ESTUDOS "Tessituras Críticas do Filé: Um convite a olhar com profundidade a escuridão"

    Tessitura _ Bruno Alves

   Desenvolver um olhar crítico sobre as Artes Cênicas tem sido ao longo dos últimos meses o objeto de estudo do Coletivo Filé de Críticas. Através da crítica fazer pensar e refletir sobre o contexto em que a obra de arte é produzida, fazer também refletir sobre as diversas formas de recepção que essa obra possa ter em contato com o público e ampliar assim, os possíveis diálogos. 

    A tessitura de textos têm sido um dos nossos maiores vínculos de diálogos nos últimos meses. Ao publicarmos em plataforma digital registros de olhares sobre os espetáculos de artes cênicas em palcos alagoanos, estamos buscando estabelecer um diálogo entre: Artistas e público; artistas e críticos; público. Além de trazer possibilidades de leituras sobre as obras que lhe são apresentadas. 



   É preciso relembrar, nesse percurso que fazemos enquanto coletivo, as possíveis definições e caminhos que o olhar sobre a criação artística percorreu ao longo da história da Estética para que chegássemos em nosso contexto com um espaço cada vez mais rico e cheio de possibilidades de apreciação e pensamento sobre o fazer artístico. Para Pavis a Estética:

“(...) é uma teoria geral que transcende as obras particulares e dedica-se a definir os critérios de julgamento em matéria artística e, por tabela, o vínculo da obra com a realidade.(...)”.1

   A crítica ela vai ganhando nome e forma nos avanços que o pensamento sobre Estética vão se formando. Ela não nasce solta, vai se formando e ganhando estrutura com o surgimento da autonomia de pensamento do ser humano sobre as coisas que faz e sobre as coisas que aprecia em arte. 

   Não podemos deixar de falar que a liberdade de criação, a autonomia para ser mais preciso, foi uma conquista, pois muitas vezes a criação artística (de pintores e escultores) esteve ligada aos laços com mecenas e também com princípios religiosos. Destacamos aqui especificamente, para falar desse vínculo com o divino, o período que marca a história da humanidade e é reconhecido como a Idade Média, pois mesmo em períodos mais distantes, sempre houve uma ligação do artista e sua criação com os deuses e deusas de seu tempo.

   Como poderia o ser humano criar na Idade Média se Deus era o único criador das coisas? Como poderia pensar ou mesmo duvidar das coisas se esse mesmo Deus era onisciente e onipresente ao ponto de estar até mesmo sabendo os pensamentos mais secretos de cada pessoa? Então, reproduzir a realidade, mostrar a natureza das coisas tal qual como elas eram tornou-se por muito tempo uma forma mecânica, vestida de técnicas, que faziam os artistas sobreviverem e ganharem reconhecimento e prestígio. Passar a criar outras realidades, refletir e questionar as coisas e ir além daquilo que se via tornou-se uma conquista ao longo do tempo. O artista era agora mais livre para poder representar a realidade da forma que ele queria e a filosofia cada vez mais impulsionadora de olhares sobre as coisas que eram inerentes à natureza humana, pois na Renascença, surge  essa possibilidade de ver como nos lembra Jimenez ao dizer que:

“Com a Renascença desponta a noção de criação autônoma. Pouco a pouco, o artista liberta-se das coerções religiosas, políticas e sociais da Idade Média e afasta-se da teologia e da filosofia escolásticas. Todavia, apesar dessa libertação e apesar da dignidade que evolui para seu status social, decorrem dois séculos antes que a estética se impunha como disciplina específica e que a arte constitua uma esfera totalmente autônoma, independente não apenas em relação à Igreja e ao poder, mas também em relação à ciência e à moral”.  2

   O Renascimento marca esse momento em que a autonomia/liberdade da criação e do olhar são devolvidos a condição humana. Agora com mais força e autonomia tudo que estava exposto era objeto do pensamento e da dúvida.

   Quando falamos e escrevemos sobre um espetáculo de Artes Cênicas buscamos evidenciar nessa escrita o processo de criação autônomo de grupos e artistas que rodeados de subjetividades vão encontrando na construção de um espetáculo formas de dialogar sobre questões do nosso tempo.

   Se ao longo do caminho da História da Estética somos colocados diante de pensamentos como o de Descartes ao dizer que “Penso, Logo Existo”, começamos a partir daí um marco na humanidade como racional, na qual o artista já não é aquele que cria com dons divinos, mas aquele que pensa sobre o que faz, que encontra no cotidiano e em seus afetos e vivências elementos de composição das suas obras.  Jimenez nos lembra que:

“No centro deste racionalismo, há, evidentemente, o sujeito, afirmando sua autonomia tanto através da dúvida quanto através da certeza de seu próprio pensamento”.

   A dúvida entra como grande aliada na construção do pensamento e do olhar - Eu vejo, eu penso, eu duvido, eu tenho o direito de duvidar. A existência de um ser divino não pode impedir a minha dúvida, a minha construção de um pensamento, porém esse caminho de “aperfeiçoamento” do olhar estético irá se ampliar em estudos de outros pensadores posteriores a Descartes, como Kant e Hegel, os quais Jimenez nos aponta com mais precisão nesse mesmo livro que por aqui citamos. 

   No entanto, cada vez mais buscamos treinar o olhar em nosso tempo e principalmente como coletivo de crítica de artes cênicas. Treinar o olhar sobre as obras que acontecem em solo alagoano como quem decifra, ou encontra elos de interpretação nas narrativas que são expostas em seu tempo. Olhar, além de ver. Olhar e reconhecer, ou reconhecer-se como parte desse tempo em que a obra está inserida.

   Pensar sobre as coisas é treinar o olhar estético. Isso tem sido tarefa difícil em tempos de contrainformação. É nesse contexto que a nossa crítica, entra como elemento de profunda importância no ato de fazer o outro se olhar e se perceber dentro daquilo que está sendo mostrado. Aqui a nossa tarefa vai se ampliando, treinamos o nosso olhar, buscamos ver as possibilidades daquilo que nos é mostrado e ao escrevermos sobre aquilo, buscamos trazer opções de olhares para aquelas pessoas que nos leem e que apreciam em seu cotidiano o fazer artístico em Alagoas.

   Dentro desse pensamento sobre o olhar, Agamben afirma que ser contemporâneo está na capacidade de olhar o tempo em que se vive, mas olhar fixamente cada canto desse tempo e principalmente a escuridão, aquilo que não está exposto, ou que é exposto, mas geralmente quando estamos vivendo não conseguimos enxergar. Eis aí um ponto importante para a ação crítica. O de revelar aquilo que se mostra ou que se esconde por trás de um processo cênico dentro do contemporâneo. E para Agamben:

“Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade. Com isso, todavia, ainda não respondemos a nossa pergunta. Por que conseguir perceber as trevas que provém da época deveria nos interessar? Não é talvez o escuro uma experiência anônima e, por definição, impenetrável, algo que não está direcionado para nós e não pode, por isso, nos dizer respeito? Ao contrário, o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. (...). Aquilo que percebemos como o escuro do céu é essa luz que viaja velocíssima até nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais provém se distanciam a uma velocidade superior àquela da luz. Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo.”3
   Para a crítica é também um desafio, olhar com cuidado aquilo que se mostra e perceber que caminhos de escuridão (ou não) percorreu aquele artista que quer nos comunicar e trazer à luz alguma coisa.

   Dessa forma, quando olhamos a obra temos a tarefa de ver como aquela obra ilumina o tempo em que foi exposta, mesmo que seja a montagem de um clássico, como aquele clássico nos revela ainda hoje? Como o artista foi capaz de extrair da escuridão possibilidades de luz, raios e faíscas? Pois para Agamben:


“No firmamento que olhamos de noite, as estrelas resplandecem circundadas por uma densa treva. Uma vez que no universo há um número infinito de galáxias e de corpos luminosos, o escuro que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, necessita de uma explicação. É precisamente da explicação que a astrofísica contemporânea dá para esse escuro que gostaria agora de lhes falar.”


A crítica vem também dentro desse universo de possibilidades nos fazer perceber os rastros de escuridão que cercam a criação, ampliando as possibilidades e fortalecendo a criação de cada artista.

Assim, para nós o olhar com profundidade a escuridão é uma forma de encarar as possibilidades de criação e interpretação que cada obra possa ter. Além de possibilitar outros diálogos entre público e artistas, para além das subjetividades de cada um.

     O Olhar com profundidade a escuridão é também tarefa do artista no tempo de hoje, porque ao ver-se parte de um contexto é preciso também que ele reflita sobre esse e mergulhe numa criação que amplia as possibilidades de interpretação da vida. Daí lançamos também ao artista que nos comunica e que recebe o nosso olhar a questão: Como é receber em sua obra um olhar de outra pessoa, que tenta tecer diálogos, questionamentos e tensões na escuridão?


Referências:

1) Dicionário de Teatro - PAVIS, Patrice

2) O que é estética. JIMENEZ, Marc.

3) O que é contemporâneo e outros ensaios.AGAMBEN, Giorgio.

4) Fotografias noturnas do Povoado Riacho em São Miguel dos Milagres - AL de Nivaldo Vasconcelos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

“Estendam ás mãos já! - Narrativas Individuais para Construções Coletivas”

    Tessitura_ Lili Lucca            Ainda andamos de mãos dadas Cacau, aqueles que na cena construíram espaços de criação de arte ao seu la...