Festival de Mulheres Engraçadas - F.E.M.E.: A Graça como construção de territórios possíveis


Tessitura:

Bruno Alves

Jocianny Caetano

Lili Lucca


Entre os dias 27 e 29 de março aconteceu o pré-encontro do Festival de Mulheres Engraçadas - F.E.M.E. de Alagoas, realizado pelo grupo Clowns de Quinta. Dessa vez, Salsichinha, Frella e Coxinha, as palhaças anfitriãs, preparam para nós uma nuvem virtual, onde pudemos nos abrigar, rir e dar cambalhotas de maneira segura e sem correr nenhum perigo, pois diante do contexto pandêmico que vivemos, saltar até as nuvens do F.E.M.E. é uma oportunidade de se fortalecer e encontrar no riso uma forma de resistência e força para viver.


Divulgação FEME. Arte Karna May

As memórias de um espaço circense geralmente são muito afetivas e ligadas à infância. A arte da palhaçaria sempre esteve permanentemente em movimento, um espaço fugaz, um cheiro, uma comoção ao risco, um estado de maravilhamento. E tinha uma convergência nessa experiência, o convite que vinha através de comunicados sonoros, que geralmente vinham de personagens, em um automóvel que circulava em todas as ruas, e esse chamamento no pré-encontro virtual do F.E.M.E. veio através do: Clipe do F.E.M.E. No clipe encontramos uma estética do lar, um quintal como cenário, vassouras como instrumentos de sopro, um varal de chão como teclado e as palhaças Salsichinha, Frella e Coxinha que a partir daí nos convidam a presenciar um lugar familiar onde se vê a palhaçaria feminina. Na nuvem e de casa elas vocalizam: “Tá, tá, tá, tá muito especial, (...) E esse é o F.E.M.E. pré-encontro virtual, vai ser tudo muito lindo, bonito e sensual”.


Foto de David de Oliveira

Wanderlândia Melo, Elaine Lima e Nathaly Pereira, protagonizam esse encontro que é resultado de anos de trabalho de ambas na palhaçaria feminina, conquistando nesse tempo espaços, empoderando e representando outras mulheres. Nesse cenário atual o F.E.M.E. se mostra como um espaço de acolhimento e oportunidade para artistas cênicas do riso que enfrentam as dificuldades, lutas, angústias e vitórias dentro dessas redes digitais para poder continuar a levar seus trabalhos e ter sua vez e voz representada. 


Foto de David de Oliveira

Nessa pré-edição o festival trouxe uma programação intensa envolvendo ações pedagógicas, rodas de conversas e apresentações artísticas com mais de 10 artistas mulheres de variados estados brasileiros e de contextos diversificados do riso.

Logo no amanhecer do dia 27, o encontro foi pelo Zoom com Vanessa Rosa na oficina “Comicidades Negras: Cosmos Percepções - Alegria como Fundamento”. Foram três manhãs nas quais ela provocou em diverses artistas alagoanes e de outros estados presentes a reflexão sobre a valorização e busca por uma comicidade ancestral relacionada com nossas culturas afro-brasileiras e ameríndias, valorizando o corpo, as histórias, os cantos, as máscaras, danças e caretas que sofreram e sofrem apagamentos dentro do contexto da palhaçaria e comicidade brasileira por conta da forte presença colonial europeia em nosso meio. 


Fotografia do Acervo Pessoal de Vanessa Rosa

A arte, a ancestralidade e a existência de Vanessa caminham juntas buscando encontrar terreiros e corpas dispostas a se descobrirem e celebrarem no riso o pertencimento, sem precisar esconder as suas origens ou buscar a construção de um corpo inalcançável. Certamente vivenciar esses momentos com Vanessa Rosa é entrar em profundas reflexões e entendimentos sobre silenciamentos, racismo, preconceitos, xenofobia e outras discriminações no universo da palhaçaria e do mascaramento. Porém, a oficina se propõe a apresentar outras percepções de comicidades, tendo a alegria como princípio e fundamento. É ela matrigestora do Terreiros do Riso que realizou esse ano a segunda edição  do Festejo Raízes do Riso, um espaço de encontro de comicidades negras e afro-indígenas. 

Vendo a oficina percebemos que o Terreiro de onde nasce e renasce Vanessa é também o lugar que outres vão se encontrando, se percebendo e renascendo juntes. Ampliando, se revelando e se afirmando por todos os cantos do país. O FEME é mais um pedaço desse imenso terreiro.

À noite nos encontramos com o espetáculo “Mary and Virtual Mood” de Enne Marx (PE). Pela tela ela canta, faz rir, busca a fama online, porém prefere o anonimato daquele encontro. Em meio a apetrechos virtuais e toda sua bagagem de poesia e arte, ela se torna virtual, mas nos mostra essencialmente Mary e seus dilemas em tempos pandêmicos, como nos escreveu Bruno Alves no “Post-It Crítico” em nosso Instagram a seguinte tessitura:


“Você é palhaça. Você tem que fazer rir!

Tem que ter uma voz suave, alegre, não falar palavrão.

Tem que ser poética, né?

Está todo mundo feliz, né? Alegre!

O famoso mostrando a mansão.

O não famoso querendo ser famoso.

Hoje é o instagram que temos que alimentar.

É tanta live que já não sei o que é de verdade.

Deus me live!


Foi trazendo frases como essas que “Mary en Virtual Mood” de Enne Marx abriu o pré-encontro do @f.e.m.e_ na sexta (27/03). Experimento concebido e tendo como contexto o isolamento da covid-19, revela o aspecto inquietante da personagem-artista buscando ao longo da quarentena formas de matar as saudades do teatro e das pessoas que não pode encontrar fisicamente.

O que nos surpreende e nos toca ao assistirmos são as entrelinhas dos conflitos que vivemos se espelhando ali. Do quão solitário tem sido viver os dias em um enquadramento digital; do tão fictício e atrativa tem sido a realidade das celebridades do instagram; e do quanto nos esforçamos e demandamos tempo para viver uma ficção parecida.

Mary é uma palhaça que assumiu o controle do microfone para cantar e dizer ao mundo que não está preocupada com teorias e hipóteses de como ser uma palhaça perfeita.

Se desobriga da imposição de fazer rir a todo custo e fazendo isso, nos faz rir, porque se mostra tão humana e incomodada com a situação atual, quanto qualquer um de nós.

Ela negando a poesia, torna-se poética.

Suas canções nos conectam, porque refletem as sensações que vivemos nesses dias e os desejos de fisicalidade que carregamos. Quando ela canta rememoramos momentos vividos na pandemia e também nos sentimos em um bloco carnavalesco dançando livremente em um tempo onde nada disso existia.

Há uma voz por trás do nariz vermelho que vai refletindo ao longo do experimento os dias, os decretos, as solidões, as ficções e os medos. Canta que se o mundo inteiro lhe pudesse ouvir, teria tanto pra falar e dizer o que aprendeu. Uma voz que diz, que tem rosto, história, memória e presença e ao desmascara-se no final da jornada se assume inteira, verdadeira e entregue ao palco que hoje lhe é possível.

Mary vem pra nos dizer que o essencial é o ser humano."



No dia 28 tivemos no Youtube o encontro “Caiu na Rede é Arte!” mediado por Nathaly Pereira, onde tivemos uma conversa com as artistas Enne Marx (PE), Priscila Souza (SP) e Larissa Uerba (BA), na qual conhecemos um pouco das suas narrativas e de como essas artistas que sempre ocuparam os palcos e a rua, trabalham em meio a esse novo cenário virtual. Desafios, conquistas, falas que precisam ser ouvidas para o fortalecimento dessa rede e para sua expansão. Para além da ocupação das redes com seus trabalhos, essas artistas apresentam suas realidades e coletivos, alinhavando nessa conversa uma possibilidade de crescer juntas e expandir territórios. 


Acervo Rede Social FEME

No encerramento desse pré-encontro, no dia 29, lá estavam elas (Salsichinha, Frella e Coxinha) prateadas, brilhantes e de peito aberto espalhando a alegria por seu trabalho como apresentadoras do “Cabaré nas Nuvens”. Um espaço de encontro entre diversas artistas da comicidade e da palhaçaria, nos apresentando todas as suas forças e resistências. O Cabaré estava ON como nos escreveu Jocianny Caetano no “Post-It Crítico” intitulado “Cabaré nas nuvens e dentro do frame”, onde nos fala que:

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“Foram três mulheres que inventaram a roda. As três mulheres pareciam vindas de outro planeta, porque naquele momento não era comum usar roupa prateada e ter nariz vermelho, as três conversaram sobre um objeto redondo que facilitaria a vida de todos, explicaram durante o debate as configurações que esse objeto deveria ter. Um homem escutava tudo atrás de uma árvore, saiu dali e criou um objeto para a locomoção. Elas criaram um Cabaré nas nuvens no Festival de Mulheres Engraçadas o F.E.M.E.

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A invenção da roda delAs, a partir do grupo @clownsdequinta, traz um movimento da Palhaçaria Feminina. Essa roda propõe um ambiente de experimentos e acolhimento, o efêmero que fica On. Lembrem-se que, nas segundas elas usam prata. O deslocamento traz a Compalhaça Sebastiana, seu collant vermelho e seu jeito único de lidar com o tecido, uma relação flexível como geralmente não costumamos ser. E puxando mais o que vem? Picoka, a mágica, e o seu Dadão. O conflito da imagem e do som deixaram evidente a simplicidade de se iludir, a Picoka conseguiu, porque ela faz isso há muito tempo. As panteras mulheres dançando nos contam: o movimento é sexy e libertador. Fluindo a invenção presentifica a Fronha, que canta com as mãos e com as sobrancelhas, um luxo nos cantarolando que tudo que vai, volta. E nesse boomerang nada estático Cláudia Helena, uma Stand Up, afirmando principalmente a graça que é observar de fora o ser macho.

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Nesse cabaré tem um monte de mulé. De Maceió, Arapiraca, Florianópolis e Penedo, todas feminilidades e seus artigos femininos, sentam com carinho em territórios atípicos. Só não pode se apaixonar, tá? Ou pode?”



Uma ousadia. O pré-encontro do F.E.M.E. acontecer em 2021 é uma ousadia, porque a coragem de insistir em criações de imagens femininas para a palhaçaria, é uma ousadia. Os estudantes convidados por uma grande professora do estado, Joelma Ferreira, que não vão conseguir esconder o fato concreto que presenciaram online: Tem palhaçaria feminina no Brasil, em Alagoas e em Maceió. Para o “mundo”, é uma ousadia. E falemos também desse riso, ele é crítico. Foi uma delícia de encontro e por vezes entreteu sim, mas não se engane, havia engasgo ao ri, uma expressão que rapidamente muda, discursos a prova de diálogo e atenção às vozes de mulheres, que comunicavam sua arte. Essa presença é um posicionamento político.  

 O pré-encontro do F.E.M.E. nos oportunizou conhecer artistas e narrativas distintas, pois conhecemos  criação de mulheres que trabalham nos palcos, nas universidades e escolas, nas telas e debaixo das lonas circenses, ampliando o nosso alcance sobre formas de resistência e criação no modo virtual, formação e troca de experiências entre mulheres de diversos estados do Brasil. O festival promete voltar ainda esse ano e por aqui registramos a potência de diálogo e encontro que já se mostrou nesse primeiro momento. São territórios e terreiros como o F.E.M.E. que ampliam e fortalecem a resistência através do riso entre diversas mulheres de Alagoas e do Brasil.



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