CRÍTICA: Pluralidades Cênicas _ "Treinamentos Cênicos Plurais "


Tessitura_ Lili Lucca
No último dia 12 de agosto estivemos no Espaço Cultural, mais precisamente na sala preta. Aconteceu lá o evento Pluralidades Cênicas, a Semana Acadêmica de Teatro, que foi do dia 12 ao dia 16 de agosto. O evento teve, pesquisas, projetos de extensão, oficinas e apresentações artísticas.
Estar no Pluralidades e desdobrar nosso olhar para os novos colegas artistas que chegam, que criam e que como nós estão no emaranhado de tecer suas obras: uma das missões do Filé nessa busca por diálogo para a ampliação do pensamento crítico para além da obra de arte, mas também para processos em criação e artistas em formação.
O espaço da Universidade é indispensavelmente o lugar do pensar, mas também de imaginar e criar, assim sendo, no primeiro dia de Pluralidades eu expandi o olhar para aqueles estudantes, jovens artistas e futuros professores que investigam na arte e em seus estudos e que estão em formação, concebendo suas possíveis obras cênicas em processos.
Lá estavam eles protagonistas de suas falas e de suas ações, aprendendo a dominar o palco e apresentar aos demais. As cenas apresentadas são sobre o processo criativo e as narrativas que foram construídas em sala de aula e em que as dramaturgias foram tecidas. Teatro, dança, música, cinema e artes visuais: a relação de todas as linguagens em um dia.
No corredor de acesso à Sala Preta, nos deparamos com a composição de traços de linhas de Djamyson Olimpo, com uma exposição intitulada “Meneio”. O artista se fazia presente no espaço e assim pude trocar algumas palavras com ele. Escolho aqui descrever o que vi. As imagens transmitem força e vida, aqueles corpos feitos e inertes sobre papel saltam ao nosso olhar pela expressividade que vibram. É necessário que nós artistas, olhemos para todas as artes e todas as obras, elas nos nutrem, nos alimentam e nos desafiam, tanto em sua composição, como em sua forma pronta. Os corpos desenhados por Djamyson tem tanta ou mais vida, do que corpos cênicos na sua ação.
No primeiro ato dos artistas PLURAIS*, também tivemos um curta. O filme apresentado chamava - se “Reflexão” e trazia em questão uma atriz que se autocrítica em relação a sua composição. Realidade para toda atriz em processo de composição no fazer cênico, no curso de Teatro Licenciatura. Destaco a licenciatura para essa escrita, sabemos que são fazedores de cena nesse momento, serão licenciados em teatro e essas questões têm de estar presentes constantemente em nossa formação.
Os processos escolhidos para a composição de cada cena são possíveis procedimentos docentes? Esse processo de criação serve para aplicar na escola? Esse processo de criação percorre uma metodologia para uma forma de construção em teatro? Esse processo de criação artística pode ser adaptado para sala de aula, seja você o discente ou docente? Essa metodologia possui elementos que façam os educandos refletirem criticamente e comunica-se com a realidade deles? Como aplicar ou reformular?
Somos criadores de arte. Resistimos através da arte. Mas o teatro se faz necessário no cotidiano escolar. Ele forma, liberta e dá novas possibilidades de se chegar ao conhecimento. Nós nos jogamos de cabeça na criação artística, e dela partiremos para criação coletiva educacional. Nunca esqueçam: A sala de aula, é um lugar potente e de criação, mas exige artifícios. Construam os seus.
PLURAIS, nos mostram sua construção de dramaturgias no intitulado Palco Aberto. Quais os discursos que vimos em cena? Que histórias contamos e o que deixamos de dizer? O que foi entregue ao público, o que gerou? O que fez mover? Que atravessamento eu criei no outro?
Vejo potências nas dramaturgias, todas elas irão amadurecer com o olhar atento e voltado para a criação e o estudo contínuo do tecer uma obra futuramente. É necessário muito trabalho para avançar. No Palco aberto foram apresentadas cenas variadas. Corpos em dramaturgia, um silêncio quase total da palavra, acarreto pontos para provocar. Enumero as apresentações na ordem em que foram vistas por mim.
Apresentação 01- Aprendi balé errado. Um corpo em movimento, que só se movimenta procurando o que seria um não-balé. Dançou errado? Existe dança errada? O movimento é livre. O corpo que dança é livre? Que movimento e dança esse corpo precisa/quer erguer?
Apresentação 02- Mulher, fêmea, emaranhado, presas a si mesma. Presa a cordas sociais, no seu lugar de ação. Ação muito breve quase inativa, entregue as amarras. O feminino preso, rotulado, colocado como objeto, padronizado. Encurralado em si mesmo. O que ainda prende o feminino? Representar essa prisão ainda é apropriado? O que realmente impede? Entender para rever e potencializar a ação.
Apresentação 03- O véu que prende, que dá sentidos na imagem, que sufoca, e que esconde todo o movimento. Um corpo, suas tensões, explosões, a meia sobre o rosto. Ansiedade. O véu que prende e esconde toda a ação é necessário para contar a cena?
Apresentação 04- Um corpo negro no espaço. Vendado. Forte, fluído, com espasmos e impulsos. Um corpo social de um homem negro, não ver e fluir. Ver seu corpo negro livre sendo visto pelos outros, o que causaria? Em quem vê e em quem é livre?
Apresentação 05- Sprit. A dança sprit/ “hip-hop”, é enfrentamento em meio ao caos que vivemos? Quais são as barreiras sociais para a dança que está nas redes? Ou será que ainda hoje nas universidades não sabemos nós que o conhecimento não está somente nos livros acadêmicos? O que vem da rua cabe em qualquer lugar.
Apresentação 06- Dito. O que realmente é dito. Olhando no olho. Saindo da rua e dizendo em alto e bom som. As vozes são ouvidas pelo som dos teclados de celular e computadores. O corpo fala, o corpo diz. O corpo escuta. O corpo vê. Apontamos e não saímos às ruas, apontamos por de trás de uma tela. Nos lacramos/glorificamos com o que dizemos. Os corpos gritam, se desesperam, sofrem, adoecem, morrem, até gozam, mas não temos a coragem de dizer. A dança em sua máxima potência é libertadora e tem o poder de dizer mais que a palavra, mas tem palavras que precisam ser ditas ou continuaremos a nos contorcer? Silenciados. E então, continuaremos silenciados?
Apresentação 07- Uma oração para Bob. Assistam esse filme, mas não assistam sozinhos. Chamem para assistir ao seu lado, aqueles que riem ou olham diferentes para outros corpos na rua. TRANS. Transformada. A verdade cênica no que se diz. A liberdade na execução da vida e do seu corpo. Todo corpo é frágil. Todo corpo é político. Todo corpo é lindo. Todo corpo é vida. Todo corpo é livre. Toda vida é um corpo livre. Respeite. Transforme seu olhar e o olhar do outro, para que ele passe a respeitar todos os corpos, pois eles são LIVRES. Transformada tem o poder de ser, que o artifício nessa criação os leve a uma obra e que ela transforme outros olhares. Continuem… por outros CORPOS!
Apresentação 08- Relatos de Mim. Narrações. Violão. Suicídio. Representação. Suicídio. Eram 3 pessoas em cena. A imagem no palco muitas vezes dá conta de toda representação que queremos. A potência do aluno ator e seus relatos era satisfatório para contar cenas de horror e angústia que levaram ao suicídio. Solo é sacrifício. Tente. Toda a narração pode estar na potência da imagem que cria em cena. Quantos de nós realmente paramos para ouvir relatos de quem precisa ser ouvido antes do fim? Quem escuta?
Apresentação 09- Psicose. Sara Kane. Exercício onde a ação solta esconde a palavra. Música constante, esconde a palavra. Um novo diretor e um novo ator que em processo devem amadurecer a cena e o verde todo virar palavra pulsante, a ação virá como na vida precisa ao que se diz.
Então me encontrei novamente com duas cenas. Obsuricenidades (o tecer a dança na escuridão, a investigação constante do movimento) e Esperando Godot. O teatro tem uma sabedoria exata na sua execução. O fazer, a entrega e o fazer novamente. Foi apenas uma cena, porém essa me despertou a necessidade de estar no teatro de novo. Voltarei a vê-los. Avante, que todas as palavras ditas por essa encenação sejam ação e revolução ou um dia ficaremos todos mudos. Ficaremos?
Todos os artistas Plurais, que fizeram o dia 12 de agosto acontecer, traziam em seus discursos de cena coragem, digo coragem, porque na atual conjuntura social, ou estamos amortecidos ou desesperados. Todos aqueles corpos tinham algo para dizer e disseram. Seja na dança, na música, na ação ou na palavra. Corpos plurais em movimento. Pluralidades me trouxe para além entusiasmo, questões e as deixo com vocês, afinal, são vocês os criadores e eu aqui mera espectadora, onde devaneio e questiono dentro da minha realidade.
Sobre os discursos colocados em cena, BENVENISTE 1 nos diz que:
Portanto, pode se falar de discurso teatral para a representação quanto para o texto dramático, o qual está a espera de uma enunciação cênica.
Como citado acima, os discursos vem de temáticas sociais, como: machismos, homofobia, transfobia, abusos sexuais, violência, doenças do século, racismo, política, liberdade de expressão dentre outros. Discursos esses reais, colocados no palco. Que cena e que resultados quero com essa construção? O que estamos enunciando e gerando?
Todas essas dramaturgias foram colocadas em experiências, de corpos ainda frágeis na ação, no fazer cênico. Como processo de formação e pesquisa na universidade devemos lembrar que essa formação é contínua. Aquele que almeja pela profissão autoral, tem de investigar o seu corpo continuamente, o corpo lugar de exploração e experimentação sucessiva. Continuar a experimentar cenas no palco, mas antes chegar ao máximo de sua pesquisa. Estamos em processo de formação, mas vamos além do solicitado. Se me coloco como artista sou um pesquisador. Permanece aí o exercício da autocrítica e principalmente da escuta de si e de seu trabalho em cena e não falo aqui em excelência, falo em consciência e responsabilidade sobre seu trabalho.
“ O ator não deve usar seu organismo para ilustrar um movimento da alma; deve realizar o movimento com seu organismo”2 Grotowski in Barba
É um árduo trabalho para muitos, para todos nós. Estou com vocês, mas é necessário que despertemos no caminho da nossa formação, que como já disse, é contínua. Ator e atriz nunca se formam, nem professores de teatro. Todas as experiências feitas na universidade, serão levadas a vida e serão aprendizado para a sala de aula, mesmo sendo tudo novo. E sendo você o professor na escola, será aquele que terá de resistir com a arte de ensinar arte, teatro, dança etc?
Todas as questões que apresento, são problematizações de cena, não se trata aqui do que agrada ou desagrada, mudemos os adjetivos, vamos buscar o diálogo com o outro. Eu desde já agradeço. Aprendi muito com vocês nessa tarde, mas é imprescindível lembrarmos que somos professores em formação, que somos artistas em processo de criação e que essa obra chegará a outros. É urgente não buscarmos a espetacularidade, a grandiosidade, a ostentação do ser artista. Os grandes aplausos e gritos, eles virão na medida que a obra atravessar uma pessoa sentada na plateia, e por mais que não sejamos ovacionados neste instante, teremos cumprido nosso papel: Fazer arte, alimentar uma alma com poesia. Para isso, os deixo com Artaud:
E é bom que desapareçam algumas facilidades exageradas e que certas formas caiam no esquecimento; assim, a cultura sem espaço nem tempo, e que a nossa capacidade nervosa contém, ressurgirá com maior energia. E é justo que de tempos em tempos se produzam cataclismos que nos incitem a retornar à natureza, isto é, a reencontrar a vida.3 
    Reencontrem as suas cenas e bons afazeres a todos e todas.

Esse foi apenas um dia de pluralidades. Tiveram outros. Não conseguimos ir. Essas foram algumas cenas e um diálogo tecido sobre elas, que venham muitos.
Referênciais:
1-PAVIS, Patrice- Dicionário de Teatro/Benveniste(1966;1074)Pg.101;
2- BARBA, Eugenio- Terras de Cinzas e Diamantes;
3-ARTAUD, Antonin- O Teatro e seu Duplo;
4 - Imagem 1: Obra de Djamyson Olimpo; 5- Imagem 2: Everardo Saturnino em cena.
*Peço licença a todos que compuseram a programação do dia 12 para me dirigir a eles como plurais, a ficha detalhada com os nomes e criações dos alunos-Atores/atrizes até hoje não chegou até mim, mesmo solicitada. Uma falha minha, que não solicitei no dia.

ESTUDOS "Tessituras Críticas do Filé: Um convite a olhar com profundidade a escuridão"

    Tessitura _ Bruno Alves

   Desenvolver um olhar crítico sobre as Artes Cênicas tem sido ao longo dos últimos meses o objeto de estudo do Coletivo Filé de Críticas. Através da crítica fazer pensar e refletir sobre o contexto em que a obra de arte é produzida, fazer também refletir sobre as diversas formas de recepção que essa obra possa ter em contato com o público e ampliar assim, os possíveis diálogos. 

    A tessitura de textos têm sido um dos nossos maiores vínculos de diálogos nos últimos meses. Ao publicarmos em plataforma digital registros de olhares sobre os espetáculos de artes cênicas em palcos alagoanos, estamos buscando estabelecer um diálogo entre: Artistas e público; artistas e críticos; público. Além de trazer possibilidades de leituras sobre as obras que lhe são apresentadas. 



   É preciso relembrar, nesse percurso que fazemos enquanto coletivo, as possíveis definições e caminhos que o olhar sobre a criação artística percorreu ao longo da história da Estética para que chegássemos em nosso contexto com um espaço cada vez mais rico e cheio de possibilidades de apreciação e pensamento sobre o fazer artístico. Para Pavis a Estética:

“(...) é uma teoria geral que transcende as obras particulares e dedica-se a definir os critérios de julgamento em matéria artística e, por tabela, o vínculo da obra com a realidade.(...)”.1

   A crítica ela vai ganhando nome e forma nos avanços que o pensamento sobre Estética vão se formando. Ela não nasce solta, vai se formando e ganhando estrutura com o surgimento da autonomia de pensamento do ser humano sobre as coisas que faz e sobre as coisas que aprecia em arte. 

   Não podemos deixar de falar que a liberdade de criação, a autonomia para ser mais preciso, foi uma conquista, pois muitas vezes a criação artística (de pintores e escultores) esteve ligada aos laços com mecenas e também com princípios religiosos. Destacamos aqui especificamente, para falar desse vínculo com o divino, o período que marca a história da humanidade e é reconhecido como a Idade Média, pois mesmo em períodos mais distantes, sempre houve uma ligação do artista e sua criação com os deuses e deusas de seu tempo.

   Como poderia o ser humano criar na Idade Média se Deus era o único criador das coisas? Como poderia pensar ou mesmo duvidar das coisas se esse mesmo Deus era onisciente e onipresente ao ponto de estar até mesmo sabendo os pensamentos mais secretos de cada pessoa? Então, reproduzir a realidade, mostrar a natureza das coisas tal qual como elas eram tornou-se por muito tempo uma forma mecânica, vestida de técnicas, que faziam os artistas sobreviverem e ganharem reconhecimento e prestígio. Passar a criar outras realidades, refletir e questionar as coisas e ir além daquilo que se via tornou-se uma conquista ao longo do tempo. O artista era agora mais livre para poder representar a realidade da forma que ele queria e a filosofia cada vez mais impulsionadora de olhares sobre as coisas que eram inerentes à natureza humana, pois na Renascença, surge  essa possibilidade de ver como nos lembra Jimenez ao dizer que:

“Com a Renascença desponta a noção de criação autônoma. Pouco a pouco, o artista liberta-se das coerções religiosas, políticas e sociais da Idade Média e afasta-se da teologia e da filosofia escolásticas. Todavia, apesar dessa libertação e apesar da dignidade que evolui para seu status social, decorrem dois séculos antes que a estética se impunha como disciplina específica e que a arte constitua uma esfera totalmente autônoma, independente não apenas em relação à Igreja e ao poder, mas também em relação à ciência e à moral”.  2

   O Renascimento marca esse momento em que a autonomia/liberdade da criação e do olhar são devolvidos a condição humana. Agora com mais força e autonomia tudo que estava exposto era objeto do pensamento e da dúvida.

   Quando falamos e escrevemos sobre um espetáculo de Artes Cênicas buscamos evidenciar nessa escrita o processo de criação autônomo de grupos e artistas que rodeados de subjetividades vão encontrando na construção de um espetáculo formas de dialogar sobre questões do nosso tempo.

   Se ao longo do caminho da História da Estética somos colocados diante de pensamentos como o de Descartes ao dizer que “Penso, Logo Existo”, começamos a partir daí um marco na humanidade como racional, na qual o artista já não é aquele que cria com dons divinos, mas aquele que pensa sobre o que faz, que encontra no cotidiano e em seus afetos e vivências elementos de composição das suas obras.  Jimenez nos lembra que:

“No centro deste racionalismo, há, evidentemente, o sujeito, afirmando sua autonomia tanto através da dúvida quanto através da certeza de seu próprio pensamento”.

   A dúvida entra como grande aliada na construção do pensamento e do olhar - Eu vejo, eu penso, eu duvido, eu tenho o direito de duvidar. A existência de um ser divino não pode impedir a minha dúvida, a minha construção de um pensamento, porém esse caminho de “aperfeiçoamento” do olhar estético irá se ampliar em estudos de outros pensadores posteriores a Descartes, como Kant e Hegel, os quais Jimenez nos aponta com mais precisão nesse mesmo livro que por aqui citamos. 

   No entanto, cada vez mais buscamos treinar o olhar em nosso tempo e principalmente como coletivo de crítica de artes cênicas. Treinar o olhar sobre as obras que acontecem em solo alagoano como quem decifra, ou encontra elos de interpretação nas narrativas que são expostas em seu tempo. Olhar, além de ver. Olhar e reconhecer, ou reconhecer-se como parte desse tempo em que a obra está inserida.

   Pensar sobre as coisas é treinar o olhar estético. Isso tem sido tarefa difícil em tempos de contrainformação. É nesse contexto que a nossa crítica, entra como elemento de profunda importância no ato de fazer o outro se olhar e se perceber dentro daquilo que está sendo mostrado. Aqui a nossa tarefa vai se ampliando, treinamos o nosso olhar, buscamos ver as possibilidades daquilo que nos é mostrado e ao escrevermos sobre aquilo, buscamos trazer opções de olhares para aquelas pessoas que nos leem e que apreciam em seu cotidiano o fazer artístico em Alagoas.

   Dentro desse pensamento sobre o olhar, Agamben afirma que ser contemporâneo está na capacidade de olhar o tempo em que se vive, mas olhar fixamente cada canto desse tempo e principalmente a escuridão, aquilo que não está exposto, ou que é exposto, mas geralmente quando estamos vivendo não conseguimos enxergar. Eis aí um ponto importante para a ação crítica. O de revelar aquilo que se mostra ou que se esconde por trás de um processo cênico dentro do contemporâneo. E para Agamben:

“Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade. Com isso, todavia, ainda não respondemos a nossa pergunta. Por que conseguir perceber as trevas que provém da época deveria nos interessar? Não é talvez o escuro uma experiência anônima e, por definição, impenetrável, algo que não está direcionado para nós e não pode, por isso, nos dizer respeito? Ao contrário, o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. (...). Aquilo que percebemos como o escuro do céu é essa luz que viaja velocíssima até nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais provém se distanciam a uma velocidade superior àquela da luz. Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo.”3
   Para a crítica é também um desafio, olhar com cuidado aquilo que se mostra e perceber que caminhos de escuridão (ou não) percorreu aquele artista que quer nos comunicar e trazer à luz alguma coisa.

   Dessa forma, quando olhamos a obra temos a tarefa de ver como aquela obra ilumina o tempo em que foi exposta, mesmo que seja a montagem de um clássico, como aquele clássico nos revela ainda hoje? Como o artista foi capaz de extrair da escuridão possibilidades de luz, raios e faíscas? Pois para Agamben:


“No firmamento que olhamos de noite, as estrelas resplandecem circundadas por uma densa treva. Uma vez que no universo há um número infinito de galáxias e de corpos luminosos, o escuro que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, necessita de uma explicação. É precisamente da explicação que a astrofísica contemporânea dá para esse escuro que gostaria agora de lhes falar.”


A crítica vem também dentro desse universo de possibilidades nos fazer perceber os rastros de escuridão que cercam a criação, ampliando as possibilidades e fortalecendo a criação de cada artista.

Assim, para nós o olhar com profundidade a escuridão é uma forma de encarar as possibilidades de criação e interpretação que cada obra possa ter. Além de possibilitar outros diálogos entre público e artistas, para além das subjetividades de cada um.

     O Olhar com profundidade a escuridão é também tarefa do artista no tempo de hoje, porque ao ver-se parte de um contexto é preciso também que ele reflita sobre esse e mergulhe numa criação que amplia as possibilidades de interpretação da vida. Daí lançamos também ao artista que nos comunica e que recebe o nosso olhar a questão: Como é receber em sua obra um olhar de outra pessoa, que tenta tecer diálogos, questionamentos e tensões na escuridão?


Referências:

1) Dicionário de Teatro - PAVIS, Patrice

2) O que é estética. JIMENEZ, Marc.

3) O que é contemporâneo e outros ensaios.AGAMBEN, Giorgio.

4) Fotografias noturnas do Povoado Riacho em São Miguel dos Milagres - AL de Nivaldo Vasconcelos.

“Estendam ás mãos já! - Narrativas Individuais para Construções Coletivas”

    Tessitura_ Lili Lucca            Ainda andamos de mãos dadas Cacau, aqueles que na cena construíram espaços de criação de arte ao seu la...