Aldeia Arapiraca 2019: Mini Cabaré Tanguero da Cia Fenomenal (AL)

Tessitura _ Bruno Alves

     É impressionante o que causa Julieta Zarza em nós quando assistimos ao Mini Cabaré Tanguero.

     O espetáculo é um show de habilidades circenses com a mistura da cultura do tango argentino. Mergulhamos no tango como um estilo de vida, presente na dança, na música e no cotidiano de uma nação que Julieta carrega com ela.

     Desde a primeira cena até o fim, não conseguimos desconectar daquela mulher que faz mágicas, dança, manipula boneco e recria personagens e histórias na ponta dos dedos.



     Quando Julieta traz o público para dentro da cena em momentos específicos, vemos nascer a maturidade de uma mulher que aprendeu a rir de si mesma e fazer do riso uma coisa compartilhada. Existe respeito pelo feminino e existe um riso que brota do coração de uma mulher.

    Falar e destacar o protagonismo feminino nesse riso é importante por ver um espaço historicamente muito machista ser a cada dia mais ocupado por mulheres.

      Julieta hipnotiza, lança teias, fios até nós e nos amarra numa deliciosa dança.



     O tempo em que a história acontece é o suficiente para esquecermos das horas. Nos conectamos com o momento presente e deixamos fluir um riso que não ofende e não constrange ninguém, mas liberta e transforma aquele espaço nesses instantes mágicos de cabaré.

     Uma dramaturgia da necessidade, como assim definiu Julieta. Uma dramaturgia que vai surgindo a cada necessidade que se mostra para ela no encontro com o público. Sempre em movimento, como num tango infinito, transformando e ouvindo cada lugar por onde passa.

Espetáculo: Mini Cabaré Tanguero
Cia Fenomenal (AL)
Foto: Frederico Ishikawa
Revisão: Felipe Benicio

Aldeia Arapiraca 2019: MINI CABARÉ TANGUERO: CHIQUITO, PERO BIEN MANEIRO (Cia Fenomenal - AL)

Tessitura _ Felipe Benicio *

     Mini Cabaré Tanguero, da Cia Fenomenal (AL), é um espetáculo ao estilo dos shows de variedade, composto por vários números independentes, que exploram linguagens como a do teatro, do circo, da dança etc. Em cena, temos uma Julieta Zarza multiartista, que faz pantomina, manipulação de bonecos, truques de mágica e, de quebra, nos dá uma aula de tango. Ocupando a função de um mestre de cerimônias desse show, temos Cachito Buonnasera, um boneco manipulado por Julieta, que é um misto de Vincent Price e latin lover, e que, com sua voz grave e seu sex appeal, canta, dança e ainda distribui beijos para a plateia. 

Mas que não se entenda essa organização em números como sinônimo de aleatoriedade. Embora tenha esse caráter mais fragmentado, o que, nas palavras de Julieta, segue uma dramaturgia da necessidade — ou seja, a ordem em que são apresentados os números é aquela que melhor se adequa às rápidas mudanças de figurino entre uma e outra cena —, todos os elementos desse mini cabaré gravitam em torno de um ponto em comum — o tango. Seja enquanto música, na trilha sonora, ou enquanto estilo de dança, presente na aula de Cracotzian Style of Tango ministrada por Anyeska Fuska, ou na inusitada coreografia minimalista performada apenas com as mãos (criativamente convertidas em dois bailarinos), o tango é uma constante no espetáculo.



No entanto, para além dessa maneira mais explícita, o tango também parece estar presente enquanto um princípio. Em um primeiro momento, pode-se até pensar que é um contrassenso ter apenas uma personagem em cena em um cabaré que se pretende “tanguero”, uma vez que, pelo menos enquanto dança, o tango pressupõe um par, uma relação com um outro. Mas essa relação está lá, e ela ocorre, creio, tanto de maneira explícita, quando as pessoas da plateia são convidadas a participar, quanto de maneira implícita e simbólica. Mesmo quando está sozinha no palco, Julieta nunca está sozinha em cena, e o seu par pode ser desde um cigarro (que some e reaparece diante de nossos olhos) ou mesmo um chicote (utilizando com finalidades meramente “pedagógikas”), com quem ela performa uma coreografia pós-contemporânea e neotanguera pra Pina Bausch nenhuma botar defeito. Até na cena em que a personagem de Zarza apropria-se de uma mesa em que há uma placa de “reservado”, essa figura do outro está ali, indiretamente, e rimos não só da ousadia da personagem, mas desse alguém que acabou de ser ludibriado.   

A apresentação desse Mini Cabaré Tanguero ocorreu no Teatro Hermeto Pascoal, como parte da programação do Aldeia Arapiraca, e teve casa cheia. Acredito que isso se deva, para além da força de atração que a linguagem circense exerce sobre as pessoas em geral, ao fato de que o público arapiraquense tem uma estreita relação com circo, uma vez que esta cidade é o berço do palhaço Biribinha, tendo, inclusive, uma escola voltada às práticas circenses. A plateia esteve entregue ao espetáculo do início ao fim. 



     Ao ver o cabaré de Zarza foi impossível não lembrar que em março deste ano ocorreu o primeiro festival de palhaçaria com recorte de gênero realizado em Maceió: o F.E.M.E. – Festival de Mulheres Engraçadas, organizado pelo grupo Clowns de Quinta, que teve a sua programação composta apenas por mulheres (Julieta foi uma delas), uma oportunidade de promover uma reflexão acerca dos modos de se fazer humor, que por muito tempo estiveram escorados quase que exclusivamente em piadas de cunho preconceituoso. Nesse sentido, uma das primeiras cenas do Mini Cabaré Tanguero é bastante significativa. Cachito Buonassera diz para a personagem de Julieta que ela só dançará tango se alguém a convidar — seguindo a tradição dos bailes em que as mulheres deveriam esperar o convite de alguém (um homem) para poder dançar. Imediatamente, a personagem vai à plateia e encontra um par para o seu tango. Parece algo bobo, mas, tendo em vista a história do tanto, é um ato bastante subversivo. A realização do F.E.M.E. e a apresentação de Julieta no Aldeia Arapiraca são provas de uma presença cada vez maior das mulheres no universo do humor. Mas não apenas isso, uma presença também cada vez mais consciente do seu papel na quebra e no questionamento de paradigmas.   

     Mini Cabaré Tanguero é uma experiência curta, mas muito divertida e intensa. Como diz Buonnasera, “es chiquito, pero bien maneiro”. E eu fico muito feliz em reconhecer que a palavra “mágica”, neste espetáculo, nomeia não apenas uma forma de arte, mas a pessoa que a realiza.
   
* Felipe Benicio é poeta, ficcionista e doutorando em Estudos Literários (Ufal). É também membro dos conselhos editoriais da Revista Fantástika 451 (SP) e da revista do Coletivo Volante de Teatro, #Textão (AL) e  colaborador do Coletivo Filé de Críticas.

Espetáculo: Mini Cabaré Tanguero
Cia Fenomenal (AL)
Fotografias: Frederico Ishikawa

Aldeia Arapiraca 2019: A geografia de um corpo brasileiro. "A Mulher do Fim do Mundo" - Casa Circo (AP)

Tessitura _ Bruno Alves

     A Casa Circo apresentou na noite do dia 19 de setembro o espetáculo A mulher do fim do mundo como parte da programação da Aldeia SESC Arapiraca 2019.

     Uma mulher que, em um diálogo visceral e direto com o corpo, estabelece diálogo com outros corpos validando a existência de vários outros que atravessam gerações flageladas socialmente.

     É sobre o corpo e a sua resistência diante das desigualdades da vida que o espetáculo nos conta. Traça uma narrativa simbólica de um corpo que é instrumento para atravessar outras histórias e ser porta-voz de sua existência no mundo.



     São muitos corpos que Ana carrega no seu. Reflete principalmente as existências que foram e são violentadas seja pelo estado ou pelo convívio social.

     Precisamos ressaltar que esse corpo, que nos comunica e rompe as barreiras da geografia deste país através do projeto Palco Giratório, é um corpo amapaense, estado onde o grupo reside e representa nessa circulação, o primeiro grupo em mais de vinte anos de projeto a representar o Amapá pelo Brasil.

     E por ser um corpo que atravessa o Amapá para nos comunicar e nos fazer reconhecer, ou re-existir, torna-se muito significativo e importante dentro desse contexto de violência e extermínio social.

     É um espetáculo político, sim, mas em múltiplos aspectos e maneiras. Político por representar um estado que pouco conhecemos. Político por narrar com o teatro e a dança a vida que resiste diante das desigualdades sociais desse país. É também político, principalmente, por trazer à cena, como protagonista, uma mulher negra.

     Na etimologia da palavra “protagonista”, encontramos as possíveis origens: 
“Vem do grego  prōtagōnistḗs,oû, que combate na primeira fila; o que desempenha o papel principal em uma peça teatral'”. 

     Ana se dispõe ao combate na primeira fila quando coloca seu corpo na fronte dessas discussões. É ela ali a mulher que representa o começo de um novo tempo e vem, sim, para decretar o fim do mundo, principalmente o fim de ver corpos dominadores contando ou silenciando uma história que é sua.

     O texto do espetáculo é rico em força e potência. Cada frase que ela solta é capaz de nos transportar para a necessidade do combate cotidiano. Esse mesmo texto é complementado por uma luz que recria o espaço e atravessa rios e  florestas, fazendo o público presente ir para muitos lugares.
Ana já foi bailarina clássica, hoje está em diálogo com a dança contemporânea e, ao vermos seu corpo em movimento, temos a construção da imagem de uma guerreira, de um orixá que vem da floresta para combater por todos os espaços.

     Ana sabe que sua dança é combate. Sabe também que seu corpo ao longo desse ano atravessará palcos historicamente dominados por corpos brancos. Sabe que, quando está ali, já não é mais um corpo, mas uma multidão.

Espetáculo: A Mulher do Fim do Mundo
Cia Casa Circo (AP)
Fotografia: Frederico Ishikawa
Revisão: Felipe Benicio

Aldeia Arapiraca 2019: A MEMÓRIA DA FLOR: SOBRE LEMBRAR E ESQUECER (Teatro da Poesia - AL)

Tessitura _ Felipe Benicio*

        A memória é um banco de dados corrompido, e, a cada vez que o acessamos, corremos o risco de adulterá-lo, realçando este ou aquele detalhe, ou mesmo reinterpretando fatos passados à luz de conhecimentos posteriores. Porque é da natureza da memória ser elíptica, condensada, como um quebra-cabeça de imagens em sobreposição.    

Tomando de empréstimo o título de uma canção de Júnior Almeida e Zé Paulo, A memória da flor, espetáculo da companhia Teatro da Poesia (AL), materializa em cena esses complexos mecanismos do lembrar (e do esquecer), por meio da história do casal Flora (Louryne Simões) e Tom (Jamerson Soares). O grupo opta por nos contar essa história em uma ordem não cronológica, indo e vindo no tempo, intercalando (e, por vezes, misturando) passado e presente, criando, assim, uma espécie de mosaico de arestas muito fluidas — como a memória. Um elemento de grande importância na construção dessa estética mnemônica, por assim dizer, é a iluminação, executada com precisão e sensibilidade, compondo as cenas de maneira orgânica junto com Tom e Flora, como numa valsa dançada a três — a luz e os corpos. 




Em seu prólogo, em que as personagens ficam repetindo várias vezes que já se esqueceram uma da outra, a peça traz à tona aquilo que pode ser considerado um elemento constituinte de obras que abordam o tema da memória — o esquecimento. Se, por um lado, temos a mnemotécnica, que ajudou a humanidade a armazenar e organizar informações por meio de exercícios de repetição; por outro, como bem observou Umberto Eco, “percebeu-se muito cedo que era impossível inventar uma técnica para esquecer, porque é impossível esquecer voluntariamente”, uma vez que, “em geral o esquecimento é acidental e involuntário”. Nesse sentido, é bastante significativo que, na cena de abertura da peça, as personagens estejam utilizando uma técnica geralmente empregada para nos ajudar a lembrar das coisas (a repetição) para afirmar justamente o seu oposto (o esquecimento). Dessa forma, ao afirmar repetidas vezes que esqueceram, o que as personagens estão realmente fazendo é lembrar-se de que nada foi esquecido. E isso já aponta para conflitos que vão se estender e se intensificar por todo o espetáculo.      

A peça, em seu fluxo e refluxo temporal, instaura um jogo dramatúrgico que faz nascer uma dúvida: qual dessas duas personagens é aquela que ocupa o privilegiado ponto de vista do presente, e que viveu e sobreviveu a todas as fases desse relacionamento — desde quando se conheceram em uma casa noturna onde Flora cantava, passando pelas crises e desavenças, até chegar ao momento depois do fim? E quem seria o fantasma, a personificação de memórias que ora deleitam, ora perturbam? Ou será que ambas as personagens revezam-se continuamente entre esses lugares? A partir dessas reflexões, o próprio título da peça pode ser entendido em duas vias: em uma, “a memória da flor” pode significar a memória de Flora, ou seja, a lembrança de Tom que pertence à Flora; em outra, pode significar a lembrança de Flora que permanece em Tom. O desfecho da peça deixa bem claro qual dessas duas acepções prevalece, mas durante todo o espetáculo essa é uma dúvida que vai e volta em nossa mente.  


       O texto, concebido por Louryne e pelo diretor, Jadir Pereira, é um dos pontos fortes do espetáculo, pelo que reverbera de poético, mas também pela sua construção, que opera dentro de uma economia textual em que nada é gratuito, dando origem a uma rede imagens na qual mesmo a frase mais trivial — como “eu já sei aonde os trilhos dessa conversa irão nos levar” — pode esconder sob a sua superfície um significado profundo e dilacerador. Isso porque, além do passado do casal, alguns flashbacks (à maneira de pequenos solilóquios) exploram também o passado das personagens. A peça, portanto, abre-se constantemente para dentro de si mesma, resgatando do fundo do Lete as informações cruciais para que o público entenda não apenas a história de Flora e Tom enquanto casal, mas suas trajetórias e traumas e conflitos pessoais. Mas tudo isso sob o signo da sutileza, em que é mostrada a ponta do iceberg — seguindo o conselho Ernest Hemingway acerca das narrativas curtas —, para que o público deduza (e construa em sua mente) tudo aquilo que está sob a água, fora do alcance do visível.  

         Talvez tenha sido justamente para preservar a potência e as sutilezas desse texto que os dois artistas em cena, bem como o diretor, tenham escolhido uma clave de interpretação alguns tons acima do natural, na qual impera uma prosódia em que as palavras são excessivamente articuladas, o que acaba remetendo à artificialidade de grande parte da teledramaturgia brasileira. É necessário deixar claro que a opção por uma atuação não-naturalista não representa um problema em si, afinal, os/as artistas têm à sua disposição um leque de possibilidades dentre as quais escolhem aquilo que julgam ser a melhor para suas obras. 


        Embora A memória da flor goze de certa harmonia na articulação de seus elementos teatrais, é na atuação e na caracterização das personagens que estão as suas maiores fragilidades. O mon cheri e o cigarro de Flora não convencem enquanto elementos orgânicos da personagem (parecem responder mais a um estímulo que vem de fora para dentro), e a sua apresentação visual (figurino, cabelo, maquiagem e até mesmo sua postura em cena) segue um caminho diametralmente oposto à sua tão alardeada decadência. 

        Mas essa é uma questão que pesa de maneira acentuada no trabalho de Jamerson, que emprega demasiada energia e tende a dilatar até mesmo o menor dos movimentos, o que faz com que seu corpo esteja quase todo o tempo teso, e as suas mãos a todo momento trêmulas, e a sua respiração sempre arquejante. Como disse acima, tratam-se de escolhas; mas essa expansão e esse exagero constantes, a meu ver, acabam distanciando a personagem do público, impedindo a criação de uma relação de empatia. Por exemplo, em algumas ocasiões em que o texto da peça busca um alívio no humor (mais um de seus tantos deleites), isso quase não surte efeito, por conta, creio eu, desse abismo que a proposta de atuação faz nascer entre personagem e público. 

        Mas nada disso impede que a peça cause atravessamentos em que a assiste. Na apresentação de ontem, em um momento inusitado e muito bonito, durante o bate-papo após o espetáculo, um homem que estava na plateia pediu a fala e disse que havia assistido a essa mesma peça no ano anterior e que agora, ali, gostaria de ler dois poemas que ele próprio escrevera inspirado em A memória da flor. E acho que isso foi um presente tanto para o Teatro da Poesia quanto para todos/as nós que estávamos no Teatro Hermeto Pascoal, pois fomos testemunhas de que o ciclo da arte pode se tornar uma espiral infinita, em que uma obra dá origem a outra, e mais outra e mais outra, até que um dia possamos inundar o mundo inteiro de poesia.        


* Felipe Benicio é poeta, ficcionista e doutorando em Estudos Literários (Ufal). É também membro dos conselhos editoriais da Revista Fantástika 451 (SP) e da revista do Coletivo Volante de Teatro, #Textão (AL) e colaborador do Coletivo Filé de Críticas.

Espetáculo: A memória da Flor.
Teatro da Poesia (AL)
Fotografias: Frederico Ishikawa

Aldeia Arapiraca 2019: DEPOIS DO CORPO, O CORPO: A MULHER DO FIM DO MUNDO - Cia Casa Circo (AP)

Tessitura _ Felipe Benicio*

     No solo A mulher do fim do mundo, espetáculo da Cia Casa Circo (AP), dirigido por Jones Barsou, a atriz e dançarina Ana Caroline diz o corpo e dança verbos em uma dramaturgia cuja potência, acredito, reside em sua capacidade de evocar significados múltiplos a partir de suas várias camadas.

No texto, assinado por Barsou, há um corpo que fala de si na primeira pessoa — “eu, corpo” —, que afirma já ter passado pelos mais diversos estados da matéria e sofrido todos os tipos de cólera. Se, de acordo com a “Canção de mim mesmo” de Walt Whitman, “cada átomo que há em mim igualmente habita em ti”, enquanto texto verbal, quando esse corpo fala de si, ele também fala de todos os corpos. Um corpo que parece habitar um tempo fora do tempo, depois do fim do mundo. Um corpo absoluto, onde cabem todos, amálgama da física e da metafísica que atravessa as massas corpóreas desde a primeira célula até a última sílaba. 





       Mas esse texto chega até nós por vias simbólicas demais para serem ignoradas, de uma forma que me faz lembrar e ressignificar a ideia de Marshall McLuhan — o meio é a mensagem. 

Se, sozinho, o texto tem essa capacidade de ser plural — ou seja, o corpo como metonímia de todos os corpos —, ao ser proferido por Ana Caroline, ele ganha uma dimensão mais específica, um recorte, um foco, mas nem por isso torna-se menos forte, impactante, poético. Em um país em que uma mulher é morta a cada duas horas vítima de feminicídio, e onde os corpos negros são os maiores alvos das mais diversas formas de desigualdade, ter em cena uma artista negra dizendo que “só eu posso vivenciar a minha própria tragédia” é algo que gera sentidos que extrapolam o limite do textual. E isso tem o poder de ressignificar tudo o que vemos e ouvimos. 

      Creio que essa tensão entre um texto de caráter mais universal e um corpo particular é o que faz com que existam as muitas camadas que dão força e ampliam os significados da obra. Essas duas instâncias — universal e particular — estão de tal maneira coadunadas que um sentido jamais se sobrepõe ao outro, fazendo com que A mulher do fim do mundo possua uma inevitável vocação para ambiguidade, desde que não se perca de vista essa tensão entre particular e universal. 

      As partituras corporais também são igualmente fortes. Talvez por conta dessa voz que é muitas, Ana Caroline se faz presente de maneira intensa e contundente. Seus olhos e sua respiração criam uma força magnética que puxa o público para dentro das cenas. A todo tempo, esse corpo é ele mesmo e seu contracorpo, a vítima e o algoz, matéria e antimatéria. Em movimentos em que os braços se fazem lâminas, a personagem de Caroline parece cortar e cortar-se, talvez fazendo de seu próprio corpo o palco de lutas históricas, de violências perpetradas (contra o corpo, de maneira geral, e contra a mulher negra, de maneira específica) ao longo da história. 

      Cabe salientar que a cena descrita acima é um dos momentos em que a luz projeta no palco vários pequenos riscos retos e diagonais que, juntos, compõem a imagem de galhos de plantas. Ou seja, há esses “riscos” nos filtros (gelatinas) de iluminação, que projetam na cena uma luz toda entrecortada, justamente no momento em que Ana movimenta os braços como se fossem lâminas. É muito instigante perceber essa sintonia. 



      Tive a oportunidade de assistir a esse espetáculo da Cia Casa Circo duas vezes: em Maceió, sentei nas cadeiras do público; aqui em Arapiraca, assisti a tudo de cima do palco. Sinto que só agora que pude ter a experiência completa de A mulher do fim do mundo, a partir dessas duas perspectivas que se complementam. Da plateia, lembro que pude ver os desenhos que Ana fazia no espaço cênico ao se deslocar de um canto a outro do palco, bem como a força de seu corpo e de sua voz que me atingiam em cheio a cada gesto, a cada palavra; do palco, consegui ver outros desenhos — agora, os do corpo contorcido no chão, estátua viva e pulsante —, bem como os dedos fazendo círculos no chão e crescendo, crescendo até tornar-se espiral, redemoinho, um signo em rotação. 

      É curioso notar que, numa obra em que os elementos cênicos conversam tão de perto um com outro, em que tudo está tão bem amarrado, qualquer passo para fora dos limites desse microcosmo, por menor que seja, acaba destoando de maneira visível do conjunto. Por exemplo, na cena final, as luzes vão se apagando lentamente enquanto Ana caminha em direção ao fundo do palco dizendo os nomes das pessoas por quem (ou para quem) esse espetáculo foi feito. Ana — que agora já não fala mais no masculino, remetendo à voz do corpo, e sim, no feminino, colocando em primeiro plano a sua própria voz e, consequente, o seu próprio corpo —, ao invés de “pelos corpos negros que são mortos por políticas de extermínio”, ela disse “exterminados por políticas de extermínio”, e essa repetição é um ruído — porque pobre esteticamente — em comparação a todo texto que veio anteriormente, cuja construção é de uma precisão e de uma poeticidade memoráveis. Isso, claro, é apenas um detalhe. Mas, neste espetáculo, mesmo um detalhe tem o poder carregar sentidos e gerar leituras.

      Para finalizar, em seu Ideias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak afirma que sempre que pudermos contar uma história, estaremos adiando o fim. E sinto que foi isso que fizemos na noite de ontem, no Teatro Hermeto Pascoal; sinto que é isso que estamos fazendo agora, durante esta semana, na Aldeia Arapiraca — estamos produzindo e consumindo arte para adiar o fim. Que assim sigamos.

* Felipe Benicio é poeta, ficcionista e doutorando em Estudos Literários (Ufal). É também membro dos conselhos editoriais da Revista Fantástika 451 (SP) e da revista do Coletivo Volante de Teatro, #Textão (AL) e colaborador do Coletivo Filé de Críticas.


Espetáculo: A Mulher do Fim do Mundo
Cia Casa Circo (AP)
Fotografias: Frederico Ishikawa


“Estendam ás mãos já! - Narrativas Individuais para Construções Coletivas”

    Tessitura_ Lili Lucca            Ainda andamos de mãos dadas Cacau, aqueles que na cena construíram espaços de criação de arte ao seu la...