MIT _SP: [Crítica] Espetáculo "STABAT MATER" de Janaína Leite

 Temos Coragem para atravessar? 
Por Lili Lucca

   Na 7ª.Edição da MITsp assistimos ao espetáculo de Janaina Leite, Stabat Mater, presenciamos, por assim dizer, a coragem da verdade em uma desconstrução do teatro e de sua performance, na qual artista dialoga diretamente com o público, sobre sua pesquisa e obra. Nos apresenta a coragem da verdade, mas não da verdade do outro e sim sua verdade. A coragem de olhar profundamente através de seus traumas, através de seu corpo feminino, através da relação com sua mãe e assim constrói seu documento autobiográfico de cena. Nos trabalhos de Janaina Leite, existe a constância autobiográfica, ela diz:

  “O autobiográfico pode aparecer na forma de um texto, de algo que se assemelhe a um depoimento ou relato a partir de uma experiência vivida. Mas não só um ‘texto’ propriamente, no caso das artes cênicas, configura um depoimento autobiográfico.”¹
   Janaina Leite, desorganiza a performance, ela vai atrás do que ainda não sabe, desperta novos lugares pela arte, e escolhe para seu espetáculo lugares que não habitou. No espetáculo a dramaturgia autobiográfica exposta e narrada pela filha, que performa e desconstrói a cena constantemente, temos a presença de sua mãe Amália Fontes Leite, que juntamente com ela narra os traumas vividos por ambas e “representa” a figura imaculada da mãe sempre santificada e presente. E também temos a figura do homem que é representada por um ator pornô, que personifica a virilidade masculina e a objetificação da mulher.



   Com imagens fortes, a presença da mãe na cena, o corpo feminino exposto e profanado pela violência do terror, é com os sentidos alterados pelo álcool que consome  é que Janaína Leite, conduz as cenas que se intercalam por conversas, que contam a ausência da mãe no estupro da filha, a fala da mãe culpada  e  da mulher traída,  que no seu discurso nos desperta raiva, mágoas,  amor e uma profunda identificação. Uma constante impregnada na herança histórica e cultural da relação entre mães e filhas.



   Nessa história estilhaçada, somos também o corpo feminino exposto, profanado pela estética dos filmes de terror a qual ela divide com todas nós,  somos o corpo feminino objeto  profanado pelo desejo masculino. A mulher virgem pura sobrevive, a que cumpre seus desejos e vontades é amaldiçoada.

   Somos filha de uma mãe imaculada virgem, que sobre a luz maternidade é sagrada e condenada a carregar o sofrimento e o sacrifício romântico de ser mãe. Somos também a filha da mãe, que nunca pode ser sexualizada pelo castigo do pecado que só pertence a corpos profanados das então filhas.

   Constituímos naquela cena o feminino em lugares de encontro, em lugares comuns. E nesse lugar de encontro que vejo esse trabalho como a força e a precisão de ser uma experiência singular. Onde o corpo feminino identifica e acende uma experiência e alvos únicos. Ao presenciarmos a coragem da verdade, as questões que surgem com a experiência, será que são toleráveis?

“Quanto de verdade somos capazes de suportar? Ou ainda: quantos tem a coragem para aquilo que sabem? O parresiasta não pode deixar de avaliar até onde as pessoas estão dispostas a ouvi-lo, a enfrentar seus demônios, a questionar suas próprias vidas. Toda parresia anuncia uma espécie de rompimento possível. É uma potência disruptiva da fala. Quando se efetua, é um acontecimento: instaura novas verdades, faz variar as relações de poder, implica no cuidado de si.”2
   O que somos capazes de suportar ou melhor o que realmente temos coragem de suportar. A reelaboração de seus traumas, o reconhecimento de seu corpo feminino, a posição desse corpo artefato, a busca constante pela santificação da mãe e profanação da mulher. Com que olhar se contemporizam esses corpos?


   Ela oferece a culpa e a ausência posta a mulher na construção social desses “personagens” mãe e filha. A filha que não percebe a mãe sempre presente, a culpa pela ausência. A mãe que se culpa constantemente por suas ausências. Uma culpa cristã que parece ter “nascido” com o feminino. Uma mãe, uma filha e todos as conversas nunca ditas, toda negação e toda devoção de uma pela outra. Dois corpos femininos sua relação exposta e tensionada, perante a nossa catarse. Estamos ali tensionadas com elas.



   Stabat Mater, Sempre esteve. A coragem que afronta a todas, uma forma poética e viva de se fazer teatro, é um desafio a todas que estão naquele espaço mesmo sendo um documento autobiográfico, ele nos desperta as mais angustiantes perguntas, nos revela toda nossa inércia e nos joga em meio a nossa culpa e condenação. Encarar isso é como repensar toda nossa vida, mas para que isso aconteça precisamos nos aliar as nossas mães. Ou afastar se, mesmo que um dia  regressem ao seu colo. 

   Reafirmo meu ver de que compomos naquela cena o feminino em lugares de encontro, em lugares comuns. E nesse lugar de encontro que vejo esse trabalho como a força e a exatidão de ser uma experiência no palco, que transforma a forma de fazer teatro para impulsionar nos outros a coragem de olhar se mesmo que de longe. Temos coragem para atravessar o palco?

Assista ao teaser clicando AQUI!

 Referências:
¹-      file:///C:/Users/note/Downloads/document.pdf
- https://razaoinadequada.com/2018/06/27/foucault-o-parresiasta/
Fotografias: Guto Muniz

FICHA TÉCNICA:

CONCEPÇÃO, DIREÇÃO E DRAMATURGIA: Janaina Leite
PERFORMANCE: Janaina Leite, Amália Fontes Leite e Príapo
PARTICIPAÇÕES ESPECIAIS: Príapo amador (Lucas Asseituno) e Príapo profissional (Loupan)
DRAMATURGISMO E ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO: Lara Duarte e Ramilla Souza
COLABORAÇÃO DRAMATÚRGICA: Lillah Hallah
ASSISTÊNCIA GERAL: Luiza Moreira Salles
DIREÇÃO DE ARTE, CENÁRIO E FIGURINO: Melina Schleder
ILUMINAÇÃO: Paula Hemsi
VIDEOINSTALAÇÃO E EDIÇÃO: Laíza Dantas
SONOPLASTIA E OPERAÇÃO DE SOM E VÍDEO: Lana Scott
OPERAÇÃO DE LUZ: Maíra do Nascimento
PREPARAÇÃO VOCAL: Flavia Maria
PROVOCAÇÃO CÊNICA: Kenia Dias e Maria Amélia Farah
CONCEPÇÃO AUDIOVISUAL E ROTEIRO: Janaina Leite e Lillah Hallah
DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA: Wilssa Esser
PARTICIPAÇÃO EM VÍDEO: Alex Ferraz, Hisak, Jota, Kaka Boy, Mike e Samuray Farias
IDENTIDADE VISUAL, PROJEÇÕES E MÍDIAS SOCIAIS: Juliana Piesco
ASSESSORIA DE IMPRENSA: Frederico Paula – Nossa Senhora da Pauta
FOTOS E REGISTRO EM VÍDEO: André Cherri
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO: Carla Estefan
GESTÃO DE PROJETO: Metropolitana Gestão Cultural

MIT_SP: [Crítica] Espetáculo BURGERZ

Desencaixando os  Olhares
Por Lili Lucca

   Em quantas caixas somos ensinadas a entrar desde o primeiro dia de vida? Caixas essas que são desde o nome, roupas, maneiras, afetividades. Todas essas caixas e moldes são postos para que obedecêssemos uma forma de ser. Nessas caixas cabem objetos, utensílios, comidas e hambúrgueres.

   Burgerz, foi o espetáculo de encerramento da 7ª.MITsp, uma obra que tem a potência de nos transformar o olhar sobre corpos/corpas. Travis Alabanza, parte de sua própria narrativa de vida e escracha a violência que sofre todo dia. Em plena luz do dia, ile* foi agredide na rua, e foi lhe arremessado um hambúrguer contra seu corpo. Como ile nos conta: era um lugar que tinham umas 100 pessoas, ile estava passando e como de costume sentia alguns olhares. Em mais um passo que deu, gritos de ofensa e um hambúrguer foi arremessado contra ile.

   Pausa.

“Todos me olhavam como vocês agora. E ninguém fez nada. “

   Silêncio.

   Um silêncio, mais um silêncio que fazemos diariamente na rua, a violência que outres sofrem não nos afeta. Não dói. Naquele exato momento, espero que tenhamos mudado nossa visão aos corpos ao nosso redor.



   O solo de Travis, nos apresenta uma dramaturgia interativa, enquanto desencaixa todos seus elementos de cena que viram uma cozinha, nos convida todes para construir um hambúrguer e a desencaixar nossa concepção patriarcal sobre os corpos de outres. Durante seu solo ile, relata o horror da violência que seu corpo e de outres trans vem sofrendo ao longo de 2000 anos de privilégios cis-gêneros. Travis, quando expõe a violência que sofreu, questiona qual de nós precisou de ajuda ou precisou reconhecer que precisava de ajuda apenas para ser quem sempre quis ser.  E interroga o público:

Travis:  - O que veio primeiro o gênero ou a violência?

   Então chama da plateia um homem para que lhe ajude a fazer um hambúrguer. Porém é necessário que seja um homem branco, cis- hétero. A busca de Travis por esse diálogo em cena, é algo que emana a urgência social. Quem de nós compreende de fato a agressividade da construção do pensamento social de homens brancos cis-hétero? E como isso transforma em “lugar comum” o abuso que se faz contra outros corpos, que não se encaixam no padrão cis-hétero. Digo aqui urgência social, pois esse “comportamento” é hoje um dos atos que mais matam pessoas trans no mundo. Sua estimativa de vida é de 35 anos de idade. 



   Quando Travis, encara seu maior opressor, ele procura pela sua dramaturgia transgredir toda uma construção histórica arraigada em nosso olhar, em nossos discursos, em nosso modo de vida. Ile exibe para aquele homem enquanto cozinha com ele, toda a violência que seu corpo é ferido diariamente, é pedagógico quando fala sobre as pluralidades. De formas irônicas e direta, Travis, indaga sobre como é ser livre para um  homem branco cis - hétero, como é  ser aceito, sem precisar mudar quem é:

          Travis: -  Como você se sente sendo homem?- pergunta ile ao seu ajudante de cena.

   Silêncio.

   Novamente. 

   Não existe essa questão. Os homens brancos e héteros nunca precisaram se questionar, sobre como é ser homem. A caixa já veio pronta para que seu corpo, vontades couberam nela direitinho. Porque questionar?

   Nesse bate-papo franco, a resposta demora. Aquele homem simplesmente vai achando as palavras e tentando dizer que não existe essa dificuldade, está posto na cultura branca patriarcal a qual aceitação não é uma dificuldade. A liberdade do grupo hegemônico não depende da nossa liberdade, mas só serão livres quando nós formos, assim adverte Travis.

   Enquanto vai juntamente com esse homem cozinhando o hambúrguer, Travis passa a descortinar da nossa retina todo o preconceito que corpos que não se encaixam em um padrão são colocados diariamente. É como se os alimentos que compõem esse hambúrguer trouxessem para sua fala o paladar das ataques que sempre sofreu. Nessa edificação nos mostra que todes ali tem todo dia a oportunidade de fazer algo. E ninguém faz nada. E como se estivéssemos em um aprisionamento social onde, ou todos entram nas caixas, ou fora da caixa estarão todes reféns de um barbarismo social, que só atinge a corpos/corpas trans.

   A cada documento de vida que ile relata suas vivências de um corpo trans e preto, ile nos coloca de maneira potente, poética e libertárie que, o que deseja é que todes presentes ali saibam a beleza que é flutuar e ser livre. É por isso que ile luta, que ile diz,  questiona e enfrenta.

   Se formos falar de racismo quem ficará confortável aqui? Ninguém. Um país colonizado e padronizado pelo pensamento do homem branco cis hétero e cristão, não percebe que seu poder e liberdade nunca formam conquistas. Foram apenas opressão e destroços de outros poves, esses sim livres e de lutas.

   Desencaixar nosso olhar, sentir o peso do hambúrguer como ataque há um corpo. Ile propoe um desafio a uma mulher que lhe olha com compaixão, como tantas o fazem, mas antes do desafio ile a diz:

"Vamos fazer um juramento, vamos ser unides para sempre, e livrar a todes do aprisionamento de não conseguir ser livre."

   O desafio é: Você jogue esse hambúrguer contra mim agora??!! Com a negação da ação, Travis, joga contra o armário da cozinha o hambúrguer. O ato de assolar  é luta contínua para acabar com o preconceito e brutalidade contra esses corpos/corpas.

   A imagem do hambúrguer revela a má digestão diária de nosso comportamento transfóbico e de silenciamento e negação desses corpos/corpas.

   Um corpo trans, não binário, gay não quer a igualdade com o corpo cis hétero, ele quer apenas sua liberdade respeitada para poder flutuar. São seres humanos plurais e não singulares, porém livres e libertários, cheios de poesia e vida. Todos os corpos/corpas são naturais. 

...

*Os pronomes não binários “ile(s)” (em inglês “they”) substituem os pronomes pessoais “ela(s)” ou “ele(s)”. São termos que não demarcam o gênero, já que pessoas não binárias não se identificam como femininas ou masculinas.


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FICHA TÉCNICA:
CRIAÇÃO E PERFORMANCE: Travis Alabanza
DIREÇÃO: Sam Curtis Lindsay
DESIGN DE CENÁRIO E FIGURINO: Soutra Gilmour
DESIGNER ASSOCIADA: Isabella van Braeckel
DESIGN DE LUZ: Lee Curran & Lauren Woodhead
DESIGN DE SOM: XANA
MOVIMENTO: Nando Messias
FOTO 1: Elise Rose.
FOTO 2: Nereu Jr.



MIT_SP: [Crítica] Espetáculo "PRA FRENTE O PIOR"

Pra Frente, pois não conseguimos parar.
Por Lili Lucca 

   E quando o fim se anunciar,  o que faremos?

   Andaremos para Frente.  PRA FRENTE O PIOR. Desde o anúncio do espetáculo me vem a reflexão constante de tudo que estamos vivendo nesses últimos anos: desgraças, extinções, afundamentos, desmoronamentos, destruições de vida - sejam elas quais forem. Mas como espécie humana que somos, continuamos para frente.

   As pessoas no mundo se agarram à palavra esperança de maneiras viscerais. Esperança, sentimento de quem vê como possível a realização daquilo que deseja; confiança em coisa boa. Uma palavra que nos deixa fortes, nos faz aguentar, nos dá coragem. Mas já pensaram em esperança perto do fim? É com essa imagem que começo, com o anúncio do fim e o relato de corpos em batalha - não sei se foi pela esperança, ou por simplesmente nesses corpos existirem vida. Vida e tudo que nela permanece, mas eles continuaram PRA FRENTE.


   Dia 14 de março de 2020, no Teatro Conteinêr Mungunzá, assistimos a PRA FRENTE PIOR, da Inquieta Cia de Fortaleza- Ceará na 7ª.MITsp. Com corpos plurais e sujeitos presentes, a obra desperta um olhar autêntico e atual dos corpos que habitam a terra. E eles anunciam que o que veremos nada mais é o que veremos.

   O que você vai ver?

   É o que você vai ver.

   Pessoas caminhando até o fim. Simplesmente.

   Pessoas com raiva. São apenas pessoas com raiva. Pessoas escovando os dentes. São apenas pessoas escovando os dentes. Uma pessoa atropelada por um carro. É apenas uma pessoa atropelada por um carro. Uma pessoa com dor. É apenas uma pessoa com dor.

   As coisas são como são.

   Como num movimento natural o corpo se põe em movimento pela música. Aqueles sujeitos e seus corpos não são nada mais que corpos, e sua maneira de viver, sobreviver, de se comportar, se relacionar e de criar uma ação e obra. Uma obra que desperta um olhar cotidiano na sua dramaturgia. Ver no outro e despertar em você. Caminhamos para onde? Todo dia? A humanidade, em sua constante relação com o mundo, caminha para onde?

   Para o fim.

   PARA FRENTE O PIOR é uma dramaturgia que coloca corpos em movimento no andar incessante de quem caça no coletivo. Não chegar ao fim… mas ele é inevitável. Um dia, uma hora, em um segundo nosso caminhar chega ao fim. Mesmo que recomece. 

   A dramaturgia desses corpos não me revela o PIOR, mas o esgotamento, a luta coletiva, a violência, as selvagerias, os surtos que explodem fisicamente e nos incidem o peito em AGONIA.

   Uma angústia e uma inquietação perante nossos olhos, uma agonia concreta. Aqueles corpos que caminhavam sem parar, sem soltar as mãos, sem se desligar um do outro. O que os movia, a que reagiram?  À vida, ou a necessidade de responder a ela. 

   No caminhar acontecem coisas, despertamos, desejamos, resistimos. E ali, no momento da ação daquele coletivo, à luz de uma cena, postos ao nosso olhar, existia a necessidade de durar - que chamei de esperança - mas que podia ser seu antônimo desesperança. O que realmente nos mantêm em pé, o que nos coloca nesse desenvolver da vida, nesse insistir? A que passo percebemos o mundo que caminhamos? E por que motivo continuamos a caminhar para o PIOR?

   Pior, péssimo, numa relação de comparação. Aquele ou aquilo que, sob determinado aspecto, é inferior a tudo o mais. O PIOR, na relação de comparação como dita assim, pois é isso que observamos ao nosso redor. Tudo está desacertando. E nós continuamos para frente, que outra opção temos? 

   Há inúmeras configurações de se percorrer uma obra, relacionar-se com ela. Ela te acessa lugares impraticáveis e triviais. E eu recorri a um recorte de uma entrevista de Eliane Brum com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, em 2014, para apresentar minha agonia:

“As espécies estão se extinguindo, e a humanidade parece que continua andando para um abismo. O mundo vai, de fato, piorar para muita gente, para todo mundo. Só o que vai melhorar é a taxa de lucro de algumas empresas, e mesmo os acionistas delas vão ter que talvez tirar a casa de luxo que eles têm na Califórnia e jogar para outro lugar, porque ali vai ter pegado fogo. Se houver uma epidemia, um vírus, uma pandemia letal, violenta, tipo ebola, pode pegar todo mundo. Enquanto os sujeitos têm corpo de carne e osso, ninguém está realmente livre, por mais rico que seja, do que vai acontecer. Mas é evidente que quem vai primeiro soçobrar serão os pobres, os danados da Terra, os condenados da Terra. Algumas pessoas estão começando a se preocupar, mas não conseguem fazer parar, porque todas as outras estão empurrando. E você diz: "para, para, para!". E você não consegue. “ 1
   Na entrevista acima intitulada “Diálogos sobre o fim do mundo”, o fim é determinado pelo consumo capitalista. Consumo este que decreta o fim das espécies, que aniquila corpos.

   O fim, que é o fim. O que iremos ver é apenas o FIM.

   Não conseguimos parar. Por mais que se diga pare, continuamos pra frente. Aqueles corpos plurais singulares de sujeitos vivos. Coletivamente na ação de caminhar com seus desejos, instintos, loucuras, lutas, força. Se transportavam, se amparavam, se expeliam, atacavam e careciam um do outro para seguir, o fim era coletivo. Será coletivo.  Corpos esses preenchidos de existência, que esgotaram toda sua energia para chegar ao fim, mas que foram quase que inteiramente silenciosos. Em momentos de exaustão, de desistir, ouvíamos gritos, alento, grunhidos, clamados por coragem. O fim não é individual, ainda não abordamos o fim. Era sim que os corpos insistiam nesse caminhar, quase inconscientes mas fisicamente resistentes. E eles resistem até o fim de sua obra, como se mantém resistente aquele operário diariamente ao fim do dia. Como resiste o enfermo, já sem vitalidade ao abrir os olhos. Exaustos, mas para frente. Sempre.

   Será que pensamos ou idealizamos o nosso fim, se PARA FRENTE O PIOR é certo, é mais do que comum estarmos atentos que o FIM está próximo. Mas não o fim de uma vida, esse fim é cotidiano. Esse fim acontece a todo instante e a todo momento. Para frente o pior, revela a agonia do fim de uma espécie, dita como humana que continuar a andar, não reage, mas luta por sua vida até o fim. Aquele coletivo nos encara enquanto vai, nos indaga por socorro, nos revela em sua ação. E no fim nos encara, estafados sem energia e nós aplaudimos a nossa catarse.  

   PARA FRENTE O PIOR, e nós continuamos a caminhar. Como eles, como todos de nós.

   Um coletivo andando até o fim. É apenas um coletivo andando até o fim.

   Uma espécie andando até a extinção. É apenas uma espécie andando até a extinção.

   Caminhar até o fim. É apenas caminhar até o FIM.

   PRA FRENTE O PIOR, é a nossa única certeza se não nos enganarmos com a esperança. Que a agonia do fim coletivo, nos desperte. Não conseguimos parar.

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Citação:




FICHA TÉCNICA:

PERFORMERS: Andréia Pires, Andrei Bessa, Geane Albuquerque, Gyl Giffony, Lucas Galvino, Wellington Fonseca
INTERLOCUÇÃO: Marcelo Evelin
COLABORAÇÃO DRAMATÚRGICA: Thereza Rocha
SOM: Uirá dos Reis
CENOGRAFIA: Inquieta Cia. e Caroline Holanda
FIGURINO: Isac Sobrinho e Mallkon Araújo
ILUMINAÇÃO: Inquieta Cia. e Walter Façanha
PROJETO GRÁFICO: Andrei Bessa
FOTO:  Éden Barbosa
PRODUÇÃO: Inquieta Cia.

MIT_SP: [Crítica] Espetáculo POR ONDE ANDAM OS PORCOS




PORCOS, corpos como metáfora da espécie

Por LILI LUCCA



Corpos em movimento contínuo são os nossos. Corpos que estão em transformação, degradação e mutação. Como andam os CORPOS, para que lado, o que é visível e o que realmente vemos no outro?

Ontem na 7ª.MITsp, assistimos ao espetáculo Por Onde Andam os Porcos, escarnando a potência de vida de um corpo e o fazendo potente, o fazendo dilacerar-se perante nossos olhos. Desafiando todo um sistema de lógica e mostrando o sacrifício de se manter em pé durante a vida.

Corpos em risco, corpos no risco. É constante a sensação que nos passam aqueles corpos pulsantes, aqueles corpos que respiram por todos os buracos do corpo. Em meios a contatos e repulsão esses corpos se movimentam em um tempo uníssono e um tempo que oscila, reagem um ao outro, se expelem e encontram constantemente. Ainda existe o olhar.

O som está como bússola em alguns momentos, mas esses corpos são incitados por um drone pontual que contém um poder e modifica o tempo das cenas. Tem a sensação de vigia pela equipe técnica que ronda o cenário toda de branco coberta dos pés a cabeça, como se espreitasse por todos aqueles animais ali, no caso nós como animais também, acuados em algumas ocasiões pelos porcos que desmoronam junto a nós.


Corpos que se olham e foliam pelo espaço. Corpos nus que agora reagem ao espaço em constante variação. Muda a respiração, mudam os apoios do mover-se. Espasmos. Estado alterado. Um corpo carne, uma letargia que se instalada nesses corpos em vida. Letargia essa que os aniquila o sentir e suas subjetividades. Vai lhes colocando outros modos de operar o corpo e de sentir.

A operosidade desses corpos em cena, e o retrato da anulação de suas subjetividades, nos causam incômodo físico, nos descortinam a retina poética e a violência. O desespero, a insanidade e a fúria desses corpos me revelam a um cotidiano em que somos inseridos e que temos a destruição contínua do nosso modo de vida na terra. Um corpo que pensa, cria, morre, sofre e sobrevive diariamente, sem se entender como. Como esse corpo ainda está ali?


Nós, como aqueles corpos em cena, em nosso cotidiano encontramos modos de respirar, girando no mesmo lugar por horas, sem cair. Passamos por choques, componentes químicos, nos enfiamos em máquinas, inserimos suportes, dentre outros. Tudo para achar uma possibilidade de uma cura, de um re-começo.

Por onde andam os CORPOS de todos nós que ainda resistem ao silenciamento social do nosso país?

A grande questão de “Por onde andam os Porcos”, vai além do da exibição de esgotamento que estão os corpos hoje no mundo, e sim da busca da humanidade compreender seu estado de destruição e mutação. Por quanto tempo esses corpos ainda andarão?

Nas cenas finais de degradação e exaustão desses corpos, a mutação física proposta modifica totalmente cada espécie humana ali presente. Eles se movem e reagem apenas aos seus modos físicos de mutação, e aos seus instintos de animais que é o que sempre unirá as espécies desse mundo. A busca pela sobrevivência ou a fuga desses coletivos do opressor? E foi o que fizemos nós na fuga dos corpos aniquilados da cena, não suportamos o barulho ensurdecedor sobre nossos ouvidos. Saímos do teatro com os ouvidos em chama e com efeito de nossos corpos em ruínas. Ruína essa que é a certeza dessa vida. Uma hora o corpo cai, uma hora o corpo para. 



Ver aqueles corpos que deflagraram através da arte os sintomas e a condição física e emocional dos nossos corpos democráticos. Queríamos nós ver corpos arruinados, mas corremos da agressão física do som. Voltamos ao total silenciamento da mente, mas em nosso corpo aquele esgotamento da cena está presente diariamente, mas nosso processo é quase invisível, não conseguimos sentir. 

A performance que tem a direção de Kildery Iara, nos provoca com o corpo dos intérpretes, esses corpos questionam o real sentir hoje em nosso cotidiano, nos buscam no despertar da inteligência, das sensações e dos sentimentos. A agressividade e a força desses corpos em cena despertam a potência do estar vivo mesmo em decomposição da nossa matéria.

O artifício de ver é o atravessamento não tem como sentir, ou você sente esses corpos ou você não se dispôs a ver. Ou você não sente mais. Essa é uma das buscas e das questões desses corpos, eles sentem a todo momento que estão em processo de ruína e apagamento total de si. Como nós todos em nossos dias. O acordar será junto ou não existirá.




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Fotografias: Nereu Jr.

FICHA TÉCNICA:

DIREÇÃO GERAL: Kildery Iara
DIREÇÃO DE ARTE: Iagor Peres
DIREÇÃO ARTÌSTICA: Iagor Peres e Kildery Iara
INTÉRPRETES-CRIADORAS: Kildery Iara, Marcela Aragão, Meujael Gonzaga e Marcela Felipe
FIGURINO E PRÓTESES: Meujael Gonzaga
ILUMINAÇÃO: Iagor Peres
OBJETOS DE CENA: Iagor Peres e Meujael Gonzaga
AMBIÊNCIA SONORA: Hugo Coutinho
PRODUÇÃO: Kildery Iara
OPERADOR DE DRONE: Ricardo Moura






MIT_SP: [Crítica] Espetáculo Gota D'Água {PRETA}

Gota d’Água {PRETA} = é um pote até aqui de mágoa/dor/sofrimento

                                           
Por LILI LUCCA


Ao ver dois corpos pelo chão, o que vemos nós?

Ao ver dois corpos negros de crianças pelo chão o que vemos nós?

Sobre a bandeira da nação restos de gente negra morta. A quantidade é imensa temo ao arriscar um número, e temo mais ainda em pesquisar sobre isso.

TÁ TUDO ERRADO.

NÃO TÁ CERTO.

   A dramaturgia clássica de Chico Buarque e Paulo Pontes, é apresentada na 7ª. Edição da MIT- SP, nos trazendo uma grandiosa obra e assim alertas pela arte. Um espetáculo. 
“O espetáculo é a categoria universal sob as espécies pela qual o mundo é visto.” Barthes.(1975:179)¹
   E o mundo que nos foi apresentado através desse espetáculo é cheio de música, ancestralidade negra e rituais. Abarrotado de gentes brasileiras, gentes que vivem nas vielas, que sustentam a cidade, que movem a nação. Gentes que para muitos, lhes falta classe. Todas as classes, pois uma classe abastada sempre lhe proferiu um lugar abaixo, mesmo hoje quando dança seu samba tombado como bem maior dessa cultura. Samba esse que embala a história, junto com Rap dos Racionais que diz a verdade e complementa a dramaturgia.



   Todo enredo da peça é ao redor da história da Joana e Jasão, personagens de uma vila, comunidade, grota, senzala. Um lugar sem perspectiva de vida. A história da mulher traída, da mulher que vinga, é conhecida por muitos. A Medéia dos trópicos. O que move Joana é a ferida, o que move o mundo é o capital, como isso afeta a vida daqueles que tem sua breve esperança esmagada diariamente? Como isso muda suas relações? Será que percebemos?

   Jasão, casado com Joana. Dois filhos. Artista. Anos e anos lutando para vencer. Emplaca um sucesso e a fama o leva a lugares. A esperança desponta novamente. E ele escolhe mudar de vida, a começar pela esposa. Um sambista que vê uma nova possibilidade de história.



"Sem condições e perspectivas de melhoria, alguns vêem, no exemplo do sambista cujas canções são tocadas no rádio, a ilusória via do sucesso como possibilidade de ascensão. A gota d’água do espetáculo é o samba de Jasão; é também a condição de Joana, mulher apaixonada que, no seu abandono, é capaz de atitudes extremas; mas é também, e sobretudo, a condição de um povo sem casa, sem chances, sem a voz que lhe reste" (BARROS, 2005, s.p.)²
  O samba Gota d’água, e a revelação do mau caratismo do homem, e é também a tentativa de justificar a única da saída da miséria e da luta diária sempre sem recompensa. Todo o desenrolar dessa história se passa sobre a bandeira da nação brasileira, no palco elementos de cena pontuais, como cadeiras demarcando a cena e representando status quo. Uma banda ao fundo, uma alusão ao boteco, caixotes pelo espaço, atabaques, batuques, e muitos tambores. Tudo bem microfonado, essa voz precisa e deve ecoar cada vez mais alto. A beleza do cenário é preenchida por elementos diversos da cultura afro e toda sua religiosidade. Todos os Orixás e guias embelezavam o cenário.

   Creonte e sua filha Alma, são o retrato claro de uma elite ignorante brasileira atual, de Romero Britto a preconceitos com religiões afro brasileiras, exibem o maior fracasso de seu povo, a estupidez fantasiada de moralismo burguês.  Exploradores, com discurso benevolente de assistência social, arruínam diariamente a vida de quem é movido pela coragem e pela labuta diária.  A manutenção das misérias desse país é feita por essa gente. E eles destroem tudo fantasiados de economia, de juros, mas o que eles mais fazem é tirar do povo brasileiro a dignidade que nunca conheceram.

   Jasão, homem forte, sonhador, compositor. Criado sobre a cultura patriarcal e machista, aprende com Joana o que é o amor, aprende o que é ser um homem.  Ele voa, malandro como todo bom sambista brasileiro.  Joana, deusa do amor e da força, dedica sua vida a esse amor, a esse homem.  No enredo maior que essa traição, maior que a loucura escrita e colocada para Joana, é com certeza a cultura que nos foi posta e vinha sendo mantida a anos.  A cultura que a mulher tem prazo determinado para ser amada. Mas nós despertamos, mais que isso, nós mulheres sempre nos apoiamos de alguma forma. O que nunca aceitamos ou aceitaremos é o prazo certo para nosso CORPO ser amado. Então homens, meninos, moleques.

  “ Esse seu amor com prazo fixo não vale nada”

   E se tentarem nos enlouquecer, saibam que a Medéia foi criada por um homem, e elas sempre surgem através de machistas. Carreguem essa culpa. Culpa que não carrega e não têm tempo os vizinhos da vila que Joana mora, iludidos pela promessa do perdão da dívida já inexistente são levados ao trabalho por Creonte. Dono da vila, das prestações e de “suas liberdades”. É ele quem paga o salário e cobra a prestação. Esquecem o ódio necessário muitas vezes para que acordemos. Despertar dessa pouca alegria de vida.  Despertar para uma luta que nos dê maiores motivos para acordar todos os dias.

   Quantos são os conjuntos habitacionais de cada cidade desse país, e quantas são as mansões? Quantas horas de trabalho e de lazer tem cada habitante desses lares, sejam eles moradores de mansões ou casebres?

   Quantos têm as necessidades básicas e os direitos garantidos nesse país?

   Perguntas fáceis de responder. Cor, difícil de ser igualada. Classes que se mantêm no privilégio. Gota d’Água {PRETA} revela mais que um caso de amor em tragédia. Revela uma tragédia social e retrata um país escravista, escravocrata. Que todos nós em nossos lares assistimos na lógica de achar isso normal. É Creonte o dono do capital, é Jasão o sonho de ascensão social, é Joana e sua vila a luta pelos seus direitos, por igualdade e dignidade. Uma classe Possuidora, um coletivo que nada possui.  É assim:

 No nosso mundo, isso significa que: a classe possuidora, a burguesia, sempre quererá mais lucro, mais concentração de dinheiro nas próprias mãos; enquanto isso, a classe despossuída sempre procurará melhorar a própria situação de vida, sempre buscando que os recursos disponíveis sejam bem distribuídos para melhorar a vida em termos gerais, coletivos, não privados.³
  Em Gota d’água PRETA a luta de classes, é o grande enredo, é o grito que ecoa mais forte em todos os personagens. É o Candomblé e suas divindades que costuram esse enredo com seus rituais. Jasão, que quer seu bem privado garantido, se esforça para conseguir migalhas de esperança para sua comunidade, pessoas que lutam diariamente, mas precisam todo dia de uma nova oportunidade para conseguir pagar, comer e viver. Povo que se enfraquece na luta, mas luta todo dia para sobreviver.  Nós que ficamos por horas no teatro, esperando a morte dos filhos de Joana, esperando a solução para os moradores daquela vila lúdica. Assistimos Creonte em sua alegoria quebrar a quarta parede e nos chamar de porcos, preguiçosos e imundos. Não era uma cena, era um diálogo que nos cala e nos é dito diariamente. Voltamos para casa como? 



   A consciência está desperta, ou estamos com nossas riquezas garantidas, como a viagem pra Disney ou para o nordeste? O dólar tá alto né?!

   Portanto, a consciência de classes é a tomada de consciência das contradições insuportáveis em nosso mundo e, assim, a tomada de responsabilidade e compromisso para mudar este mesmo mundo.4
   Assim é necessário que despertemos enquanto nação, é necessário, mudarmos a história, é necessário que as classes tomem consciência de seu compromisso com o mundo. Ainda temos milhares de Joanas e suas manas na luta, que elas consigam acordar a responsabilidade da luta aos seus Jasões, e que todas as vilas, comunidades e grotas desse país façam revolução. A força, a beleza, a coragem daqueles corpos negros no palco nos enfatizam e afirmam que todo dia esse país é feito por esses braços fortes. Um elenco com atores e atrizes negros e negras, que subvertem as expectativas da maioria branca sobre o palco e as telas em seu ofício, e que ocupam seu lugar por direito. Um elenco que maturando seu labor, aperfeiçoará cada vez mais seu trabalho. Com corpos negros, se conta essa Gota d’água e vale lembrar que esses corpos e de seus antepassados que construíram esse país.

Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água
 Pode ser a gota d’água

   No copo, a borda já transbordou a Gota d’água PRETA, já cansou de esborrar, de sacrificar o suor e o sangue por um país. Negros são 75% entre os mais pobres; brancos, 70% entre os mais ricos... A questão é: o que você está fazendo ativamente para combater o racismo estrutural desse país?  


Assista ao teaser clicando AQUI!

FICHA TÉCNICA:

DRAMATURGIA: Chico Buarque e Paulo Pontes
DIREÇÃO-GERAL, CONCEPÇÃO E IDEALIZAÇÃO: Jé Oliveira
ELENCO: Aysha Nascimento, Dani Nega, Ícaro Rodrigues, Jé Oliveira, Juçara Marçal, Marina Esteves, Mateus Sousa, Rodrigo Mercadante e Salloma Salomão
BANDA: DJ Tano (pickups e bases ), Fernando Alabê (percussão), Gabriel Longhitano (guitarra, violão e cavaco) e Suka Figueiredo (sax)
ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO: e Figurino Éder Lopes
DIREÇÃO MUSICAL: Jé Oliveira e William Guedes
PREPARAÇÃO VOCAL: William Guedes
CONCEPÇÃO MUSICAL E SELEÇÃO DE CITAÇÕES: Jé Oliveira
CENÁRIO: Julio Dojcsar
MONTADOR DE CENÁRIO: Jé Oliveira
ARTISTA GRÁFICO: Murilo Thaveira
LIGHT DESIGN: Camilo Bonfanti
OPERAÇÃO DE LUZ: Camilo Bonfanti e Lucas Gonçalves
TÉCNICO DE SOM E OPERAÇÃO: Alex Oliveira
ASSESSORIA DE IMPRENSA: Elcio Silva
COORDENAÇÃO DE ESTUDOS TEÓRICOS: Juçara Marçal, Jé Oliveira, Salloma Salomão e Walter Garcia
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Janaína Grasso
PRODUÇÃO GERAL: Jé Oliveira
VÍDEO E EDIÇÃO: Marília Lino
REALIZAÇÃO: Itaú Cultural
PRODUÇÃO: Gira pro Sol Produções

MIT_SP: [Crítica] "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu" de Renata Carvalho

 Rainha do Céu, a Deusa do AMOR
Por Lili Lucca

   Ontem, mais precisamente dia 08 de março de 2020, me encaminhei a sala Jardel Filho, uma sala de teatro no Centro Cultural de São Paulo, com mais de 200 lugares. Tinha fila. Uma imensa fila. Pensava eu que iríamos todos assistir um espetáculo, porém fomos para um arrebatamento. Foi uma lição de amor. Nunca ri tanto em um espetáculo, nunca senti tão forte minha respiração. Acho que Renata conseguiu me reconectar com minha fé. 




   Renata Carvalho, em sua performance em “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”  que desde sua estreia em 2016 vem sendo censurada, dá sentido real a vida de Jesus Cristo, um corpo sagrado. Um corpo sagrado como de todos que estavam naquela sala ontem, um corpo sagrado que foi morto, profanado pela ira, ignorância e hipocrisia dos homens. De todos os homens que habitam e habitaram essa terra e que valem de seu ódio para governar e colocar o mundo em ruínas. O corpo de Renata e de muitas mulheres e homens trans, é um corpo que se salva dessa ruína todo dia, a coragem desses corpos, sua certeza  pela vida, deve ser todo dia um ensinamento para todas nós.

   Na entrada do teatro recebemos vinho e uma vela, no palco uma mesa posta, com jarra, água e flores. Cantos antes do início do ritual. Ritual por transformar a todos ali presentes, ritual pela presença da performance que nos encara, questiona e atravessa. O teatro lotado, desce a escada uma mulher, forte e chique, carrega uma pequena mala branca e se refresca com um refrigerante Jesus.

   A performance de Renata, é posta em cena, vacilamos ao que virá, mas entre a festa e a alegria de estar viva, as lutas e os sermões, ela testemunha o real sentido da vida. Toda dramaturgia contada, já é conhecida por nós, vive em uma memória cristã que de alguma forma chegou até cada um, pelas igrejas, pelas bíblias ou lidas na escola, ou também orações feitas em casa. Esse dia foi histórico, pois Jo Clifford, autora e atriz do texto estava lá. Jo Clifford, que após 10 anos voltou a apresentar seu espetáculo na 7ª. MIT -SP, e conseguiu ver a versão brasileira feita por Renata Carvalho.  O encontro de ambas, prova que a arte além do poder de cura, de apagar territórios, consegue ensinar uma nova maneira de ver e viver a fé.



   Com uma luz pontual entre público e palco, com ausência total de luz, e a luz sendo feita pela plateia, a atriz-performance, nos emociona e nos alucina com seus gestos e ações. Nos trava a respiração quando corporifica Jesus, e fala seus sermões. A Rainha do céu, uma mulher trans, um corpo intenso, um corpo de combates, um corpo que foi crucificado, censurado, barbarizado, depreciado. Quantos corpos passam por isso todo os dias? Você os olha na rua? Os vê? Ou julga?  O corpo de uma mulher que luta todo dia para estar viva, para que a enxerguem, para que a respeitem, como toda MULHER deve ser respeitada.  Um corpo que é livre e que almeja viver essa liberdade, um direito de todos os corpos. De todas as mulheres, mulheres trans, sagradas e profanas. Todas elas, livres para o amor. O corpo de uma mulher que resiste e que mesmo ainda sendo crucificado por muitos, tem a força de apresentar o amor a todes, todos e todas.

E Renata nos deixa claro, quando nos apresenta o amor.



É aqui que seremos crucificados.

Nosso calvário, é aqui.

Na sala de casa. Na praça. No trânsito. Na cama do hospital.

Haverá tormenta, na entrega da vida.

Este nosso CORPO será quebrado.

Este nosso SANGUE será derramado.

   Quando a gente nasce vai tropeçando, a esperança da criança vai se perdendo, o mundo parece cheio de trevas. No caminho as pessoas se perdem. Aqueles que se dizem virtuosos, julgam, condenam tudo na sua veracidade hipócrita.

   Mas ainda assim haverá luz, haverá luz, pois, haverá o outro, aquele corpo que carrega o amor, aquele corpo que ensina o amor, aquele corpo que doa o amor. Que perdoa, que é resiliente e que deposita sua fé em um mundo onde todos possam amar e conheçam o amor. Já temos todes, todos e todas uma dávida, temos uma mãe. É nesse amor que nascemos. “O Evangelho segundo Jesus Cristo, Rainha do Ceú”, nos lembrou que o único propósito dessa vida é repassar esse amor.

                               Este é o propósito AMAR e ser AMADA.
   
   O teatro me ensina todo dia. A arte me atravessa os olhares e me muda as percepções de mundo. Ver Renata Carvalho no teatro me despertou minha fé. As falas de sua Rainha me fazem querer sentar, ler e conversar com Jesus, nem que seja em oração. A oração que ela proferiu ao fim do espetáculo, nos curou. Hoje é meu terceiro dia na MIT SP, e tenho a certeza que a experiência ao assistir “O Evangelho segundo Jesus Cristo, Rainha do Ceú”, foi algo sagrado. Não se explica, pela teoria teatral, filosófica ou estética. É necessário assistirmos Renata, para voltarmos as nossas religiões e/ou transformar esse mundo em destroços. A arte quando transforma, informa e muda. É capaz de transforma aqueles que desprezam o próximo.

                                  “AMAI VOS, UNS AOS OUTROS COMO EU VOS AMEI”…
                                                            Você ama o próximo seja ela/ele qual for?

                                                            Obrigada Renata, e a todas que construíram esse      evangelho. Que o amor e a liberdade sejam guias e que
a Rainha do céu te cubra de bênçãos diárias.


TEXTO: Jo Clifford
ATUAÇÃO: Renata Carvalho
TRADUÇÃO, ADAPTAÇÃO E DIREÇÃO: Natalia Mallo
PRODUÇÃO: Corpo Rastreado
DIREÇÃO TÉCNICA: Juliana Augusta
FOTOGRAFIAS: Silvia Machado



MIT_SP: [Crítica] "O Riso que me Sufoca" do Espetáculo "Tenha Cuidado".

   Por LILI LUCCA

   Sobre um palco quase vazio, alguns varais de lenços com cores vivas e cubos com peças de roupas organizadas por seus matizes de forma harmônica. É tudo simples e bonito.  E também sobre esse mesmo palco surge uma mulher, Mallika Taneja. Uma artista indiana, uma mulher que em seu discurso traz o que toda e qualquer mulher é ensinada ao nascer: Tenha Cuidado!

   O espetáculo é um ato de revolta, ao estupro coletivo que mulheres sofreram na Índia.

   Na superfície cores e tecidos. Black out. Uma mulher nua. Um corpo, apenas ele, sem roupas ou disfarces. Um corpo de uma mulher que nos enxerga, nos vê, nos encara. Um corpo com toda sua fragilidade física e toda sua força feminina. Esse corpo enfrenta nosso olhar. Esse corpo se apresenta como um corpo tão-somente, e interroga nosso ver a todo instante.


   Quantos olhares são colocados em um corpo feminino diariamente?

   Quantas falações carregam essas visões?

   Quanto desejo e juízo é carregado por corpos femininos?

   Toda menina ao brotar no mundo, é colocada em cátedras. E desde muito pequena ouve que seu comportamento deve ser cuidadoso. Deve ser diferente dos meninos. Como nos diz Mallika: “tenha responsabilidade”. Ao sentar, ao falar, a olhar, sua responsabilidade é um dever seu para com todos a sua volta. Pai, mãe, avô, irmão, vizinho e sociedade.

   Ao vestir um short: “Não ande de ônibus!” Ao cobrir seus seios: “Não encare os homens!” Ao vestir uma saia: “Não saia sozinha de casa”. Ao vestir um vestido: “Fale baixo”. Ao vestir uma calça: “Feche as pernas”. “Tenha cuidado, é sua responsabilidade!”.

   Mallika, nos descreve de forma irônica e direta como a exigência pela responsabilidade da mulher passa a existir de maneiras mais corriqueiras possíveis, existe sempre a justificativa perspicaz de uma verdade posta socialmente. Uma atmosfera social. Um ambiente que deve ser mantido pelas mulheres, é de sua responsabilidade saber se comportar. 

   "Não saia a noite!" Porque é perigoso? A noite foi estabelecida apenas para homens. "O que quer uma mulher a noite na rua?" . "Tenha cuidado. Seja responsável."

   A dramaturgia, franca e atemporal nos diz sobre mulheres em lugares comuns no cotidiano feminino. E a caça e a procura pela paz dos nossos corpos de fêmeas.  Mallika, provoca o público diretamente, quase diálogo direto. São com questões óbvias, como se não tiver companhia a sair a noite. Não saia! Não é assim? (Falem, vocês podem falar!)


   Na sua ação demasiada de colocar roupas existe um grito e uma luta por liberdade que a mulher nunca conquistou, existe uma vontade incessante de mostrar que não se trata do que veste ou não uma mulher. Seu corpo é ALVO nessa sociedade. Ao colocar, recolocar variadas peças de roupas até sumirem do palco todas as cores, ela oculta totalmente seu corpo. E é nesse sufocamento do corpo da mulher, que reside toda ação machista da nossa sociedade. Ação essa que está no discurso de todos nós e que é urgente percebermos. URGENTE!

   Tive aperto no peito, ao ver o corpo de Mallika totalmente invisível sobre o amontoado de roupas, uma angústia dolorosa ao ouvir o riso que vinha da plateia. O sufocamento de uma mulher, gera o riso?

   A agonia crescente durante o espetáculo e a busca por compreender que não é o “tenha cuidado”, não é a roupa, não é a atmosfera que causam essa agonia. É o Corpo da mulher feito em alvo e o ser mulher alvejado cotidianamente por mais que todas nós tenhamos cuidado. 

Com o corpo todo coberto dos pés à cabeça.

Com a voz baixa e olhando para o chão.

Com total responsabilidade de suas ações.

   Um dia você vai ter que correr, mulher!

   Um dia você vai ter que dizer: Não foi culpa minha!

   Por isso: TENHA CUIDADO!



   Na Índia de Mallika, os crimes reportados contra mulheres cresceram 83% no país. A média de estupros é de um a cada 15 minutos.

   No Brasil, são 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma a cada 7 horas, em média.
Mallika Taneja desafia os costumes que oprimem a mulher indiana, mas quando ela o faz é por todas nós,  todas nós mulheres do mundo e a precisão de seu ato está no potencial que anuncia essas atrocidades. Estamos todas com ela, para desafogar mulheres!
                              
   Será que estamos dessensibilizados pelo sofrimento alheio? Afetem- se. Hoje, dia 8 de março é  um dia para lembrar a todos e todas, que mulheres no mundo morrem diariamente pelo simples fato de “NÃO TEREM CUIDADO!”

   Tenha Cuidado você! A mulher ao seu lado viva é uma vítima em potencial.

   Ao final do espetáculo e com ainda o riso que vinha da plateia ressoando em meu ouvido, me perguntei:

   Qual a graça no sufocamento dessa mulher?

...


Assista ao teaser clicando AQUI!

FICHA TÉCNICA:

CONCEPÇÃO E PERFORMANCE: Mallika Taneja
TURNÊ E PRODUÇÃO: Meghna Singh Bhadauria
DIVULGAÇÃO INTERNACIONAL: Judith Martin e Ligne Directe
Imagem 1: Tani Simberg
Imagem 2: Sissel Steyaer
Imagem 3: David Wohlschlag

“Estendam ás mãos já! - Narrativas Individuais para Construções Coletivas”

    Tessitura_ Lili Lucca            Ainda andamos de mãos dadas Cacau, aqueles que na cena construíram espaços de criação de arte ao seu la...