e criou um objeto para a locomoção. Elas criaram um Cabaré nas nuvens no Festival de Mulheres Engraçadas o F.E.M.E.

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A invenção da roda delAs, a partir do grupo @clownsdequinta, traz um movimento da Palhaçaria Feminina. Essa roda propõe um ambiente de experimentos e acolhimento, o efêmero que fica On. Lembrem-se que, nas segundas elas usam prata. O deslocamento traz a Compalhaça Sebastiana, seu collant vermelho e seu jeito único de lidar com o tecido, uma relação flexível como geralmente não costumamos ser. E puxando mais o que vem? Picoka, a mágica, e o seu Dadão. O conflito da imagem e do som deixaram evidente a simplicidade de se iludir, a Picoka conseguiu, porque ela faz isso há muito tempo. As panteras mulheres dançando nos contam: o movimento é sexy e libertador. Fluindo a invenção presentifica a Fronha, que canta com as mãos e com as sobrancelhas, um luxo nos cantarolando que tudo que vai, volta. E nesse boomerang nada estático Cláudia Helena, uma Stand Up, afirmando principalmente a graça que é observar de fora o ser macho.

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Nesse cabaré tem um monte de mulé. De Maceió, Arapiraca, Florianópolis e Penedo, todas feminilidades e seus artigos femininos, sentam com carinho em territórios atípicos. Só não pode se apaixonar, tá? Ou pode?”



Uma ousadia. O pré-encontro do F.E.M.E. acontecer em 2021 é uma ousadia, porque a coragem de insistir em criações de imagens femininas para a palhaçaria, é uma ousadia. Os estudantes convidados por uma grande professora do estado, Joelma Ferreira, que não vão conseguir esconder o fato concreto que presenciaram online: Tem palhaçaria feminina no Brasil, em Alagoas e em Maceió. Para o “mundo”, é uma ousadia. E falemos também desse riso, ele é crítico. Foi uma delícia de encontro e por vezes entreteu sim, mas não se engane, havia engasgo ao ri, uma expressão que rapidamente muda, discursos a prova de diálogo e atenção às vozes de mulheres, que comunicavam sua arte. Essa presença é um posicionamento político.  

 O pré-encontro do F.E.M.E. nos oportunizou conhecer artistas e narrativas distintas, pois conhecemos  criação de mulheres que trabalham nos palcos, nas universidades e escolas, nas telas e debaixo das lonas circenses, ampliando o nosso alcance sobre formas de resistência e criação no modo virtual, formação e troca de experiências entre mulheres de diversos estados do Brasil. O festival promete voltar ainda esse ano e por aqui registramos a potência de diálogo e encontro que já se mostrou nesse primeiro momento. São territórios e terreiros como o F.E.M.E. que ampliam e fortalecem a resistência através do riso entre diversas mulheres de Alagoas e do Brasil.



“Estendam ás mãos já! - Narrativas Individuais para Construções Coletivas”

    Tessitura_ Lili Lucca            Ainda andamos de mãos dadas Cacau, aqueles que na cena construíram espaços de criação de arte ao seu la...