F.E.M.E._narrativas do que nos contam essas Mulheres



Tessitura Jocianny Carvalho



Estejam os homens vencendo ou perdendo a batalha, oh meu país,
As mulheres entraram em cena e o honrarão. 
Malala Yousafzai¹



Dramaturgia. Do grego, compor um drama. Dizem que nós mulheres somos dramáticas, sim! Somos! Mas também somos produtoras, sonoplastas, diretoras, intérpretes de libras, cantoras, atrizes, espectadoras, fotógrafas, palhaças, escritoras, e talvez te surpreenda saber, mas tudo isso coube num presente chamado F.E.M.E. Um Festival de Mulheres Engraçadas, acontecendo em uma capital muito atrativa turisticamente pela sua bela orla, mas pouco lembrada culturalmente, é por si só um prato cheio “pra dar ruim”, muitos diriam, muitos pensaram. O fato é que deu bom! Vários dramas e narrativas elaboradas por mulheres palhaças, todas elas dramáticas e cômicas na medida que querem ser. Cada espetáculo abarcou plateias muito diversas, crianças, homens e mulheres que não saíram os mesmos, rimos muito, e nem sempre com o peito leve, tinha riso que era de dor, reconhecimento, descontentamento e como cada artista construiu sua escrita particular, dentro da infinitude de ser uma mulher engraçada, ligaram-se a nós de maneira muito perdurável e única.


O que une a todas essas dramaturgias? O riso, a graça e a técnica do Bufão, usada para perverter mas também para fazer rir, que já se modificou e moldou-se com o tempo, mas sempre sendo cômica, irônica e principalmente de uma afronta babilônica a sociedade. E socialmente, enquanto mulheres e artistas, o que temos? O que significamos? O que representamos? São várias as respostas, mas todas as perguntas são facilmente respondidas com: pouco. Bom, essas “fêmeas” nos deram bem mais que pouco, afrontaram com a dominação do sexo oposto, a zombaria aos machismos cotidianos, as palmas diante de discursos feministas, a naturalidade do ser homem conquistada por uma mulher e principalmente, ao direito de diante de todos, ser quem se é. Reparação histórica, né mulher? Todas elas de alguma forma, subverteram, satirizavam e foram bufantes principalmente por estar dentro do coletivo ao qual a sociedade julga como acessório:


A esse coletivo pertencem os negros, os
gays, as mulheres, as prostitutas, os doentes, os
aleijados, os despatriados, os sem-terra, os sem
teto e todos aqueles que são inadequados na sociedade.
Indiferente à sua adversidade, o “bando”
se diverte zombando da hipocrisia e mediocridade
humana. Eles se divertem muito
satirizando as autoridades. Como na sociedade
em que se espelham para debochar, eles são comandados
por um chefe, a quem todos se alegram
em obedecer. Eles zombam até do “inzombável”:
da guerra, da fome do mundo, de
Deus (Lecoq, 1997, p. 35).²


Durante os cinco dias do F.E.M.E., o Filé de Críticas esteve presente em seis espetáculos de mulheres engraçadas de Alagoas e demais regiões do país. Nessa tessitura a composição é feita por duas filezeiras, eu que vos escrevo e Lili, mas coube a mim a tarefa de tecer essa costura dramatúrgica. É inegável a subjetividade envolvida nas escritas do F.E.M.E., e de como é particular a mensagem para cada ser do sexo feminino, como foi importante conhecer cada peculiaridade desses olhares femininos, como enquanto mulher foi enriquecedora a experiência de ver textos ditos em vozes agudas (nem sempre, mas sempre femininas), pra variar. Te convido a ler apenas alguns desses recortes significativos feitos por duas filezeiras críticas: 


Desgovernadas, SIM!




Tessitura_Lili Lucca


A abertura do F.E.M.E aconteceu com o libertário Cabaré das Desgovernadas, como é bom sermos e estarmos desgovernadas e livres, viva a anarquia feminina de ser. De ser mulher e de mostrar como bem quiser. E rir de si mesma. Desgovernadas, descontroladas onze palhaças no palco, solos de si, do seu escárnio, da sua libertação, do seu ridículo. Por suas escolhas e vontades próprias. Todas elas musicadas por Natalhinha Marinho e a Banda das Cabritas. Cenas curtas de riso leve à gargalhadas sem fim, cenas em que a plateia ria e fazia junto. Com mulheres e travestis que tanto são motivos de casquinadas, mostrando que a beleza vai além da imagem. Com indígenas da Amazônia e sua crença poderosa, aos passos do tango russo onde todos dançam improvisando. Caindo levemente na poesia do clown e truques de palhaçaria, desembocando para etiqueta e finesse do absurdo, e então indo parar no inesperado da fome vinda do Grajaú sem perder alegria de viver e a competência de ser mulher e definir tudo. Fomos finalizadas pelo miado da gata que dança, sem é lógico esquecermos de gozo feito no palco pelo livre-arbítrio da mulher e do que ela gosta e quer. Uma noite no palco do teatro Deodoro de coragem e energia tudo muito bem cumprido e concretizado por fêmeas. Que além de nos colocarem no devaneio do riso inesperado, colocaram em cena os homens mostrando a eles que na cena o riso feito pela mulher não julga e condena apenas liberta, ensinando mais uma vez a eles o que é fazer rir. Nessa cena de contemplação de mulheres engraças o que ganhamos foi a liberdade do improviso e historietas que se contam e que se constroem no improviso do teatro e na construção de dramaturgias. Avante Palhaças, que o caminho é árduo mas a força é muita. Assim as vi.





Naturalmente Valdorf
Sobre Valdorf de Aline Marques




Tessitura_Jocianny Carvalho





O que cabe num pote de pepino em conserva? Cabe um garotinho chamado Valdorf e todo seu imenso mundo engenhoso. Ele(A) relembra aqueles fundamentos teatrais básicos, com um cenário quase nulo, não fosse um banco de madeira, traz o necessário e não se perde em nenhum pacote de salgado gigante, pepino gigante, cartaz e tintas. Ele(A) reafirma com simplicidade de que o teatro precisa de um lugar, uma atriz e o público, e ele(A) atesta como essa simplicidade é potente, porque faz emergir tanto sentimento que ficamos com a sensação de sermos nós até então naquele potinho de conserva, e ele(A) que na verdade nos libertou. Na verdade, a verdade é que não ele, e sim ELA merece todo esse nosso enaltecimento, Valdorf é um espetáculo feito por Aline Marques, que o faz com tanta sensibilidade que conquista com pequenos gestos, literalmente quando interage com o intérprete de libras, estranhamente quando diz que não gosta da moça da plateia, arrebatadoramente quando percebemos que sua presença necessita da nossa adulação para existir e te pedimos pra voltar. Valdorf mexe com nossa criança, por isso os estados são tão diversos quando ele(A) grita: fim, alguns levantam com a sensação de saudade, outros melancolia e outros não conseguem definir.


P.S.: Às 07:15 da manhã Valdorf foi deixado na escola, por sua mãe. Presenciamos o fato, Valdorf se comportou muito bem, pediu desculpa a Julia Derma e brincou com o Tio Simão portanto não merece voltar para o pote de conserva.



Cabaré Minimalista
Sobre Mini Cabaré Tanguero de Julieta Zarza



Foto: Amanda Môa

Tessitura_Jocianny Carvalho


Cheiro de nicotina como em todo cabaré. Luz vermelha. Casaco gigante. Pernas e mãos. Atente para as pernas e mãos. Todo o acontecimento gira em torno desses membros tão facilmente esquecidos e triviais no cotidiano. Aquela sensação de plateia circense que tem diante de si algo inesperado, afinal essa é uma sensação recorrente, porque ninguém lê mesmo os releases dos espetáculos. Aquele circo mulher é a grande surpresa, que nos provoca milhares de mini abalos, com suas chicoteadas no ar, a cada vez que convida um dos desavisados a participar. Há um jogo muito interessante de se jogar, o sexo oposto geralmente está compartilhando o espaço, mas são totalmente controlados por ela, o marionete, o dançarino e o aluno, a escolha de entrar e participar sempre vem do seu convite, nada é aleatório. Cada mini atração é encerrada sem muito prolongamento, o ritmo é tango e este é sexual, agressivo, duro e masculino. Ao trazê-lo ao palco, ela uma mulher, seus dedos, suas pernas e seu batom, faz o necessário para fazer rir, por que ela transcende, perverte e nos provoca.




Respeita as mina!

Sobre “Entre Rio e Mar Há Lagoanas” do Coletivo Hetéaçã





Tessitura_Jocianny Carvalho




"Em todas as lágrimas há uma esperança",
Simone Beauvoir.³


Eu começo com Simone por que não sou indiferente e acredito que elas também não sejam. A labuta resume o que vimos diante de nós naquele grande palco ocupado por caixotes de madeira empilhados, um pouco a direita, um pouco a esquerda e bastantes deles no centro, e principalmente, ocupado por mulheres. Por que labuta? Como poderia descrever outro verbo masculino para falar do que vimos naquela noite? Existia uma lida ali, dedicada, esmerada, sensível e poética. A lagoa estava presente, estava em casa. Eu não culpo a intérprete de libras por sua entrega emocionada a cada tradução, aliás, a parabenizo, eu sei que ela também voltou para casa naquela montagem. Entre rio e mar há alagoanas, e elas surgem meninas, adultas e senhoras, e recorrem ao recurso da máscara para isso e algumas pequenas alterações no figurino, que parece de fato acabado de sair da lagoa. Isso é labuta, há essa existência e estão ali para afirmá-la, num texto essencialmente político, necessário e que talvez peque por excesso, mas jamais por falta de discurso. Infelizmente, com toda essa poesia há quem decida olhar apenas para a beleza, ou a ausência dela, ou pior ainda, para o pedaço de carne exposto e é por isso que essa lagoa tem que resistir, mostrar que essa lama não existe sozinha. Sei que vocês entendem quando as mesmas afirmam: “Ele continua, e é por isso que eu sigo…”. O que nos encoraja também a continuar, fortalecer nosso cenário seja lá o assento que ocupamos, porque sabemos o quanto foi duro conquistá-lo, mantê-lo e o tempo todo vigiá-lo. Enquanto a lagoa existir, existirá também a fé. É por isso que nunca será demais relembrar: Respeite o assento moço, respeita as mina.



OPÁ UMA MISSÃO
de Lívia Falcão





Tessitura_Lili Lucca


OPÁ- uma missão, aconteceu na sexta feira no centro cultural Arte Pajuçara, com um lindo cenário e uma sensação de ritual entramos no teatro. Em cena uma atriz, uma palhaça, uma xamã, ela discorria sobre sua trajetória de crenças, contos e histórias, atendia ligações e conversava com todos a fim de tornar tudo um encontro. Suas histórias contadas tinham um tom de palavra que pegava delírio, como ela nos disse. Magia, mistura com poesia e conversa conduzida a todos presentes. Esse espetáculo me trouxe a memória da minha vó, indígena e benzedeira. Que acreditava no poder das palavras e das ervas, no poder da natureza e com seu andar levava a cura pela fé. Opá, em sua estreia no F.E.M.E, fala sobre acessar os nossos, acessar os presentes, colocar em práticas nossos rituais e crenças, voltar a si e sua história e que fazer arte é missão que se constrói juntas, eu por minha vez terminei no palco descalça em dança, pensando em memórias e re-assumindo minha missão sempre que piso no tablado.




CHÁ COMIGO
de Giulia Cooper





Tessitura_Lili Lucca





Chá Comigo, um solo da palhaça que pouco fala e muito faz de forma bucólica e singela aconteceu na Vila dos Pescadores. Crianças sentadas em semicírculo já esperavam para saber o que aconteceria com aquele fogão, utensílios e mesa expostos em sua frente. A nossa anfitriã do Chá uma palhaça de poucas palavras e muito malabarismo em sua cozinha chegou pela plateia, ela limpa, cozinha, toca, canta sempre dividindo o seu fazer com todos presentes. Era uma cozinha circo, onde ela preparava um chá e conquistava as crianças com sua magia e suas breves cifras. Sentíamos-nos com ela em casa preparando uma pequena ceia, todos queríamos sentar e tomar aquele chá. Essa magia do circo, aliada ao teatro, suas charadas genuínas e livres orquestradas pela palhaça e sempre ritmada pelos comentários e risos das crianças, são muitas vezes mais que sentido para a vida, são o impulso para continuar. A arte e a poesia acontecem no encontro, e Chá comigo foi o encontro do riso com a veracidade da criança, que brinca de ser sempre a todo momento, que não nega o acontecimento mais puro da vida: a diversão, e ao rir de si e do outro sem crueldade, revela a arte em implemento eficaz.





Referências:

¹Yousafzai, Malala, 1997 - Eu sou Malala: a história da garota que defendeu o direito à educação e foi baleada pelo Talibão. - 1ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
²Lopes, B. (2005). A blasfêmia, o prazer, o incorreto. Sala Preta, 5, 9-21. https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v5i0p9-21
³Simone de Beauvoir BEAUVOIR, S. A Força da Idade, Nova Fronteira, 2009.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro, Perspectiva; Edição: 3ª (1 de janeiro de 2015).





Fotos_Nivaldo Vasconcelos

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