Tudo que brilha pode acender espaços de escuridão


                                                                                                                   Tessitura_Lili Lucca

No dia 20 de julho, fui ter uma nova experiência em Garanhuns, município brasileiro do agreste do estado de Pernambuco, distante 230 quilômetros da capital pernambucana, Recife. Lá pela catarse do teatro, revistei algumas memórias que aos poucos foram se catalogando em minhas emoções. Ao escrever, elas voltaram ainda mais forte, eu até tentei nomear os momentos que a escuridão não deixará o brilho surgir.

Quando eu era criança em Sarandi, sempre via as luzes dos vagalumes e os sons em meio a pequenas árvores que tinham na minha casa, era corriqueiro. Confesso que aquela luz sempre tão presente já era comum em meu cotidiano, antes da luz vinha o som dos vagalumes. Assim era quando de tempo em tempo meu primo chegava, de longe a gente já gritava e acredito que uma luz se acendia dentro de nós. Logo que a gente gritava, vinham vozes silenciando-o. E a gente corria para o quarto para ouvir música, cantar, dançar e brincar, sermos livres. Na nossa infância e pré-adolescência sempre nos acolhemos, mas nunca falamos sobre quem queríamos ou podíamos ser. Muitos armários ainda estão fechados dentro da minha família, muitas vidas ainda estão escondidas lá dentro. Isso não é sobre mim. Eu uma mulher cis e hétero, já vivi e vivo cotidianamente muitas opressões de gênero, todo dia eu tento não me calar. Mas eu consigo ser quem eu sempre quis ser, na maioria das vezes. 

“Escrevemos essa história com muitas mãos. Mãos que reorganizam a narrativa e devolvem a liberdade e o direito aos delírios dessa nossa eterna criança-viada.” Bruno Alves

O que você queria muito ser ainda criança?


Contar uma história no teatro pode despertar e transformar toda uma realidade. A experiência de arte, permite a gente ver outros formatos do mundo e perceber coisas nossas, antes inacessíveis, para nós mesmos. Se modificamos o mundo, a cada passo, a cada nova invenção, então a arte e tudo que é feito dela, e a partir dela pode invocar novas experiências de vida.

Quantas vezes você foi impedido de ser quem você quer ser?

A cor da madeira sobre o palco, a organização das gavetas pelo espaço e o tempo de brilhar de Joesile Cordeiro. Um homem negro, de pele clara, protagonista de sua vida, autoridade da arte e da cultura em Garanhuns, que desde de pequeno já sabia o que queria ser, ser artista e brilhar, um menino que se escondeu dentro do armário, foi jogado nas gavetas e pendurado por adjetivos em cabides do seu armário. Sorte que no armário daqueles que são livres tem algo que brilha, tem luz e emana, assim ele conseguiu se ver lá refletir e ir como os vagalumes em momentos certos construindo sua história e como a sua luz natural ascendeu perante nossos olhos. Em um armário, montado e desmontado por suas gavetas, cheia de luzes que carregam, fotos, cartas, redações, sonhos, angústias, agressões, desejos, o espetáculo Tempo de Vagalume, vai com suas luzes, iluminando aqueles que por algum momento se abrigaram nas gavetas. É pela arte que a libertação trará a sucessiva efetivação de vida.

Tempo de Vagalume é um documento de cena para arte e a sociedade de Garanhuns, cada palavra tecida pela dramaturgia em processo de colaboração por Bruno Alves, é um anúncio e combate na voz de Joesile.


Que espaço é esse onde a arte em pleno século XXI precisa da permissão da igreja para acontecer?  Quais são os corpos que são permitidos se expressar no agreste Pernambucano?

A dramaturgia que negamos ouvir durante a vida, é a voz, o olhar daquela criança que se abrigou nos esconderijos do armário, que reflete sua opressão e experiência de sufocamento romantizada/normalizada por uma sociedade que para amar precisa de padrões e encaixes “corretos”. Padrões esses que eles criaram para dominar e que justificam por ordem religiosa, ou status quo daqueles que tem poder capital em seus territórios. Sendo que aquele que é inspiração para toda essa exclusão patriarcal e homofóbica disse:

“Amai-vos, uns aos outros como eu vos amei.” Jesus de Nazaré

A cada palavra colocada em cena, a cada passo da caminhada dessa bixa preta pelo agreste pernambucano, vão se abrindo gavetas, nessas gavetas encontramos muita dor e violência suportada por esse corpo. Mas é preciso mais uma vez anunciar, não atrapalhem, esse corpo que caminha e que irá aos poucos abrindo as gavetas, limpando suas feridas e colocando para fora seu brilho, sua potência e seu trabalho. Um artista que rompe os espaços geográficos e que continua a caminhar desbravando ambientes e se colocando no mundo no seu tempo.

Um tempo de vagalume. Os vaga-lumes, ou pirilampos, são insetos e são conhecidos pela sua capacidade de produzir e emitir luz, chamada de bioluminescência. Bioluminescência é a produção de luz fria e visível por organismos vivos através de uma reação química. Um artista, sabe do seu compromisso com a arte, e é preciso olhar para as escuridões de seu tempo, e emitir luz viva, tempo esse de agora onde as luzes tão artificiais tomam nossa vida de segundos em segundos, em frente às telas. O caminho escolhido para que a luz invada esses organismos é o teatro, o encontro e ao tecer um espetáculo por suas dores, ele também se articula ao amor que teve no seu lar. O amor de mulheres que sempre enxergavam seu brilho.

Tempo de vagalume, sai ao encontro de crianças, a busca é pelo encantamento e pelo cintilar de viver que muitas vezes abandonamos no percurso da infância à vida adulta, afinal precisamos nos encaixar nesses padrões, para não sermos colocados dentro do armário. É preciso refazer a rota, escavar as memórias, reorganizar o trajeto e continuar a batalha para ser você, e que isso o faça brilhar. Joesile espalha:

“Eu quero uma coisa que brilhe.”

 Qual o preço da sua liberdade?

Quem tem o poder de apagar o seu brilho?

 Uma criança, deve ser vista, amada, cuidada e respeitada.

Uma criança LGBTQIAPN+ também deve ser vista, amada, cuidada e respeitada, é preciso iluminar a cabeça das pessoas para que o amor volte a acontecer em suas vidas. Cuidem-se. Cuidem das suas crianças, já dizia a música de Caetano Veloso:

“Gente é pra brilhar.”


O teatro é um documento vivo da arte que acontece à nossa frente, ali nas plateias vidas respiram, batalhas são travadas e existências mantidas. A liberdade de ser e da arte é um caminho que ainda está em construção em muitos lugares do nosso país. Para que ocorram transformações é preciso resistir e construir pontes, acender as luzes do que não faz parte da sua existência, experienciar a vida. 

Que Tempo de Vagalume continue a circular e iluminar espaços, e quem sabe com o brilho dessa cena algumas pessoas consigam enxergar para além de suas próprias vivências?

Talvez e outros vagalumes voltem a acender.




“Estendam ás mãos já! - Narrativas Individuais para Construções Coletivas”

    Tessitura_ Lili Lucca 
       Ainda andamos de mãos dadas Cacau, aqueles que na cena construíram espaços de criação de arte ao seu lado, sempre estarão alinhados aos nossos sonhos e lutas. Cheia de memória e saudosismos luto nesse tecer para levantar diariamente o trabalho de artistas alagoanos. Peço licença a vocês, uma saudade ainda latente instaurou nas minhas palavras no Penedo. 

Precisamos de Sonhos!

    Ao pisar no palco, seja ele em formato italiano, seja um tablado demarcando um espaço ou aquele auditório da nossa escola, onde uma história pode se tornar realidade. Ao me sentar nessa cadeira, para tecer essa experiência e escolher a que caminhos as palavras me levariam. Reli anotações, lembrei dos espaços que arruei por Penedo com meu companheiro(a)s. Coloquei assim: 
  
“Como nasce um artista em Penedo?”
    
    Mas será que eu queria mesmo falar sobre nascimentos, e então me veio a sensação da primeira vez que pisei no palco de um teatro, era de uma escola de freiras da cidade onde nasci. Eu tenho em minha cabeça decorado todos os cantos daquele “teatro” sei ainda todas as entradas e saídas, lembro dos instantes na coxia, espiando, lembro da sensação de subir as escadas para entrar em cena. E na sequência dessa memória, veio o dia da minha matrícula na Ufal, ao qual fizemos na sala da orquestra manualmente com Prof. Ronaldo, e do meu primeiro solo curto na sala preta. Todas essas pisadas e sensações estão vivíssimas em algum lugar da memória.
“Como foi a primeira vez que você pisou no palco?” 
    
    Volto aqui hoje para registrar a minha experiência e escuta com os artistas de teatro no Penedo. Em nossas prévias conversas a memória foi um fator importante de resgate histórico, esses artistas são sujeitos a que me orgulho imensamente de conhecer, de escutar e de erguer a eles monumentos, para que se lembrem diariamente da sua generosidade e majestade ao pisarem no palco e fazerem sua arte. Arte esta que resiste há muito tempo, antes eram feitas em estaleiros, onde se registram as primeiras apresentações teatrais do Penedo. 
    “Quem conta é Carlos Santa Rita. A arte de João Caetano não seria propriamente uma novidade por essas bandas das Alagoas, visto que 1876 já se apresentava no trapiche da extinta Companhia Pernambucana, na rua da Praia. Apesar dos inconvenientes que se pode imaginar, aquele armazém teria sido o mais antigo teatro público de Penedo. Tosco e improvisado, mas amplo e abrigado. Pelo menos, com a originalidade das construções lacustres. Palafita-teatro, sem similar.” SALLES(2013/pg.63)
   
     Para quem não sabe, as palafitas são sistemas de construção usados em edificações em regiões alagadiças cuja função é evitar que elas sejam arrastadas pela correnteza. Entre minhas memórias, e relatos históricos, quantos são os artistas de teatro de Alagoas, que já foram arrastados pela correnteza do esquecimento/apagamento. Impossível mensurar. Andar por Penedo, é encontrar casarões cheios de histórias, e se deparar com pessoas incríveis que a todo momento te contam um pouco dessas histórias e dão a sua versão da história, e eles contam cheios de orgulho e lamúria.
    É empolgante e revoltante que uma cidade como essa não seja berço do turismo-histórico nacional, que os espaços mal tenham manutenção, que os trabalhadores que ali mantêm o que resta dessa história em pé não tenham alguns nem seus mínimos direitos trabalhistas. Precisamos do sonho. 

  Seria possível estendermos as mãos uns aos outros em nossos coletivos teatrais? 

    Parece urgente para essa classe entendermos essa dinâmica do alagadiço nos afasta, nos arrasta correnteza abaixo. A cada vez que a maré enche, parece que somos afastados nos perdemos de vista, alguns voltam assim que a maré baixa. Outros precisam se re-construir em suas ilhas e lá permanecem. Será que é possível hoje com a tecnologia e a modernidade construir Palafitas-teatro em Alagoas?
    
    E nesse teatro sobre as águas, a gente não perca o olhar um dos outros, outras e outres e consiga em uma utopia diária, resgatar nossas histórias e viver um ritual de Dionísio ás Bacantes de Zé Celso. Um ritual de Corpos Atravessados de Jorge Schutze à Terra Terta da Cia. Penedense. Precisamos do sonho.
     Nesse percurso cênico alagadiço, encontramos alguns artistas do Penedo. A maré estava baixa. Miralindes Pereira, uma dama/trabalhadora da cidade do Penedo e do teatro que lá fomenta e faz, conta que em 1990, quando ainda era uma menina foi fazer uma oficina de teatro na escola. E da oficina, fundou com os demais companheiros a Cia. Penedense de Teatro. São 33 anos dedicados ao teatro, hoje em pausa. 
“Alguns precisavam sair para cuidar da sua vida.”Miranildes Pereira. 
    
     No início de sua trajetória, que começou com oficina de teatro na escola, ela aprendeu que para ser artista de teatro, é preciso ocupar todas as frentes(atua, dirige, faz figurinos e cenários), conta que aprendeu um pouco de cada função dessa arte coletiva, a partir dessa oficina com outros companheiros de cena eles fundam a Cia. Penedense de Teatro. Conta também que por muitas vezes quiseram atuar e não tinham palco. O teatro 7 de setembro não era um espaço que eles artistas de teatro podiam ocupar com facilidade nessa época.
  “Queremos atuar, mas não temos palco. Na época o teatro era uma casa de show.” Miranildes Pereria 
    Eles não pararam e ocuparam as ruas, penso que as Palafitas-teatro nesse período também já tinham sido varridas pela correnteza, se não da água, do que na época deveriam se chamar de progresso. Nessa narrativa Miranildes, fala dos festivais estudantis, da busca por parcerias com artistas de Sergipe e da capital alagoana. Narra também a busca de novos integrantes e da realização de novas oficinas em parceria com a prefeitura, o surgimento de novos grupos e artistas. As temporadas dos espetáculos, a circulação desses pelo estado e pelo país. 
“Eu ainda vou voltar não sei quando...”Miranildes Pereira

    O caminho do artista, na sua formação, no seu trabalho é árduo, cansativo, não tem como medir por palavras ou descrever esses percursos únicos. Todos creio eu na minha crença de artista, que todos, todas e todes carregam no peito a utopia de pela arte inventar novos mundos. Novas narrativas com a de Miranildes, que começam a ser escritas em oficinas pelas escolas de Penedo. Fernando Arthur, Ladilson Andrade, Kall Liws, Anderson França, Jéssica Oliveira, Priscilla Calumbi, Emmanuel Silva, Juliana Felix, Ravy Thiago e Alle o Santo são hoje alguns nomes do teatro vivo no Penedo.
    Precisamos dos sonhos. A construção narrativa dessa tessitura parte também de uma educadora, que junto a mais dois educadores enchem o coração de entusiasmo mesmo cansados de sala de aula, pois nesse encontro de memórias e conversa descobrem que o teatro feito na escola é um nascedouro de liberdade criativa. Como se por algumas horas de conversa nosso trabalho intenso em sala de aula fosse esperançado por todos esses artistas do Penedo. Bell Hooks, em seu livro fala do aprendizado como prática libertadora. 

  Como escolher caminhos ou descobrir se na escola nossa criatividade/liberdade não é praticada? “O compromisso com a pedagogia engajada leva em seu bojo a disposição a ser responsável, não a fingir que os professores não tem poder para mudar a direção da vida de seus alunos.”hooks(2017/pg.272) 

    Cada artista hoje do Penedo, sabe a importância do teatro em sua vida, e de como a escola com práticas pedagógicas pode mudar a sua perspectiva de futuro. Eles seguem no caminho do teatro, buscando estratégias de sobrevivências para pagar as contas do mês, como todos nós em terras alagadiças. Mas em cada um deles, nas suas falas esta disposição de mudar a direção do olhar de outros pela arte. Precisamos de sonhos.

    
    Fernando, seguiu para o caminho do direito, porém continua produzindo arte e ocupando espaços de produção de arte e festivas que ocupam a cidade do Penedo. Conta que foi preciso e é sempre preciso abrir espaço, ocupar espaço para grupos, lembra que na sua época atuante na cena conseguiram uma sala para guardar as nossas coisas, mas não era fácil conseguir o espaço para ensaiar. Relembra com entusiasmo que no período de 2013/2016 foi um período em que muitos grupos de teatro movimentaram a cena Penedense. Eram mais de 6 grupos: Maria Dengosa, Flor do Sertão, O Núcleo, Cia Penedense,Os Nordestinos, Artes Ribeirinas. Grupos em movimento que participavam das ações na cidade e na cultura local. 
   
     Ladilson, fez também uma oficina de teatro, montando um grupo Cia. Passo a Passo, e comanda o festival estudantil por 4 anos, escreve e atua no espetáculo Borda Bordado e bordão. Ele traz a urgência do reconhecimento da classe e do público com os grupos e artistas de teatro no Penedo. E por essa urgência de direito, é que são enfáticas as falas desses artistas. Precisamos do sonho, mas precisamos comer, vestir se, pagar as contas.

  “Não consigo sobreviver do teatro, faço parte da Cia Flor do Sertão desde 2009, antes de chamava cena em ATO.” Anderson França 

“Tentar conciliar teatro e trabalho, o tempo é algo muito difícil para produzir. Tenho dificuldade em produzir pela questão do tempo.” Jéssica Oliveira 

“É preciso ter informação para viver da arte, a arte não enche barriga.”Ravy Thiago. 

    Quando vamos até Penedo, encontramos a realidade da maioria dos artistas de teatro desse país, não é possível viver de arte, ela a arte não enche a nossa barriga. Esse trabalho árduo a que nos dedicamos a nossa vida, estudamos, preparamos o corpo, pesquisamos e parece que não demanda tempo de vida. Até quando conseguimos viver de sonhos em mundo onde tudo é consumo e lucro.

  Você que consome tudo, qual o valor do trabalho de um artista? 

    O que produzimos não é conteúdo, é arte. Ela transforma a vida, muda o caminho e uma construção coletiva, que pode dar novas perspectivas de ser. Por isso a utopia, ela nos mantém na arte. Construções coletivas que vieram também de Anderson, hoje membro da Cia. Flor do Sertão, atua, dirige e já ministrou oficinas onde se encontrou com Alle. Oficinas que chegaram até Ravy e Juliana, que tiveram por esses caminhos sua estreia nos palcos. Alle, que é artista independente e atua em várias linguagens de arte, narra que viu no teatro a possibilidade de reaver o seu corpo. 
 
  “A escrita me dá a vida, a música me dá a voz, e o teatro recupera meu corpo que eu tinha perdido.” Alle o Santo.

    Artistas de múltiplas faces do Penedo, buscando também dar acesso ao teatro a outras pessoas, afirmando-se nessa ação como um agente transformador pela arte. Como fez Kall Liws, e como faz a atriz Priscilla, que acredita na força de cada artista penedense, que se põem disposta a plantar novas cenas e a construir novas possibilidades para o teatro em sua cidade. Ela também atua como produtora, e está na feitura de mais um Intercâmbio Teatral Estudantil, que acontece do dia 06 á 10 de novembro no Teatro 7 de setembro de 2023. Ela nesse fazer artístico irá guiar novos passos a pisar no palco e dar continuidade a essas construções coletivas de arte. Precisamos do sonho.
    Necessitamos estender as mãos e nessa ação cênica, compor a dramaturgia dos vestígios da nossa história, e se for imprescindível para que o subir da maré não torne a nos alagar enquanto sujeitos de cena, construir nossas palafitas-teatro usando toda nossa tecnologia e artifícios. Que elas sejam feitas pelas nossas narrativas individuais dentro dos casarões de teatro do tempo colonial, afinal o território em que nascemos é esse, ele nos pertence somos maiores que as edificações, a história que se escreve ali naqueles espaços somos nós os criadores. Artistas de teatro.

“Artistas de teatro que estão a tecer essa cena, que fizeram sua história. No meio desse caminhar um grito parece abrir o céu para a subida de mais uma estrela. Mais uma estrela do teatro alagoano, a professora e atriz Cláudia Paes, uma artista cheia de luz, energia e alegria. Cacau, por onde passou deixou sua voz e presença viva naqueles que a encontraram. Aqueles que te encontram na cena nunca irão esquecer o seu brilho. Que sua luz, nos ilumine aí de cima, como no teatro sua história está viva em nossa memória.” 

Agradecer a Painho, conhecido como Emmanuel Silva, um artista de teatro que estendeu a mão a esse coletivo e seguiu ao nosso lado com sua generosidade contando a história dos artistas do Penedo. Ter um trabalhador e história viva do teatro penedense ao nosso lado, nos guiando foi um imprescindível. 

Referências: 

SALES, Francisco Alberto. Arruando para o Forte: roteiro sentimental para a cidade de Penedo. -2.ed. - Penedo: Fundação Casa de Penedo, 2013.

Hooks,Bell. Ensinando Transgredir: a educação como prática de liberdade. -2ed.-São Paulo: Editora WMF Martins Fontes 2017.

Caminhando pelo espaço ou Arruando por Penedo

 Tessitura por Bruno Alves


        Quem já fez uma aula ou oficina de teatro sabe que em algum momento vai ouvir o comando: “Caminhando pelo espaço…”. 

        Aprender a caminhar no exercício cênico é um desafio que vai se aperfeiçoando a cada nova tentativa e com a continuidade da prática, mas pausar a prática não quer dizer que o caminho acabou, afinal:

“O Caminho de dentro

É um grande espaço-tempo”

Hilda Hilst

Em Penedo - Alagoas basta caminhar para se encontrar com o imprevisível, mas talvez caminhar não seja a palavra que comporta a dimensão da importância de viver a experiência das ruas, pois arruar seria o termo mais adequado, conforme nos fala SALES (2013, p.69) ao dizer que:

Como bem definem os dicionários, “arruar” designa o ato de vaguear pelas ruas como vadio. Ou, como ensina o escritor Mário Sette, “arruar é apreender o sentido dos vários trechos da cidade, penetrando-lhes a origem e saboreando o acerto de batismo dos bairros, das freguesias , dos logradouros”.

 

        Arruar pelo espaço é buscar compreender as histórias por trás das paredes pintadas ou mofadas. É penetrar mais fundo no movimento das pessoas, dos veículos, do tempo das águas do Rio. É preciso percorrer mais de uma vez os mesmos lugares e perceber o que foi perdido de vista, o que passou despercebido na primeira arruada. É antes de tudo dialogar com o sol, a chuva, o vento e o cansaço das pernas.

        Arruado pelo espaço, cruzando os caminhos, avenidas, becos, ruas e vielas, nos encontramos com o outro que atravessa, somos guiados pela outra que acabou de nos conhecer. Andreza foi uma dessas pessoas que nos olham nos olhos e parecem que já nos conhecem. Ela nos deu a mão e caminhou fazendo um reconhecimento do espaço logo no primeiro dia que chegamos a cidade em junho do ano em vigência. Fez questão de nos contar sobre os lugares, pessoas, gastronomia e a arte e seus artistas. Sim, Andreza nos falou dos artistas que procurávamos e nos falou de outros que nem sabíamos. Em um determinado momento da caminhada olhando a grande avenida em nossa frente, ela sentenciou:

“Até aqui seguimos juntos a mesma via. A partir daqui dois caminhos se abrem, o dos que vão e o dos que voltam”.

Andreza (ao centro) guia Lili (a esquerda) e Jocianny (a direita).

        Partindo do princípio que para voltar é preciso primeiro ir, nós seguimos reconhecendo a cidade e tentando compreender em tão curto espaço de tempo como é ser artista do teatro naquele lugar. E embora possa parecer estranho esse meu questionamento, quero dizer que venho de uma cidade do interior, no meu caso Viçosa, e sei como por lá as coisas funcionavam ou desandavam.  Ser artista de teatro em um interior como o que eu vim, é muitas vezes percorrer caminhos apertados e estreitos e antes que esse texto vire um muro de lamentações, prefiro acreditar nos versos da canção da minha conterrânea May Honorato que ao cantar diz:

... acontece

Que a gente, pele a pele, é como prece

Que a gente, mesmo em solo seco, cresce

E quanto mais se mostra mais parece

        Assim como na Viçosa, a cidade de Penedo é atravessada por um Rio, o Paraíba na primeira e o São Francisco na segunda. São solos molhados, férteis, alagadiços e que transbordam. A água arrasta tudo, a água transforma, renova, dá vida e mata. E se Brecht diz que: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.  Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” não podemos negar o quanto ainda é violenta a falta de abertura, investimento e diálogo com os artistas que vivem em outros eixos para além da capital alagoana e que até na capital não é essas maravilhas todas, a exemplo do tratamento recebido pelos artistas locais nos festejos juninos realizados pela prefeitura de Maceió na última edição. 

        Parece que ser artista é estar sempre tentando caminhar e sobreviver entre gestões públicas na incerteza do que poderá acontecer quando entram ou saem novos agentes públicos que comandarão as pastas da cultura e que muitas vezes não possuem nenhuma relação com a pasta e estão ali por acordos políticos.

        Espaços para se fazer arte em Penedo não faltam. É lá que está o Teatro Sete de Setembro, o mais antigo de Alagoas e concebido pelo mesmo arquiteto do Teatro Deodoro. É nítida a influência do edifício na formação dos artistas locais, mas dependendo da gestão corre o risco de se tornar um lugar de eventos aleatórios e um lugar de difícil acesso aos seus fazedores de teatro local.

        Fora do edifício teatral, arruando pelo espaço, a vida artística também acontece e talvez pulse num lugar de força e resistência. É pensar e reconhecer que fora dos espaços oficiais existem blocos de carnaval de rua, como o Bloco da Raquel que desse ladeiras e atravessa outros caminhos, organizado por Ednilson, conhecido como Chinho Pato, um grande anfitrião e memória viva do seu lugar.

        Caminhos outros que vamos descobrindo com os santeiros e seus ateliês, mercados com artesãos, ou mesmo espaços como um porão de uma rádio onde outro artista vive e cria dividindo o lugar com o mofo e infiltrações. Penedo possui muitos espaços, prédios históricos, biblioteca, lugares com fachadas históricas e coloridas, onde poderiam fervilhar emoções, criação artística e outros caminhos. 

        Caminhos… Arruamos muito por Penedo até chegar ao edifício teatral. Foi o último lugar que chegamos durante essa jornada de descobertas. Propositalmente queríamos respirar a cidade e sentir a vida que pulsa nela, para além da efervescência dos influencers digitais pela qual a cidade se tornou conhecida em todo o Brasil. O espaço do teatro geralmente é ocupado por muitas ações das secretarias diversas da prefeitura. É um espaço aberto ao público com profissionais receptivos e acolhedores. Fomos recepcionados por pessoas comprometidas com aquele lugar. Emmanuel Painho, ator e produtor da cidade, mediou esses encontros. Quando pensamos em uma cidade que tem edifício teatral, pelo menos em minha cabeça vem a impressão de ser uma segunda casa dos artistas de teatro, mas caindo na realidade, sabemos que em nenhum lugar é assim. Depende das gestões, das políticas públicas e dos investimentos e interesses dos gestores de cada lugar.

        Queríamos encontrar os fazedores de teatro da cidade. Penedo possui uma forte tradição teatral. É referência de teatro de grupo e de trabalho em coletividade no nordeste. Na adolescência, quando comecei a fazer teatro em Viçosa, foram eles a minha primeira grande referência fora do meu interior e tive a oportunidade de dialogar com a Cia Penedense de Teatro através de trocas com o Grupo Teatral Riacho do Meio do professor Ronaldo Aureliano.

Encontro com fazedores de teatro de Penedo.

        Mas como sem escolas oficiais de teatro Penedo construiu e constrói uma história bonita com o teatro? A resposta está no fazer, no arruar pelo espaço, no descobrir, no experimentar, no estar aberto ao encontro e as trocas. A/o artista de teatro penedense se forma assistindo o outro, tem como referência e inspiração as pessoas que cresceram assistindo na cidade e que dividem esse mesmo território com eles/elas. É caminhando que chegam em outros lugares e que movimentam o espaço em que vivem.

        A Cia Penedense de Teatro, que pausou temporariamente seus trabalhos devido aos rumos e caminhos da vida de cada artista, ainda é viva na memória de cada cidadão. Andreza logo nos falou da Cia ao pensar em teatro. Foi a Cia quem organizou o Festival de Férias no Teatro que em seguida se tornou o Festival de Teatro de Penedo, um marco e referência na história das nossas artes cênicas. Ela parece nunca ter saído de cena e nas duas vias de caminho que se mostram parecem sempre que estão indo, seguindo, caminhando e preparando o corpo para pegar a via de volta.

        Assim como a Cia, foi preciso que a gente continuasse a caminhar pelo espaço e nesse caminho nos deparamos com paisagens, pessoas, gerações diferentes do teatro que se encontram, a exemplo da Cia Flor do Sertão ou mesmo Priscila Calumbi, frutos de encontros em festivais estudantis e hoje uma das organizadoras do Intercâmbio Teatral Estudantil que está chegando a sua sétima edição e reunindo uma nova geração de artistas do teatro de todas as escolas da cidade. O fazer teatro em Penedo nunca parou e está sempre formando as novas gerações de artistas e plateias.

        Arruando pelo espaço vamos encontrar “Allê, o Santo” e conhecer sua poética que atravessa a música, o teatro e a espetacularidade da quadrilha junina “Chapéu de Palha”... Allê sabe que para seguir caminhando e levando a arte que acredita se tem muitas vezes um caminho desgastante e desestimulador pela frente, mas continuar caminhando é a sua opção, é o chamado e vocação.

Gravação do Podcast no Theatro 7 de Setembro.

        Talvez tenhamos em comum os percalços do caminho e a vontade de continuar caminhando.

        Pelas ruas e avenidas existem os que vão e os que voltam, nos alertou Andreza. O artista de teatro penedense nunca parou, está sempre indo, reinventando as possibilidades de caminhos, construindo novas formas de ser teatro por onde quer que seus pés possam pisar, seja numa escola, num escritório de advocacia, numa usina, dentre tantos outros lugares que a vida vai nos levando a ocupar. 

        Por hora sigo arruando por Penedo na minha memória e pensando na resistência e poesia de Allê, O Santo, Jéssica Oliveira, Anderson França, Emmanuel Silva,  Fernando Arthur, Miranildes, Priscila, Juliana Félix, Ravy Thiago e tantos artistas do teatro de Penedo. Esses encontros nos abrem e fortalecem os caminhos e fazem a gente se apaixonar e acreditar na caminhada.


Referências:

HILST, Hilda. Exercícios. São Paulo: Globo, 2002. p.75.

HONORATO, May.  Música “Acontece”. Maceió: 2022. Plataforma Digital Deezer. Duração: 2m50s

SALES, Francisco Alberto. Arruando para o Forte: roteiro sentimental para a cidade de Penedo. -2.ed. - Penedo: Fundação Casa de Penedo, 2013.

Um tango na rua do banheiro

 Tessitura_Jocianny Caetano


Esta tessitura é dedicada a
Jeane Tenório, ela pretende ser uma dança em sua homenagem.


O texto faz parte de um registro de memória sobre uma imersão de breves dias na cidade de Penedo. O projeto “Território das Artes Cênicas de Alagoas – Etapa Penedo” , financiado pela Secretaria de Cultura de Alagoas, através do edital Prêmio para as Artes Cênicas 2022, pretendia ser um registro da cena deste lugar no presente, a partir de diálogos com artistas, moradores e espaços. E começo pela Rua do Banheiro, onde um cenário primitivo dialoga com uma pichação deste século de autoria desconhecida, com os seguintes dizeres:

“3 coisas que odeio:
Vandalismo,
Ironia,
Lista.”

As histórias de origem da rua são entrelaçadas a invasões portuguesas e holandesas no território brasileiro, e de uma certa figura que se repete bem presente nos livros de história, pontes e ruas. Aqui não farei menção a um tal senhor, que tinha uma péssima relação com seu filho, e que tanto contribuiu para dizimar grande parte da cultura e memória do nosso lugar. O esquecimento para os nascidos com o sol em Leão, é o pior dos castigos. No entanto, menciono os nativos que faziam suas próprias embarcações, venciam o rio e ancoravam naquele desembarcadouro que naturalmente oferecia escadas da pedra penedia, que dá origem ao nome da cidade de Penedo, para os acessos à cidade. (SALES, 2003).

A rua se chama assim porque homens e mulheres de forma organizada revezavam-se para tomar banho no rio. Se for pensar na rua do banheiro como um corpo, a imagem é de um corpo debilitado, que ama a arte e sua história mas que para permanecer nela carece ser guiado com cuidado, talvez nenhuma força humana seja capaz de tanta sensibilidade e seja necessário algum objeto inanimado, que o guie de forma pseudo efetiva para que ele continue dançando até o fim, mas ainda assim a humanidade é quem tem que apresentar o objeto a este corpo.

A rua do Banheiro seria agora uma espécie diferente de um corpo, do que todos estão condicionados a ver, presa dentro de um quarto, escondida. Aquela figura que certamente não é chamada para mostrar quando chega uma nova visita na casa. Ela se metamorfoseou à la Kafka (2019), e a memória curta da cidade incapaz de promover imagens além do que pode ser visto, provoca sentenças como a da moradora Andreza, que se apressa em falar sobre a rua: “Aqui não dá em lugar nenhum”.

Andreza nos guiou em um breve passeio, sem pretensões e com o reconhecível calor amigável que os penedenses demonstram ao receber visitas, apesar de ser forasteira fala da cidade com brilho no olho, ama a arte e por isso nos ofereceu um afeto que será eternamente lembrado. Pessoalmente caminhei pela rua com ela, e mais dois moradores ilustres da cidade, José Luiz Passos e Ednilson Alves, e com os dois últimos dividi as esperanças de ter aquele espaço retomado, assim como Sales:

Enfim, o viajante está na rua do Banheiro, onde se fica diante do nascimento do Penedo. A visão de hoje não é das mais agradáveis. Ainda não se despertou para o potencial histórico e turístico que tem a modesta rua e por isso o abandono e o matagal são os senhores desse pedaço de chão. Estamos nos fundos do Clube de Caça e Pesca do Penedo, prédio que já serviu de Consulado Provincial, onde nos tempos de antes das barragens era possível pescar farturas em apenas uma manhã de serviço. Hoje o peixe já não consegue vencer o lado que o rio já não tem forças para carregar e o ecossistema perde inúmeros elos de sua corrente. Mas ainda é possível recuperar a memória do lugar. (SALES, 2003, p. 79)


A frase de Andreza repetidamente fez parte dos meus pensamentos durante os dias que se seguiram, refletia muito sobre o que havia pesquisado e a experiência de ver diante dos meus olhos a imagem daquela rua desaguando no rio, isso não parecia lugar nenhum, do contrário, parecia o mundo. O encontro com a escrita Kafkiana veio após o intercâmbio, e me proporcionou criar conexões entre a figura estranha e repulsiva descrita em seu livro e a rua do banheiro, tão produtiva outrora, esquecida contemporaneamente na sua inutilidade.


Da direta para esquerda, Ednilson Alves, José Luiz Passos e Jocianny observam à esquerda da foto a data "1761" da única fachada da rua do banheiro. Registro: Bruno Alves

Sinto que devo satisfações aos que me lêem e ao meu coletivo de críticas, quando pontuo com tantos caracteres uma rua, um caminho de passagem, quando há tanta coisa para tecer num espaço tão rico de cultura como é Penedo. Por que escrever sobre uma rua chamada banheiro? Parece ser a pergunta que vejo nos olhos dos moradores ilustres que encontrei pelo caminho e nos dois companheiros de aventuras. A resposta pode se encontrar no fato de que criei uma imagem ambiental para ela, antes mesmo de compartilhar do mesmo espaço já havia experienciado:

Cada indivíduo elabora em seu cérebro, na perspectiva de seu próprio corpo e conforme um olhar construído na relação em sociedade, uma imagem ambiental. Ela é a representação mental do espaço elaborada através de quaisquer tipos de experiência, mesmo indireta. (MARTINS, 2009, p. 25)

E talvez para que não restem dúvidas, continuo a me justificar, porque sou tomada por um sentimento de ansiedade que vem através de notícias sobre como nós somos capazes de nos autodestruir, diria até que somos muito bons em fazê-lo, e que estamos ebulindo deste mundo. Relógios do tempo ligados com data limite bem mais próxima do que aqueles que testemunharam pessoas indo à lua poderiam prever. Eu, como não gosto muito de colocar, em primeira pessoa acredito ser urgente construir memórias com os espaços, criar narrativas cênicas, fazer possivelmente nossa última dança. E dei este título por diversas simbologias, mas também por uma frase atribuída ao músico argentino, Enrique Santos Discépolo: “O tango é um pensamento triste que se pode dançar".

1761? 2023? 2030? A imagino indo embora guiada por um tango, firme, ereto e tão homem que é capaz de a sepultar. A não ser que dance, a não ser que exista uma conexão, a não ser que a torne cênica.



Nota de afeição: aos queridos artistas de Penedo, que tive a honra de conhecer e dialogar, peço que recebam esse texto com complacência, pois nossos encontros certamente me proporcionaram uma visão grandiosa das artes cênicas penedenses, seus relatos me ajudaram a entender como nos ligamos, acredito que os artistas em geral, nesta busca pelos espaços. O relato acima se propôs ser uma dança a par, mas de certa forma debate com nossas questões, às vezes o verbo correto não é encontrar, mas sim ocupar ou quem sabe retomar.


Referências:

KAFKA, Franz. A Metamorfose. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019. 1ª edição (10 maio 2019).

MARTINS, Marcos Bulhões. Encenação em jogo. São Paulo: Hucitec, 2009.

SALES, Francisco A.. Banheiro. In: SALES, Francisco A.. Arruando para o forte: roteiro sentimental de penedo. 2. ed. Recife: Bagaço, 2003. Cap. 7. p. 75-81.

CAETÉS_ A culpa é sua!

 

Tessitura_Lili Lucca


Para esse diálogo de tessitura trago ideias de perguntas para processos criativos: É possível transformar a história através da arte?  Porque recontar ou como contar uma história através do tempo? A minha narrativa de cena percorre quais caminhos discursivos? O que estou pronunciando na minha criação de cena?

Interior, relativo a parte de dentro, interno. Interno, que fica do lado de dentro.  Assisti em meados de setembro o espetáculo Caetés, com artistas que estão escrevendo a cena do interior do nosso estado, na busca de uma estética realista, o discurso da cena é literal e representativo, assim a Humana Cena conta sua versão no espetáculo Caetés.

A cidade de Palmeira dos Índios tem aproximadamente 73 mil habitantes, segundo o IBGE. Quantos desses habitantes foram ao teatro em 2022? Quantos de nós, mais de 3 milhões de moradores de Alagoas, assistimos a espetáculos de teatro esse ano? Eu conto em minhas caminhadas esse ano, mais de 10 espetáculos vistos, são poucos para quem trabalha na cena. Recentemente em uma rede social do Twitter uma postagem da intitulada @soldefato que dizia assim. “Você sabia que de 6 em cada 10 brasileiros nunca foram ao teatro?” Nessa postagem em sua rede social ela trazia desdobramentos sobre questões cruciais para nossa classe artística e para a população brasileira, como acesso ao teatro, falta de investimento e a desigualdade social que atinge o setor cultural.

Qual o acesso que a população alagoana tem ao teatro? Eu, como estou professora da rede pública estadual, em diálogos em sala de aula digo que essa porcentagem cairia bem mais, porém são diversas as realidades. A conversa aqui é sobre pensarmos o teatro e como seu modo de criação artística, agrega, transforma e impulsiona muito do que somos. Muitos, são os espaços que um espetáculo de teatro e os artistas que o fazem ocupam. Ocupam e com isso tem a responsabilidade de como artistas modificar e construir uma outra possibilidade de ver o mundo, para os olhos que o alcancem.

Compreender cada cena como um recorte histórico, estético de nossos artistas, olhar para essa cena de maneira afetuosa e crítica é um trabalho constante aqueles do ofício teatral. Olhar nossa literatura, investigar seus desdobramentos em Palmeira dos Índios, de 2022 é um trabalho importante tanto de forma pedagógica/histórica e artística. Como investigar nossas memórias sociais e estruturais a partir da literatura local?  Há também de se perguntar, como contar essa história hoje? O que os olhares que nos alcançam irão ver em cena? O público é livre, mas ele está presente sobre a escolha de nossas narrativas de cena.

Caetés é um livro de 1933 escrito por Graciliano Ramos, nele temos a narrativa da pacata cidade de Palmeira dos Índios nesse período, é um romance onde se narra os devaneios descontrolados e amorosos de um triângulo amoroso e suas implicações sociais. Se pensarmos que Graciliano, em 1933 coloca como narrativa para o título de seu livro os “instintos” dos Caetés como paralelo para “afirmação” do conflito de sua cena literária, deveríamos estar atentos e propor uma descolonização de nossa cena hoje, evidenciando que a cultura histórica indígena não deve mais ser relativizada por achismos coloniais, aos quais nós ainda estamos presos. Como olhar para nossas narrativas históricas e transformá-las? É preciso rever as palavras e as histórias contadas, a normalização de discursos de violência deve e pode ser estilhaçado pela arte. Grada Kilomba em uma entrevista ao El País nos traz que:

“Desmantelar essas estruturas de poder'', defende Kilomba, passa também pela linguagem visual e semântica. "Normalizamos palavras e imagens que nos informam quem pode representar a condição humana e quem não pode. A linguagem também é transporte de violência, por isso precisamos criar novos formatos e narrativas. Essa desobediência poética é descolonizar"1

O teatro é palavra, presença de variadas formas, é a criação de uma poética única que pode transformar modos de ver e sentir e compreender o mundo por uma cena. Existe sempre naquele encontro a troca, a experiência e ela ocorre de forma única, coletiva e só. Contemplamos com nossos sentidos e com tudo que trazemos de bagagem.



Fotografia: Sombra


     O trabalho de Caetés da Cia Humana cena, evidencia a cultura e a vivência de todos aqueles artistas e fazedores de cultura, a necessidade do realismo nas cenas, a busca constante pela catarse do público e o clímax, a sonoridade quase como uma interferência das cenas. Os atores que declamam a cena, parecendo se deslocar para 1933, outros ao narrarem a cena com todo fervor deglutindo cada palavra nos conectam ao longo do espetáculo, esses são essenciais para a espera da longa da catarse tão ambicionada. Ao longo do espetáculo a culpa moralista é jogada no colo da mulher, os homens têm sempre suas ações e falas justificadas por “instintos selvagens”, tais quais os indígenas como narram os personagens de Graciliano em 1933. Uma sociedade machista e patriarcal onde a culpa cristã beneficia o perdão ao homem de “bem”, ainda é essa sociedade que queremos representar?  Essa é ainda a atual Palmeira dos Índios?

Que se libertem os indígenas dessa narrativa, essa culpa eles nunca cultuaram. Qual a cena que escolhemos contar no teatro? Que artifícios de liberdade precisamos conquistar e que estratégias de libertação conseguimos colocar no fazer cênico. Paulo Freire nos apresenta o seguinte, texto de Teresa Nunes:


“A educação libertadora tem, fundamentalmente, como objetivo desenvolver a consciência crítica capaz de perceber os fios que tecem a realidade social e superar a ideologia da opressão. Na educação como prática da liberdade, os homens e as mulheres são vistos como “corpos conscientes”.2


A libertação é individual, mas ela só será estabelecida de forma coletiva, pelo povo consciente de sua realidade, superando a opressão e as narrativas colocadas de forma poética e normativa. Quem sabe um teatro de libertação, uma cena de forma consciente, abrangente dando espaços e caminhos, esperançando olhares, encontrando habilidades, destravando lutas e cultivando plateias.

O teatro é um lugar de pouco acesso ainda hoje para a maioria da população, seja pelo local, pelo valor de ingressos, pela divulgação, nós somos um estado que não temos uma lei de incentivo, ficamos à mercê de editais nacionais e estaduais esporadicamente. Ou seja, quando surgem.



Fotografia: Sombra


Em 6 anos desses trabalhadores da cultura, quantos de nós acessamos esses colegas, apreciamos e dialogamos sobre o nosso fazer teatral. Quantas pessoas tiveram acesso à experiência ao longo desses 6 anos nas cidades do interior? Há de se aplaudir esses colegas, seu empenho, sua perseverança e torcer para sua continuidade quanto mais nos espalharmos, maiores ficaremos.  A Humana Cena, é uma produtora artística e de eventos, que vem desde de 2017 atuando na cidade de Palmeira dos Índios e região, nesse período foram mais de 8 espetáculos, oficinas e cursos de teatro para a população em geral. Além de promover eventos com artistas de outras linguagens artísticas e regiões para o espaço da cidade. 

  Re-aprender nossas histórias, observar nossas memórias, construir um espetáculo olhando aonde queremos chegar, o que queremos e vamos contar, o que podemos transformar. O extraordinário é nunca parar, o artista é movimento ele quando se movimenta leva com ele muitos, quantas pessoas tiveram acesso à arte pelo trabalho da Humana Cena, que ela chegue a tantos e tantas outres. Que esses trabalhadores cênicos andem por outros caminhos, o encontro os espera. E a cada dia tenhamos novos espectadores,assistindo cenas pela primeira vez, essa é a nossa luta. Teatro deve ser para todos, todas e todes.



Fotografia: Sombra





Referências:

1-https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/19/cultura/1566230138_634355.html

2-https://educacaointegral.org.br/reportagens/paulo-freire-em-seu-devido-lugar/?gclid=CjwKCAiAmuKbBhA2EiwAxQnt7-hIMQYHao8MJOEBAIRahkJC1WdJacniT1QMXKHaWSCsGF5K1F8SHBoCQ7IQAvD_BwE

Serviço:

Dramatugismo: Moisés Monteiro de Melo Neto 


Direção: Robson Silva 


Elenco: Lydianne Ferro, Gabriel Philippe, Tamário Rodrigues e Rubens Einstein


Sonoplastia: Túlio Francino 


Iluminação: Carlos Junior 


Cenografia: Robson Silva


Maquiagem e Penteado: Allan Cavalcante e Erika Morgana


Técnica: Pivette Curly e Felipe Erick 


Bilheteria: Beto Vianna e Jéssica Leitte


De Zé Sabido a Marcos Vanderlei, símbolo e memória de um movimento cênico/ Maceió(AL)Abril, 2022.

                                                                                                  Tessitura_ Lili Lucca


Sentar à mesa do bar é um ritual, é ritual também o teatro, ambos se dão no encontro. Aqueles que nunca degustaram de uma boa dose de algo etílico, ao menos espero que aqui junto a nós tenham se inebriado da arte e poesia daquele que em cena conta causos tontos de dias de embriaguez. “Há multidões em mim” é o que versa em suas palavras o personagem Zé Sabido, e o que acontece em cena há mais de trinta anos de trabalho do ator Marcos Vanderlei, composição de histórias.





    Puxe sua cadeira, desce mais uma, mais uma conversa a beira do palco esse é o efeito que nos causa, estamos achegados a ele, ali nas frestas das luzes. Entrelaçados pelas vivências contadas, à beira de paisagens feitas de calçadas e quadrados amarelos, onde as mãos suavizam e tocam garrafas levando a boca de copos liquidez, e então inebriando nossos sentidos.

    A dramaturgia das peripécias de botecos, realidade e/ou ficção permeiam a todos pela memória, aqueles livres que ao invés de régua da moralidade permitem vivenciar o efeito do álcool. Não coloco aqui o álcool como o centro do conflito de cena. Busco aqui a liberdade daqueles que são abraçados pela rua, das pessoas que vivem a descobrir, o mundo em outras pessoas. Daqueles que não estão previamente planejados, que curtem o improviso da vida, que esquecem o dia de amanhã para viver o hoje. Qual a certeza do amanhã? Escutar as histórias do Zé Sabido, é também lembrar-se do presente. E o hoje?






    O êxtase do momento é o que Zé Sabido discorre em cena, é um daqueles que como muitos de nós experimenta o sabor e os devaneios da vida.

    Um encontro que necessita do básico, um ator, algumas boas histórias e uma plateia atenta, ali como no teatro, somos capturados pelo trabalho de Marcos. E alucinante a simplicidade do palco vazio, a luz que vaza pela caixa de cerveja e desenha a cena que povoa e reanima nossas lembranças, somada ao trabalho autêntico, intenso e gentil de Marcos.

    Comparecer ao espetáculo Zé Sabido, e ver Marcos Vanderlei, em cena é como ver muito da história do teatro alagoano viva pulsando. Anoto aqui uma tentativa de catalogar e compartilhar com vocês, um pouco da nossa história cênica e híbrida de nossas terras. Há algum tempo acompanhando e fazendo parte do cenário Alagoano, a imagem de Marcos, permeia minhas referências cênicas. Sua imagem nos palcos alagoanos é algo muito concreto, ele sempre esteve ali no tablado. A grafia de seu trabalho de ator é um presente e um legado para a história da arte alagoana.






    Maceió, é uma terra onde a história do nosso teatro, ouso dizer, é feita por seus artistas e seus caminhos. Andar pelos espaços de ocupação cênica desse ator, é se deslocar há 1990, no Infinito Enquanto Truque, é escrita de uma dramaturgia do Teatro da Meia Noite, é acessar os jogos do Cena Livre e hoje aplaudir sua jornada na Cia. Imaginário.

    Cia. Imaginário, que desde os anos 2000 se intitula como propagador cultural na cena Alagoana. O espetáculo Zé Sabido, segundo me contou em uma prévia conversa a diretora do espetáculo Beth Miranda, é o primeiro espetáculo adulto do grupo e que queria homenagear o trabalho de mais de três décadas do colega de cena Marcos Antônio da Silva Vanderlei. O espetáculo que nasce de maneira coletiva no grupo, tem também o texto tecido por Márcio Veloso.

    Zé Sabido é ligeiro, tem sua história tecida entre uma dose/cena e outra, ao seu redor no teatro Deodoro, olhos atentos ao seu movimento e ao seu caminho. Que siga contando, percorrendo e edificando a história do teatro em Alagoas. Marcos daqui te digo, uma coisa é certa seu trabalho está escrito na memória daqueles que te presenciaram em cena. Sua trajetória é um documento vivo do teatro alagoano.


 SERVIÇO:

Teatro é o maior Barato

20 de abril de 2022

Zé Sabido

Monólogo com o ator Marcos Vanderlei

Texto: Márcio Veloso

Direção: Bethe Miranda

Produção: CIA Teatro do Imaginário

Classificação: 14 anos

Fotos- Roberta Brito


Tudo que brilha pode acender espaços de escuridão

                                                                                                                   ...