Aldeia Arapiraca 2019: DEPOIS DO CORPO, O CORPO: A MULHER DO FIM DO MUNDO - Cia Casa Circo (AP)

Tessitura _ Felipe Benicio*

     No solo A mulher do fim do mundo, espetáculo da Cia Casa Circo (AP), dirigido por Jones Barsou, a atriz e dançarina Ana Caroline diz o corpo e dança verbos em uma dramaturgia cuja potência, acredito, reside em sua capacidade de evocar significados múltiplos a partir de suas várias camadas.

No texto, assinado por Barsou, há um corpo que fala de si na primeira pessoa — “eu, corpo” —, que afirma já ter passado pelos mais diversos estados da matéria e sofrido todos os tipos de cólera. Se, de acordo com a “Canção de mim mesmo” de Walt Whitman, “cada átomo que há em mim igualmente habita em ti”, enquanto texto verbal, quando esse corpo fala de si, ele também fala de todos os corpos. Um corpo que parece habitar um tempo fora do tempo, depois do fim do mundo. Um corpo absoluto, onde cabem todos, amálgama da física e da metafísica que atravessa as massas corpóreas desde a primeira célula até a última sílaba. 





       Mas esse texto chega até nós por vias simbólicas demais para serem ignoradas, de uma forma que me faz lembrar e ressignificar a ideia de Marshall McLuhan — o meio é a mensagem. 

Se, sozinho, o texto tem essa capacidade de ser plural — ou seja, o corpo como metonímia de todos os corpos —, ao ser proferido por Ana Caroline, ele ganha uma dimensão mais específica, um recorte, um foco, mas nem por isso torna-se menos forte, impactante, poético. Em um país em que uma mulher é morta a cada duas horas vítima de feminicídio, e onde os corpos negros são os maiores alvos das mais diversas formas de desigualdade, ter em cena uma artista negra dizendo que “só eu posso vivenciar a minha própria tragédia” é algo que gera sentidos que extrapolam o limite do textual. E isso tem o poder de ressignificar tudo o que vemos e ouvimos. 

      Creio que essa tensão entre um texto de caráter mais universal e um corpo particular é o que faz com que existam as muitas camadas que dão força e ampliam os significados da obra. Essas duas instâncias — universal e particular — estão de tal maneira coadunadas que um sentido jamais se sobrepõe ao outro, fazendo com que A mulher do fim do mundo possua uma inevitável vocação para ambiguidade, desde que não se perca de vista essa tensão entre particular e universal. 

      As partituras corporais também são igualmente fortes. Talvez por conta dessa voz que é muitas, Ana Caroline se faz presente de maneira intensa e contundente. Seus olhos e sua respiração criam uma força magnética que puxa o público para dentro das cenas. A todo tempo, esse corpo é ele mesmo e seu contracorpo, a vítima e o algoz, matéria e antimatéria. Em movimentos em que os braços se fazem lâminas, a personagem de Caroline parece cortar e cortar-se, talvez fazendo de seu próprio corpo o palco de lutas históricas, de violências perpetradas (contra o corpo, de maneira geral, e contra a mulher negra, de maneira específica) ao longo da história. 

      Cabe salientar que a cena descrita acima é um dos momentos em que a luz projeta no palco vários pequenos riscos retos e diagonais que, juntos, compõem a imagem de galhos de plantas. Ou seja, há esses “riscos” nos filtros (gelatinas) de iluminação, que projetam na cena uma luz toda entrecortada, justamente no momento em que Ana movimenta os braços como se fossem lâminas. É muito instigante perceber essa sintonia. 



      Tive a oportunidade de assistir a esse espetáculo da Cia Casa Circo duas vezes: em Maceió, sentei nas cadeiras do público; aqui em Arapiraca, assisti a tudo de cima do palco. Sinto que só agora que pude ter a experiência completa de A mulher do fim do mundo, a partir dessas duas perspectivas que se complementam. Da plateia, lembro que pude ver os desenhos que Ana fazia no espaço cênico ao se deslocar de um canto a outro do palco, bem como a força de seu corpo e de sua voz que me atingiam em cheio a cada gesto, a cada palavra; do palco, consegui ver outros desenhos — agora, os do corpo contorcido no chão, estátua viva e pulsante —, bem como os dedos fazendo círculos no chão e crescendo, crescendo até tornar-se espiral, redemoinho, um signo em rotação. 

      É curioso notar que, numa obra em que os elementos cênicos conversam tão de perto um com outro, em que tudo está tão bem amarrado, qualquer passo para fora dos limites desse microcosmo, por menor que seja, acaba destoando de maneira visível do conjunto. Por exemplo, na cena final, as luzes vão se apagando lentamente enquanto Ana caminha em direção ao fundo do palco dizendo os nomes das pessoas por quem (ou para quem) esse espetáculo foi feito. Ana — que agora já não fala mais no masculino, remetendo à voz do corpo, e sim, no feminino, colocando em primeiro plano a sua própria voz e, consequente, o seu próprio corpo —, ao invés de “pelos corpos negros que são mortos por políticas de extermínio”, ela disse “exterminados por políticas de extermínio”, e essa repetição é um ruído — porque pobre esteticamente — em comparação a todo texto que veio anteriormente, cuja construção é de uma precisão e de uma poeticidade memoráveis. Isso, claro, é apenas um detalhe. Mas, neste espetáculo, mesmo um detalhe tem o poder carregar sentidos e gerar leituras.

      Para finalizar, em seu Ideias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak afirma que sempre que pudermos contar uma história, estaremos adiando o fim. E sinto que foi isso que fizemos na noite de ontem, no Teatro Hermeto Pascoal; sinto que é isso que estamos fazendo agora, durante esta semana, na Aldeia Arapiraca — estamos produzindo e consumindo arte para adiar o fim. Que assim sigamos.

* Felipe Benicio é poeta, ficcionista e doutorando em Estudos Literários (Ufal). É também membro dos conselhos editoriais da Revista Fantástika 451 (SP) e da revista do Coletivo Volante de Teatro, #Textão (AL) e colaborador do Coletivo Filé de Críticas.


Espetáculo: A Mulher do Fim do Mundo
Cia Casa Circo (AP)
Fotografias: Frederico Ishikawa


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