Um tango na rua do banheiro

 Tessitura_Jocianny Caetano


Esta tessitura é dedicada a
Jeane Tenório, ela pretende ser uma dança em sua homenagem.


O texto faz parte de um registro de memória sobre uma imersão de breves dias na cidade de Penedo. O projeto “Território das Artes Cênicas de Alagoas – Etapa Penedo” , financiado pela Secretaria de Cultura de Alagoas, através do edital Prêmio para as Artes Cênicas 2022, pretendia ser um registro da cena deste lugar no presente, a partir de diálogos com artistas, moradores e espaços. E começo pela Rua do Banheiro, onde um cenário primitivo dialoga com uma pichação deste século de autoria desconhecida, com os seguintes dizeres:

“3 coisas que odeio:
Vandalismo,
Ironia,
Lista.”

As histórias de origem da rua são entrelaçadas a invasões portuguesas e holandesas no território brasileiro, e de uma certa figura que se repete bem presente nos livros de história, pontes e ruas. Aqui não farei menção a um tal senhor, que tinha uma péssima relação com seu filho, e que tanto contribuiu para dizimar grande parte da cultura e memória do nosso lugar. O esquecimento para os nascidos com o sol em Leão, é o pior dos castigos. No entanto, menciono os nativos que faziam suas próprias embarcações, venciam o rio e ancoravam naquele desembarcadouro que naturalmente oferecia escadas da pedra penedia, que dá origem ao nome da cidade de Penedo, para os acessos à cidade. (SALES, 2003).

A rua se chama assim porque homens e mulheres de forma organizada revezavam-se para tomar banho no rio. Se for pensar na rua do banheiro como um corpo, a imagem é de um corpo debilitado, que ama a arte e sua história mas que para permanecer nela carece ser guiado com cuidado, talvez nenhuma força humana seja capaz de tanta sensibilidade e seja necessário algum objeto inanimado, que o guie de forma pseudo efetiva para que ele continue dançando até o fim, mas ainda assim a humanidade é quem tem que apresentar o objeto a este corpo.

A rua do Banheiro seria agora uma espécie diferente de um corpo, do que todos estão condicionados a ver, presa dentro de um quarto, escondida. Aquela figura que certamente não é chamada para mostrar quando chega uma nova visita na casa. Ela se metamorfoseou à la Kafka (2019), e a memória curta da cidade incapaz de promover imagens além do que pode ser visto, provoca sentenças como a da moradora Andreza, que se apressa em falar sobre a rua: “Aqui não dá em lugar nenhum”.

Andreza nos guiou em um breve passeio, sem pretensões e com o reconhecível calor amigável que os penedenses demonstram ao receber visitas, apesar de ser forasteira fala da cidade com brilho no olho, ama a arte e por isso nos ofereceu um afeto que será eternamente lembrado. Pessoalmente caminhei pela rua com ela, e mais dois moradores ilustres da cidade, José Luiz Passos e Ednilson Alves, e com os dois últimos dividi as esperanças de ter aquele espaço retomado, assim como Sales:

Enfim, o viajante está na rua do Banheiro, onde se fica diante do nascimento do Penedo. A visão de hoje não é das mais agradáveis. Ainda não se despertou para o potencial histórico e turístico que tem a modesta rua e por isso o abandono e o matagal são os senhores desse pedaço de chão. Estamos nos fundos do Clube de Caça e Pesca do Penedo, prédio que já serviu de Consulado Provincial, onde nos tempos de antes das barragens era possível pescar farturas em apenas uma manhã de serviço. Hoje o peixe já não consegue vencer o lado que o rio já não tem forças para carregar e o ecossistema perde inúmeros elos de sua corrente. Mas ainda é possível recuperar a memória do lugar. (SALES, 2003, p. 79)


A frase de Andreza repetidamente fez parte dos meus pensamentos durante os dias que se seguiram, refletia muito sobre o que havia pesquisado e a experiência de ver diante dos meus olhos a imagem daquela rua desaguando no rio, isso não parecia lugar nenhum, do contrário, parecia o mundo. O encontro com a escrita Kafkiana veio após o intercâmbio, e me proporcionou criar conexões entre a figura estranha e repulsiva descrita em seu livro e a rua do banheiro, tão produtiva outrora, esquecida contemporaneamente na sua inutilidade.


Da direta para esquerda, Ednilson Alves, José Luiz Passos e Jocianny observam à esquerda da foto a data "1761" da única fachada da rua do banheiro. Registro: Bruno Alves

Sinto que devo satisfações aos que me lêem e ao meu coletivo de críticas, quando pontuo com tantos caracteres uma rua, um caminho de passagem, quando há tanta coisa para tecer num espaço tão rico de cultura como é Penedo. Por que escrever sobre uma rua chamada banheiro? Parece ser a pergunta que vejo nos olhos dos moradores ilustres que encontrei pelo caminho e nos dois companheiros de aventuras. A resposta pode se encontrar no fato de que criei uma imagem ambiental para ela, antes mesmo de compartilhar do mesmo espaço já havia experienciado:

Cada indivíduo elabora em seu cérebro, na perspectiva de seu próprio corpo e conforme um olhar construído na relação em sociedade, uma imagem ambiental. Ela é a representação mental do espaço elaborada através de quaisquer tipos de experiência, mesmo indireta. (MARTINS, 2009, p. 25)

E talvez para que não restem dúvidas, continuo a me justificar, porque sou tomada por um sentimento de ansiedade que vem através de notícias sobre como nós somos capazes de nos autodestruir, diria até que somos muito bons em fazê-lo, e que estamos ebulindo deste mundo. Relógios do tempo ligados com data limite bem mais próxima do que aqueles que testemunharam pessoas indo à lua poderiam prever. Eu, como não gosto muito de colocar, em primeira pessoa acredito ser urgente construir memórias com os espaços, criar narrativas cênicas, fazer possivelmente nossa última dança. E dei este título por diversas simbologias, mas também por uma frase atribuída ao músico argentino, Enrique Santos Discépolo: “O tango é um pensamento triste que se pode dançar".

1761? 2023? 2030? A imagino indo embora guiada por um tango, firme, ereto e tão homem que é capaz de a sepultar. A não ser que dance, a não ser que exista uma conexão, a não ser que a torne cênica.



Nota de afeição: aos queridos artistas de Penedo, que tive a honra de conhecer e dialogar, peço que recebam esse texto com complacência, pois nossos encontros certamente me proporcionaram uma visão grandiosa das artes cênicas penedenses, seus relatos me ajudaram a entender como nos ligamos, acredito que os artistas em geral, nesta busca pelos espaços. O relato acima se propôs ser uma dança a par, mas de certa forma debate com nossas questões, às vezes o verbo correto não é encontrar, mas sim ocupar ou quem sabe retomar.


Referências:

KAFKA, Franz. A Metamorfose. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019. 1ª edição (10 maio 2019).

MARTINS, Marcos Bulhões. Encenação em jogo. São Paulo: Hucitec, 2009.

SALES, Francisco A.. Banheiro. In: SALES, Francisco A.. Arruando para o forte: roteiro sentimental de penedo. 2. ed. Recife: Bagaço, 2003. Cap. 7. p. 75-81.

“Estendam ás mãos já! - Narrativas Individuais para Construções Coletivas”

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