Tudo que brilha pode acender espaços de escuridão


                                                                                                                   Tessitura_Lili Lucca

No dia 20 de julho, fui ter uma nova experiência em Garanhuns, município brasileiro do agreste do estado de Pernambuco, distante 230 quilômetros da capital pernambucana, Recife. Lá pela catarse do teatro, revistei algumas memórias que aos poucos foram se catalogando em minhas emoções. Ao escrever, elas voltaram ainda mais forte, eu até tentei nomear os momentos que a escuridão não deixará o brilho surgir.

Quando eu era criança em Sarandi, sempre via as luzes dos vagalumes e os sons em meio a pequenas árvores que tinham na minha casa, era corriqueiro. Confesso que aquela luz sempre tão presente já era comum em meu cotidiano, antes da luz vinha o som dos vagalumes. Assim era quando de tempo em tempo meu primo chegava, de longe a gente já gritava e acredito que uma luz se acendia dentro de nós. Logo que a gente gritava, vinham vozes silenciando-o. E a gente corria para o quarto para ouvir música, cantar, dançar e brincar, sermos livres. Na nossa infância e pré-adolescência sempre nos acolhemos, mas nunca falamos sobre quem queríamos ou podíamos ser. Muitos armários ainda estão fechados dentro da minha família, muitas vidas ainda estão escondidas lá dentro. Isso não é sobre mim. Eu uma mulher cis e hétero, já vivi e vivo cotidianamente muitas opressões de gênero, todo dia eu tento não me calar. Mas eu consigo ser quem eu sempre quis ser, na maioria das vezes. 

“Escrevemos essa história com muitas mãos. Mãos que reorganizam a narrativa e devolvem a liberdade e o direito aos delírios dessa nossa eterna criança-viada.” Bruno Alves

O que você queria muito ser ainda criança?


Contar uma história no teatro pode despertar e transformar toda uma realidade. A experiência de arte, permite a gente ver outros formatos do mundo e perceber coisas nossas, antes inacessíveis, para nós mesmos. Se modificamos o mundo, a cada passo, a cada nova invenção, então a arte e tudo que é feito dela, e a partir dela pode invocar novas experiências de vida.

Quantas vezes você foi impedido de ser quem você quer ser?

A cor da madeira sobre o palco, a organização das gavetas pelo espaço e o tempo de brilhar de Joesile Cordeiro. Um homem negro, de pele clara, protagonista de sua vida, autoridade da arte e da cultura em Garanhuns, que desde de pequeno já sabia o que queria ser, ser artista e brilhar, um menino que se escondeu dentro do armário, foi jogado nas gavetas e pendurado por adjetivos em cabides do seu armário. Sorte que no armário daqueles que são livres tem algo que brilha, tem luz e emana, assim ele conseguiu se ver lá refletir e ir como os vagalumes em momentos certos construindo sua história e como a sua luz natural ascendeu perante nossos olhos. Em um armário, montado e desmontado por suas gavetas, cheia de luzes que carregam, fotos, cartas, redações, sonhos, angústias, agressões, desejos, o espetáculo Tempo de Vagalume, vai com suas luzes, iluminando aqueles que por algum momento se abrigaram nas gavetas. É pela arte que a libertação trará a sucessiva efetivação de vida.

Tempo de Vagalume é um documento de cena para arte e a sociedade de Garanhuns, cada palavra tecida pela dramaturgia em processo de colaboração por Bruno Alves, é um anúncio e combate na voz de Joesile.


Que espaço é esse onde a arte em pleno século XXI precisa da permissão da igreja para acontecer?  Quais são os corpos que são permitidos se expressar no agreste Pernambucano?

A dramaturgia que negamos ouvir durante a vida, é a voz, o olhar daquela criança que se abrigou nos esconderijos do armário, que reflete sua opressão e experiência de sufocamento romantizada/normalizada por uma sociedade que para amar precisa de padrões e encaixes “corretos”. Padrões esses que eles criaram para dominar e que justificam por ordem religiosa, ou status quo daqueles que tem poder capital em seus territórios. Sendo que aquele que é inspiração para toda essa exclusão patriarcal e homofóbica disse:

“Amai-vos, uns aos outros como eu vos amei.” Jesus de Nazaré

A cada palavra colocada em cena, a cada passo da caminhada dessa bixa preta pelo agreste pernambucano, vão se abrindo gavetas, nessas gavetas encontramos muita dor e violência suportada por esse corpo. Mas é preciso mais uma vez anunciar, não atrapalhem, esse corpo que caminha e que irá aos poucos abrindo as gavetas, limpando suas feridas e colocando para fora seu brilho, sua potência e seu trabalho. Um artista que rompe os espaços geográficos e que continua a caminhar desbravando ambientes e se colocando no mundo no seu tempo.

Um tempo de vagalume. Os vaga-lumes, ou pirilampos, são insetos e são conhecidos pela sua capacidade de produzir e emitir luz, chamada de bioluminescência. Bioluminescência é a produção de luz fria e visível por organismos vivos através de uma reação química. Um artista, sabe do seu compromisso com a arte, e é preciso olhar para as escuridões de seu tempo, e emitir luz viva, tempo esse de agora onde as luzes tão artificiais tomam nossa vida de segundos em segundos, em frente às telas. O caminho escolhido para que a luz invada esses organismos é o teatro, o encontro e ao tecer um espetáculo por suas dores, ele também se articula ao amor que teve no seu lar. O amor de mulheres que sempre enxergavam seu brilho.

Tempo de vagalume, sai ao encontro de crianças, a busca é pelo encantamento e pelo cintilar de viver que muitas vezes abandonamos no percurso da infância à vida adulta, afinal precisamos nos encaixar nesses padrões, para não sermos colocados dentro do armário. É preciso refazer a rota, escavar as memórias, reorganizar o trajeto e continuar a batalha para ser você, e que isso o faça brilhar. Joesile espalha:

“Eu quero uma coisa que brilhe.”

 Qual o preço da sua liberdade?

Quem tem o poder de apagar o seu brilho?

 Uma criança, deve ser vista, amada, cuidada e respeitada.

Uma criança LGBTQIAPN+ também deve ser vista, amada, cuidada e respeitada, é preciso iluminar a cabeça das pessoas para que o amor volte a acontecer em suas vidas. Cuidem-se. Cuidem das suas crianças, já dizia a música de Caetano Veloso:

“Gente é pra brilhar.”


O teatro é um documento vivo da arte que acontece à nossa frente, ali nas plateias vidas respiram, batalhas são travadas e existências mantidas. A liberdade de ser e da arte é um caminho que ainda está em construção em muitos lugares do nosso país. Para que ocorram transformações é preciso resistir e construir pontes, acender as luzes do que não faz parte da sua existência, experienciar a vida. 

Que Tempo de Vagalume continue a circular e iluminar espaços, e quem sabe com o brilho dessa cena algumas pessoas consigam enxergar para além de suas próprias vivências?

Talvez e outros vagalumes voltem a acender.




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