Aldeia Arapiraca 2019: Dois Perdidos Numa Noite Suja - Cia de Teatro Fulô de Mandacaru

A noite em que nos perdemos em Arapiraca


 Tessitura_Bruno Alves

"Um quarto de hospedaria de última categoria, onde se veem duas camas bem velhas, caixotes improvisando cadeiras, roupas espalhadas etc.". 1

É assim que nos descreve o espaço em que acontece a história, a rubrica escrita por Plínio Marcos para o texto Dois Perdidos Numa Noite Suja, escrito em 1966 e apresentado pela primeira vez no mesmo ano no Bar Ponto de Encontro, na cidade de São Paulo. A obra foi ainda adaptada para o cinema em 1970 e, mais recentemente, em 2002.



Em Dois Perdidos Numa Noite Suja temos, dividindo o mesmo espaço de um quarto de hospedaria, Tonho e Paco. O texto de Plínio Marcos é composto de dois atos, sendo o primeiro ato por cinco quadros e o segundo por um quadro único. Nas noites em que se segue a narrativa vemos se desenvolver os conflitos e questões que envolvem os personagens, ambos em situações de extrema pobreza. O grande dilema de Tonho é não possuir um par de sapatos e, por isso, queixa-se da vida e das oportunidades de trabalho que não lhe surgem; em contrapartida, seu parceiro de quarto, Paco, tem um par de sapatos novo que destoa com o restante de sua roupa. Tonho vive momentos de questionar de onde o seu parceiro teria roubado aqueles sapatos, já que ele não teria dinheiro para comprá-los. Paco, que na primeira cena do texto toca uma gaita, um dia trabalhou como flautista, mas teve sua flauta roubada e vive ao longo da narrativa a provocar Tonho em muitos aspectos, inclusive, chamando-o de homossexual.

O ápice do texto se dará quando, no decorrer da história, Tonho, que conseguiu um revólver para vender e obter algum dinheiro com ele, resolve armar um assalto junto com seu parceiro, para que assim, assaltando especificamente um casal de namorados na noite, eles possam roubar seus pertences, consigam um par de sapatos para Tonho e  dinheiro para comprar outra flauta para Paco. Ao final, depois da realização do assalto, somos surpreendidos pelos embates dos dois personagens e vemos Tonho atirar e matar Paco, roubar seus sapatos e seguir sentindo um prazer louco em ter matado e se tornado uma pessoa perigosa.

A Cia de Teatro Fulô de Mandacaru, residente e atuante na cidade que nos recebe nessa Aldeia SESC 2019, apresentou na noite do dia 17 de setembro, no Teatro Hermeto Pascoal, a sua versão de Dois Perdidos Numa Noite Suja. Tendo como diretor Ítalo Souza e no elenco Henrique Avlis (Paco) e Denis Sylva (Tonho).

   Somos encontrados na porta do teatro por Henrique Avlis (Paco) que, tocando sua gaita, nos leva até o espaço cênico, onde aconteceria o desenrolar da história. Adentramos o teatro e visualizamos uma cenografia correspondente a rubrica do texto de Plínio Marcos. Acomodamo-nos e vemos acontecer o desenrolar de toda a história.

Temos em cena dois atores com atuações muito potentes e viscerais, uma iluminação bem elaborada que constrói em nossa frente imagens bastante interessantes, com quadros e cenas bem marcados com referências realistas e cinematográficas.

Não há dúvida de que existe muita potência criadora dentro do espetáculo. A Cia Fulô de Mandacaru aposta no realismo, vai beber nas referências do cinema, seja na construção dos personagens, ou mesmo na marcação de cenas para construir diante de nós um espetáculo que, em sua estrutura, é bem executado.




    É observável que o grupo peca pelo excesso de querer mostrar e “causar impacto na plateia”, como falou o diretor Ítalo Souza, e talvez pela falta de profundidade e maturidade das escolhas estéticas. O que não quer dizer que eles não tenham referências, porque vimos que têm, mas a busca estética beirando a inspiração na linguagem cinematográfica muitas vezes passa a sensação de querer retratar um realismo que somente o cinema e seus recursos tecnológicos são capazes de fazer com precisão e mais possibilidades. É visualmente bonito e interessante os quadros de imagens que constroem. Parece-nos, em certo ponto, que foram beber nas referências, mas de alguma maneira ainda parece que precisam extrapolá-las, reconfigurá-las e transformá-las em outra coisa e em um lugar mais particular do próprio grupo.

 Quando essa busca pela particularidade do grupo e suas escolhas cênicas acontecem, como, por exemplo, quando vemos a inserção de termos usados em nosso cotidiano no texto de Plínio Marcos, vemos aí uma tentativa de um processo antropofágico que é bastante interessante por aproximar de nós um texto da década de sessenta (com questões atuais, é claro!) e tirar dele algumas gírias especificamente paulistas.

Esse processo de investigação e transformação do texto ainda não se completou e mostra que eles possuem grandes possibilidades de amadurecer a obra que construíram, embora haja tentativas de releitura da obra que, naquela noite, se apresentaram de formas muito contraditórias.

Nem sempre o que desejamos mostrar corresponde à forma de recepção das pessoas, o que poderá causar embates por mexer em lugares da singularidade de cada espectador. Dois exemplos disso acontecem quando o personagem Paco resolveu debochar e xingar Tonho de homossexual. Esse discurso, escrito por Plínio Marcos, retrata de forma crua e sem filtros o que pensam muitas pessoas sobre ser homossexual, colocando a imagem do gay como uma figura inferiorizada e pejorativa. Sergio Manoel Rodrigues, citando Oswaldo Mendes, explica que


"essas personagens marginalizadas incomodam o público não porque suas falas são carregadas de palavras de baixo nível, mas porque falam o que sentem e o que pensam  a respeito de suas necessidades e condições de vida."2
É interessante observar que a reflexão do autor a respeito da escrita de Plínio Marcos revela também que expor ao público o que sente e o que pensa pode se tornar um dilema em 2019, porque, na polarização em que vivemos, vimos crescer um discurso pelo direito de oprimir, pelo politicamente incorreto. Certamente, essa não era a intenção de Plínio Marcos ao trazer diálogos tão fortes e de cunho homofóbico, mas hoje, ao analisarmos a conjuntura do tempo em que vivemos, temos que ter muito cuidado para não fortalecer discursos de pessoas que, assim como o personagem, acreditam naquilo que foi dito. Durante o debate foi externalizado inquietações na plateia que se sentiu constrangida e ofendida com a reprodução daqueles diálogos, mas daí poderíamos pensar que o texto não foi escrito pelo grupo e que se trata de uma obra muito importante para a dramaturgia brasileira. Obviamente, o grupo não é responsável pelas palavras escritas por Plínio Marcos, mas ao escolher falá-las, eles tornam-se responsáveis pelo discurso e escolhas estéticas que assumem como seus. E o que fazer para atualizar essa narrativa?
...

   Não podemos esquecer que o grupo é responsável pelas escolhas que fazem. Uma das escolhas mais emblemáticas da noite, e aí percebemos que houve uma busca por criação de cenas, está na inserção de uma cena de estupro que não existe no texto original de Plínio Marcos. Da passagem do primeiro ato para o segundo, no texto original, não existe indicação de criação de cena de assalto. Os dois personagens aparecem no segundo ato e o assalto aconteceu sem que tenhamos a construção dessa imagem, vemos apenas o desenrolar da conversa após o assalto e sabemos o que aconteceu através do diálogo dos personagens. Ficamos sabendo que Paco bateu com um pau na cabeça do namorado da moça, mas não há referência ou citação que ele a estuprou. A Cia Teatral Fulô de Mandacaru optou por criar a cena do assalto em off, fora da nossa vista e, enquanto ouvíamos o assalto acontecendo por trás das coxias, o palco era tomado por uma luz vermelha. Uma imagem bastante interessante não fosse a "cena surpresa" que aconteceu diante de nossos olhos, quando uma mulher foi estuprada de forma bastante realista por Paco.

É óbvio que o grupo tem a liberdade de criar e fazer releituras da obra, mas é preciso ser responsável por essas escolhas. Principalmente quando essas envolvem questões tão profundas nas vidas das mulheres. Uma atriz que não esperávamos, cuja personagem não conhecemos e que entra na narrativa para fazer uma cena de estupro causa certamente um impacto muito grande na receptividade do público e divide opiniões entre os que acham necessário aquela exposição e as que se sentem agredidas de alguma maneira com aquela cena. É preciso compreender que tudo que se coloca em cena traz uma informação. É preciso se perguntar também por que motivo foi necessário dar esse destaque à cena de estupro, quando a cena do assalto foi construída de uma outra forma, inclusive com potência teatral. Ao colocar uma atriz, e, como salientado pelo público presente, uma atriz negra, para ser estuprada em cena, eles não só colocam mais uma mulher, colocam também os dados das pesquisas que apontam que as mulheres negras são em sua maioria as maiores vítimas de estupros no Brasil.

   Se, de alguma maneira, eles desejam abordar a temática do estupro dentro da obra, podem encontrar formas e metáforas que apresentem não somente o problema, mas que apontem caminhos de possibilidades narrativas, além daquilo que vemos na TV e no cinema. É claro que o teatro não conseguirá responder ou encontrar as soluções para os problemas humanos, mas, ao questionar esses problemas, ao expor de maneira coerente e articulada, transformando através dos símbolos e metáforas, podemos, sim, apontar caminhos e talvez não respostas, mas novas perguntas. Para Pavis, metáfora quer dizer:

"utilização icônica do símbolo: determinada cor ou determinada música remete a esta ou àquela atmosfera; está ligada à condensação, aos vetores acumuladores e embreadores".3
São as metáforas que nos possibilitam recriar narrativas, ampliar as possibilidades de leituras, "recriar" a linguagem teatral e ampliar as possibilidades de diálogo com o público. Talvez se o grupo mergulhasse na criação de outras metáforas para ampliar a narrativa de seu espetáculo, poderíamos ver, com outros olhares e leituras, cenas que nos incomodariam e causariam desconforto pelo impacto de sua construção metafórica e teatral, e não porque são realistas e, de certo modo, inconsistentes em seu pensamento e elaboração, remetendo a uma falta de diálogo, cuidado e busca por outras formas de narrar um mesmo fato.


Durante o debate, ao final do espetáculo, muitos desses pontos foram levantados, momentos de tensionamento apareceram, mas o que mais se destacou foi a dificuldade de escuta. Algo muito característico desse tempo polarizado em que vivemos, em que muitas vezes não estamos dispostos a ouvir o outro e, quem sabe, até compreender a forma como ele vê e recebe as coisas.

Não podemos esquecer que cada pessoa que ali assistiu é dono e dona de um olhar muito particular sobre o espetáculo e que, no fundo, são olhares e não uma ordem para que algo seja mudado. Assim como essa crítica que pretende muito mais querer ouvir, dialogar e trazer perguntas, sempre mais perguntas do que respostas. Enquanto não nos ouvirmos nesse processo de recepção daquilo que é mostrado, estaremos nos perdendo uns dos outros, ficando distantes, sem possibilidade de aprendizado e amadurecimento, estaremos perdidos se não estivermos juntos aprendendo e se desconstruindo a cada dia. Nos perderemos de nós mesmos, numa noite...


Referências:
1 - Marcos, Plínio. Dois Perdidos Numa Noite Suja. 1966.
2 - Rodrigues, Sérgio Manoel. As personagens marginais em Dois Perdidos Numa Noite Suja de Plínio Marcos. Revista Estação Literária. Londrina. Vol.12. Jan. 2014.
3 - Pavis, Patrice. Dicionário de Teatro.
Fotografias de Frederico Ishikawa
Revisão: Felipe Benício



Aldeia Arapiraca 2019: Tarja Preta da Cia do Chapéu

Tessitura_Bruno Alves

I - A escuridão


   Poderia ser sobre o caminhar na escuridão, ou sobre o desconhecer-se e reconhecer-se nas cintilações da vida, ou mesmo sobre a penumbra que paira vez ou outra na existência humana. Poderia ser sobre ela e sobre nós também. Poderia.



   Em seu percurso de criação do espetáculo Tarja Preta a Cia do Chapéu compartilha conosco inquietações que atravessam o tempo dentro da trajetória do grupo, pois essas questões começam a nascer em 2010 e  agora em 2019 continuamos a receber lampejos de uma obra em continuo amadurecimento. Então, esse espetáculo poderia ser também sobre não desistir de si ou do teatro e acreditar na força que essas paredes possuem quando se quebram e nos colocam em cena, revelando-nos e fazendo crescer um clarão que nos indica e provoca a abertura de muitos caminhos.

   Poderia ser sobre depressão, bipolaridade, ansiedade e transtornos mentais inúmeros. Poderia ser e é, mas também é forte por não ser, ou por não querer definir-se em uma situação específica ou numa estrutura narrativa, mas por revelar e deixar que nos revelemos diante daquilo que vemos.

   Todos ali presentes, naquele teatro, naquela casa escura, naquele quarto solitário, somos colocados diante do silêncio, somos obrigados a silenciar verdadeiramente, porque silêncio é coisa que desconhecemos e talvez ele se apresente a nós em algumas vezes nas madrugadas insones, em noites que se repetem e nunca parecem ter fim.

   Caminhamos de um lado para o outro, tudo se torna pequeno, o espaço é infinito quando o tempo parece não passar e a luz, a luz nos acompanha mesmo no meio da escuridão. Ela nos desperta, nos mostra que estamos vivos e quebra a escuridão toda vez que a invocamos ou que sem perceber ela atravessa pelas arestas do lugar em que vivemos.

II - O lugar em que vivemos

   O corpo, essa casa que nos acompanha nessa nossa existência na terra, essa casa em constante movimento e transformações, que às vezes para, mas que em outros momentos rebela-se nos levando a movimentos que não conhecíamos.

   Somos um corpo olhando para o teto. Seguindo os batimentos de um relógio que segue em descompasso com o coração. Não temos tempo, mas agora temos todo o tempo do mundo. Um tempo que não queríamos, um silêncio que não procuramos.

   Comida é alimento para o corpo, como a ação é alimento para o teatro, mas se não comemos o alimento ou se esse corpo rejeita, viveremos um duelo de não comunicação entre o que saí e o que entra dentro de nós.

   Somos muitos e carregamos duplos, personas que nos seguem e só se revelam no nosso cotidiano, mas é a nossa sombra que nos apavora.

III - O corpo outra vez...


   Tarja Preta provoca uma sensação terrível dentro de nós, mas há beleza no terrível. Como há beleza nas próprias contradições da vida.

   Construímos ao assistir o espetáculo uma outra obra dentro de nós. Nossos corpos, nossos arquivos humanos saltam querendo encontrar sentidos, criar narrativas e lincar as imagens que vemos com as nossas experiências mais profundas.

   Joelle Malta é um corpo inquieto, em movimento contínuo de buscar por encontros e autoconhecimento. Isso se revela quando vemos a trajetória desse espetáculo e vemos saltar de maneira inquietante de movimentos coreografados para movimentos do descontrole, do corpo em risco, do corpo doente. Um corpo que vai de movimentos simples e repetitivos ao corpo em processo de adoecimento e descontrole. Percebemos a sua investigação desses estados e vemos como tem crescido esse trabalho da atriz nesse estudo e percepção de si mesma para a construção de outros estados corpóreos. 

   O que vimos ontem, no Teatro Hermeto Pascoal, era um corpo carregado de histórias e querendo expressá-la em cada impulso, em cada pausa, batida, repetição, descontrole e desequilíbrio. É um corpo afetado pelos encontros e principalmente, como ela mesma definiu, um corpo “que é provocado pela atuação da própria luz em cena”.

Citando Deleuze, Ferracini nos lembra que: 

“Não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que pode ele, isto é, quais são seus afetos, como eles podem ou não compor-se com outros afetos, com os afetos de um outro corpo, seja para destruí-lo ou para ser destruído por ele, seja para trocar com esse outro corpo ações e paixões, seja para compor com ele um corpo mais potente”1
   E é esse corpo potente que tem se revelado nesse processo de investigação sobre si mesma que Joelle faz, e também uma nova potência surge a partir do momento em que escolheram trazer a cena a luz como um personagem cada vez mais presente e parte dessa narrativa.

   Agora Laís Lira não se esconde mais, mas torna-se esse corpo presente, essa sombra ao redor daquela cena, esse duplo, essa persona presente que pode ser um estado físico ou mesmo imaterial. O encontro de Joelle e Laís cria para Tarja Preta um corpo mais potente que provoca em Joelle a experiência de mergulhar cada vez mais em seu próprio material corporal para que no encontro e “confronto” com Laís descubram um novo estado.

   É bonito vê-las juntas. É bonito ver como mesmo em estados cênicos diferentes elas duas se complementam, se espelham e se reconstroem. Dá vontade de ver mais esses momentos de encontro das duas e principalmente de vê-las em processo de espelhamento e confronto. Quando esses momentos acontecem, ou mesmo os momentos mais sutis de encontro das duas, vemos grandes momentos de potência para o espetáculo.

IV - A luz outra vez


   Se no princípio da história do teatro a luz do sol serviu durante muito tempo para contar histórias e acompanhar as narrativas, o uso de outros elementos como o fogo, a vela e mais recentemente a eletricidade, causaram grandes revoluções no modo de fazer artes cênicas.

   Poderíamos questionar mais uma vez as dificuldades que encontramos na nossa cena de poder ter acesso a um equipamento de iluminação e o quanto isso nos tem custado nos últimos anos o não surgimento de profissionais dedicados a investigação da dramaturgia da luz, impedindo muitas vezes que nossos espetáculos tenham um crescimento e investigação significativas nesse campo, porém em Tarja Preta vemos nascer uma investigação de luz através de elementos não convencionais como lanternas e mesmo a vela.

   Esse processo de investigação desses elementos foi ao longo dos anos criando uma potência narrativa muito forte em Tarja Preta. Se antes a luz já era uma personagem dessa narrativa, pois ela enquadrava as cenas, narrava histórias e direcionava o nosso olhar. Hoje ela se tornou mais presente, compondo as cenas com mais ousadia e sendo parte fundamental dessa narrativa.

   Agora vemos Laís entrar em cena para iluminar Joelle e já não sabemos a distância da presença da luz nessa cena, pois ela é quem cria a espacialidade, que configura as imagens a serem exibida, como em fotografias cinematográficas. Os movimentos da atriz são desenhados por essa luz. São projetados pelo espaço. Parece-nos agora que temos nesse espetáculo três personagens, sendo elas: Joelle, Laís e a Iluminação. Um encontro onde ambas se fundem em muitos momentos do espetáculo.

   Essa mesma luz que cria o espaço, é aquela que redesenha o tempo em sua inconstância e impermanência, pois:

“ o tempo também não é só o “tempo dramático” em que ocorre a ação, por exemplo, entre a chegada e a partida de alguém, mas o tempo que descreve esse intervalo entre a chegada e partida. Não são momentos que saltam de um ponto a outro, mas uma duração, um fluxo temporal que já não pertence ao plano da narrativa”. 2
   Esse tempo, esse fluxo, esse intervalo entre o que poderia ser, o que é e o que se revela nesses intervalos, são potencializados pela luz que não somente marca o tempo entre uma cena e outra, mas que marca o não-tempo que existe nos intervalos dos acontecimentos.

V - O resto é silêncio


   Percorremos uma saga atemporal de uma mulher caminhando na escuridão, desenhando o espaço com a luz e narrando com seu corpo histórias que nos impulsionam a criação de outras tantas dentro da gente.

   Somos atravessados pelos afetos, pelos impactos que a narrativa daquelas imagens constrói dentro de nós.

   Uma pessoa da psicologia certamente iria descrever sobre os mais profundos aspectos de algum transtorno mental que ali identificou.

   Alguém com depressão iria ver-se movimentando-se naquele espaço.

   Um padre talvez narrasse sobre como Deus poderia ajudar aquela mulher ali naquela situação.

   Cada pessoa, de sua poltrona saberia conduzir uma narrativa muito íntima e própria da experiência que assistimos, mas é curioso como somos aprisionados nessa história e como não sabemos como sair dela.

   A peça acaba e vivencio essa sensação pela segunda vez. Não sabemos o que fazer, não conseguimos aplaudir. Será que esse final desperta uma dúvida na plateia e surge como algo inacabado na narrativa? Será que a plateia por algum momento não sabe que acabou ou espera que a qualquer momento aquela história continue?

   Pode ser. Pode não ser.

   Pode ser que algumas pessoas não saibam que ali era o fim, mas pode ser também que outras simplesmente paralisem diante da imagem congelada e fiquem no teatro sozinhas, diante de um relógio, sem saber o que fazer com aquilo que viveram, sem conseguir inclusive aplaudir, sem saber como levantar daquela poltrona e sair pela porta do teatro e voltarem para as suas vidas. 

   Pode ser. Pode não ser.

   Eu faço parte desse segundo grupo de pessoas.

Citações:
1 – Ferracine, Renato. Ensaios de Atuação. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2013.
2 – Camargo, Roberto Gill. Luz e cena: impactos e trocas. Revista Sala Preta. Vol. 15. Nº 2. 2015
Fotografias de Frederico Ishikawa









Aldeia Arapiraca 2019: "Eu sem você não sou ninguém" da Turma do Biribinha

Branco e Augusto de si mesmo
Tessitura_Bruno Alves

   Eu sem você não sou ninguém é um itinerário no ofício do ser ator e palhaço. Um diálogo por vezes antagônico da figura do artista com o seu personagem.

   Teófanes Silveira nos revela a sua trajetória e transforma o seu camarim em palco para celebrar os seus 61 anos de carreira e surgimento do célebre e querido palhaço Biribinha. É dentro desse universo íntimo, carregado das questões do artista mediante a sua carreira e o próprio envelhecimento, que ele brinca, transformando em riso um desencadear de revelações autobiográficas de sua jornada.
Era o fim do espetáculo. Era o começo. Em uma viagem surpreendente, Teófanes sai do Biribinha para que, de fora dele, possa enxergar melhor a si mesmo e as suas escolhas profissionais. Poderia escrever inúmeras coisas a respeito dessa relação artista/personagem, mas o que me chama atenção nesse processo de Teófanes é sua disposição para se fazer entender como ser humano/artista quando está dentro ou fora desse personagem.



   Somos envolvidos nessa história. O que pareceria ser um espetáculo de circo-teatro vai ganhando cada vez mais força e potência por trazer à cena questões cheias de experiência de vida. Vale ressaltar que, quando assistimos Teofánes/Biribinha, assistimos, antes de tudo, à sua própria trajetória personificada em cada mudança no corpo, no gesto e na voz. Teófanes é um artista resistente. Resistente no sentido de se tornar forte ao ponto de se reinventar para prosseguir, mostrando que o corpo que envelhece cheio de histórias é o mesmo que cada vez mais deita e rola para trazer vida aos personagens.

   É esse corpo engraçado, esse corpo que faz graça, que viu nesses últimos 61 anos as pessoas mudarem. Viu também nascer uma maior reflexão sobre o riso, sobre as coisas que nos fazem rir e sobre de quem nós estamos rindo, ou ríamos o tempo todo num passado muito perto de nós. Esse corpo sabe e esse corpo viu em sua trajetória que, em muitos casos, o riso esteve ao lado de opressões. Esse corpo entendeu isso e se reconstruiu, ou se reconstrói a cada apresentação.

   O uso de um boneco híbrido (no qual corpo de ator/manipulador e do boneco se mesclam), ou um boneco marionete, é um dos elementos mais surpreendentes dessa narrativa.  O jogo da palhaçaria acontece nas figuras de Teófanes e Biribinha. Criador e Criatura lado a lado, no mesmo palco, em corpos e formas diferentes. Branco e Augusto de si mesmo. Aí encontramos todas as questões que envolvem o pensamento do artista diante da sua criação, vemos também o pensamento da criação diante de seu criador.



   É interessante quando o Palhaço, fora desse corpo/ator que o domina e entende, tenta celebrar a liberdade de poder fazer piada com o que quiser, fora do controle desse artista que aprendeu a percorrer outros caminhos de riso. O palhaço fora do corpo do ator agora parece querer suavemente flertar com o que o ator entende como politicamente incorreto. Somos surpreendidos com esse palhaço que ousa desobedecer o dono e solta vez ou outra piadas um pouco pesadas. Somos surpreendidos, porque ainda rimos. Vale destacar que ali o boneco/palhaço está em um estado em que qualquer gesto seu é capaz de desencadear em nós uma chuva de risos. É surpreendente saber que rimos dele e que ele não precisa recorrer ao que o corpo do artista e seu criador tem deixado para trás.

   É notório o cuidado de Teofánes com a estética de seu espetáculo. Cada coisa que está em cena parece ter sido carinhosamente pensada e confeccionada para nos transportar para dentro do universo circense, o que nos surpreende quando vemos escapar alguma coisa descuidada: como uma mão da atriz que aparece enquanto, com todo o corpo coberto, ela manipula o boneco; ou mesmo quando vemos a luz se desencontrar e parecer fazer outro jogo antagônico ao artista e ao boneco que ali se entregam. Porém, é essa mesma luz que, ao final, nos oferece um fechamento apoteótico do espetáculo, com uma construção imagética cinematográfica deslumbrante e muito bem executada diante de nós.



   Eu sem você não sou ninguém vem para nos mostrar a potência da força do encontro entre artista, personagem e público. Vem, como uma declaração de amor, celebrar a trajetória de Teófanes Silveira, o Palhaço Biribinha, sim, sempre juntos um do outro, porque sempre lembraremos Biribinha ao falarmos de Teófanes, e sempre lembraremos e reconheceremos Teófanes ao falarmos de Biribinha. Reconheceremos também a nós, que juntos rimos.


Ficha Técnica do Espetáculo:

Direção: João Lima
Texto: Ilma Nascimento e Alberto Do Carmo
Elenco: Teófanes Silveira e Seliana Silva
Sonoplastia: Teófanes Silveira Junior e
Dinho Nascimento
Cenário: Rino Carvalho
Orientação Em Manipulação: Lily Curcio e
Jorge Morosi (Keke)
Criação De Iluminação: José Carlos Negão
e Marcelo Porqueres
Responsável Técnico: Dinho Nascimento
Figurino: Seliana Silva
Produção: Turma Do Biribinha
Fotografias de Frederico Ishikawa

Crítica: Esperando o Grilo



Tessitura_Jocianny Carvalho

Começaremos pelo fim, já que assistimos no dia quatro de setembro do ano de dois mil e dezenove a uma livre adaptação de Esperando Godot de Samuel Beckett, da Cooperativa Alagoense de Teatro. Precisamos dar espaço aqui a quem merece o espaço: Otávio Cabral, que neste dia foi homenageado por seus 55 anos de carreira no teatro alagoano, dos tablados imaginamos que durante esse período ele sempre recebeu aplausos ao fim de cada espetáculo, mas seu trabalho na Universidade Federal de Alagoas tão importante quanto, é que nos causa ainda mais admiração, falo por todos do Filé de Críticas quando digo que ele nos apresentou os melhores clássicos, nos ajudou a construir um olhar crítico e todos nós sentimos um vazio imenso das suas aulas de literatura dramática, mas essa placa de “grande professor” felizmente ou infelizmente é imaterial, mas carregamos ela todos os dias que entramos em uma sala de aula. Por isso e por muito mais, agradecemos e nos alegramos de sua presença na cena teatral de Alagoas. 

Esperando Godot da Cooperativa Alagoense de Teatro contém doses protuberantes de ironia, o cenário aproxima-se das tradicionais montagens de Beckett, uma árvore muito poética em ruínas e dois bancos de madeira ao centro da cena. O figurino também é invernal e na face a maquiagem envelhece a todos. Uma luz que em alguns momentos chega a ser etérea na sua simplicidade. Certamente não se pode começar a falar dessa montagem sem falar que a dramaturgia de Samuel Beckett pertence ao Teatro do Absurdo, e a livre adaptação da cooperativa mantém sua característica ilógica e atemporal com muita fineza.


O Teatro do Absurdo propôs um teatro despido de finalidade, ele não conta uma fábula com um enredo bem definido em seu início, meio e fim e também não tem personagens bem definidos que se apresentam claramente e nos dão indicativos de suas personalidades para assim traçarmos uma identidade. Tudo é posto em dúvida. Martin Esslin, disserta sobre as características do Teatro do Absurdo em seu livro The Theatre of Absurd, quando diz:

Inevitavelmente, peças escritas dentro dessa nova concepção, se julgadas pelos critérios de outra estrutura, forçosamente serão consideradas como falsas e vazias de sentido. Se uma boa peça tem enredo bem construído, estas com efeito não possuem boa história. Se o critério de uma boa peça é a sutileza dos personagens e das motivações, estas estão fora de classificação, pois em geral apresentam ao público figuras humanas mecanizadas (...) Se uma boa peça tem que ter um tema completo, satisfatoriamente explanado que é claramente exposto e resolvido, estas peças serão condenáveis, pois não possuem um princípio nem um fim demarcado.


Dois personagens estão sempre em cena, Vladimir e Estragon, ou somente Didi e Gogo, contracenando com a espera. Aguardando Godot eles tem diálogos maçantes e necessários, de uma veracidade quase impiedosa, de uma banalidade quase infantil, de uma irracionalidade quase racional. A expectativa do surgimento de Godot faz com que eles estejam sempre vigilantes, e a chegada de Pozzo e Lucky engrossam mais um denso acúmulo de diálogos que são coerentemente dolorosos, fundamentais e quotidianos:

Estragon -Nós perdemos o nosso direito.
Vladimir - Não. Nós renunciamos à ele.
Estragon - Nas urnas...


As palavras com certeza eram justas e estavam no lugar preciso, camadas e camadas e enxurradas de fatos de Lucky, faziam até o espectador mais frio se remexer na cadeira ou rir denervoso. E havia também um grilo cantando insistentemente, que em algumas lendas é sinal de boa sorte e prosperidade, mas em outras de um sinal de praga, castigo. Até mesmo o animal ali de forma aleatória, nos põe em dúvida. Por isso tão facilmente a humanidade pode ser enganada por quem afirma e reafirma com veemência qualquer discurso. Afinal a certeza sempre foi superestimada, tire a morte como prova. 

Sobre a encenação o uso do espaço aglomerado causou certo desconforto, em algumas cenas alguns personagens ficam anulados. E a escolha do objeto esférico e reluzente que aqui chamaremos de lua, fica inquietante a seguinte questão: por que pôr um fim tão claro a uma busca incessante por um diálogo labiríntico? 


Um texto estreado em 1953, livremente adaptado em Maceió no século XXI, com ares de esquerdista? Panfletário? Pozzo ou Bozzo? Bozzo? Mito? Deixem de mi mi mi, o Teatro do absurdo está apresentando os fatos, como já disse Pozzo: não se deve ser gentil com essa gente, eles não aguentam. A Cooperativa Alagoense de Teatro trouxe situações, cabe a nós digeri-las enquanto esperamos, Godot, Deus, o grilo, o mito, o dinheiro, o colapso da natureza, a lua, marte, o apocalipse ou algo assim.


Referências:
BECKETT, Samuel. Esperando Godot;
ESSLIN, Martin. The Theatre Of Absurd;


Ficha técnica:
Texto: Livre adaptação da obra de Samuel Beckett
Dramaturgia: Cooperativa Alagoense de Teatro
Direção: David Farias
Elenco: Abides Oliveira, Lara Couto, Silvinho Leal e Otávio Cabral
Desenho de luz: Henrique Oliveira
Direção de arte: Alex Cerqueira
Preparação Vocal: Geová Amorim
Preparação Vocal para canto: Myrna Araújo
Preparação Corporal: Reginaldo Oliveira
Arranjos sonoros: Miran Abs


Fotos: João Erisson

“Estendam ás mãos já! - Narrativas Individuais para Construções Coletivas”

    Tessitura_ Lili Lucca            Ainda andamos de mãos dadas Cacau, aqueles que na cena construíram espaços de criação de arte ao seu la...