F.E.M.E. e o riso contra a barbárie


Tessitura _ Bruno Alves

“Respeito muito minhas lágrimas
Mas ainda mais minha risada
Inscrevo, assim, minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada”
Caetano Veloso



Impossível não falar do Festival de Mulheres Engraçadas - F.E.M.E. sem reconhecer sua importância dentro do contexto em que estamos inseridos.

É em um período marcado por um desgoverno que o riso nasce com toda a sua força para enfrentar a barbárie que se instaurou no nosso país nos últimos meses. São cortes de verbas e patrocínio nas ações culturais, perseguição aos artistas, aumento da violência e morte da população (negra em sua maioria), aumento e invisibilidade de casos de agressões e mortes de mulheres vítimas do feminicídio, dentre outras questões que chegam ou não até nós diariamente.

O F.E.M.E  é o que de mais pulsante e renovador surgiu em terras alagoanas nesses últimos cem dias de 2019. E falar isso pode soar apressado, visto que o ano está só começando, mas a realidade mostra o quanto de crueldade e perversidade pôde se instalar no país em tão pouco tempo.

O F.E.M.E aponta caminhos de ação, aliás, de renovar a ação.

Eis a missão que o FEME assumiu desde quando foi gerado no ventre/coração de Wanderlândia Melo, Nathaly Pereira e Elaine Lima.




Ação essa que nos últimos meses pós- eleições presidenciais, já não conseguimos pensar ou enxergar. Ação que nos falta, pois não sabemos para onde ir e o que fazer. O desgoverno nos paralisa. Estamos sempre reagindo a uma ordem estabelecida para nos desestabilizar.

É a ação do riso como posicionamento político e resistência. Faz-nos lembrar que precisamos rir, que não devemos esquecer do riso, que não devemos ceder aos que nos querem tristes e desanimados.

Não é um riso simples que nasce nesse festival. É um riso que vem das mulheres. Protagonistas e mais uma vez detentoras do grito de não as opressões. Não  ao machismo e patriarcado que tenta cada vez mais se levantar. Mais uma vez elas gritam não. Gritam que ele não.

 Luciane Olendzki nos lembra que:
O riso está essencialmente ligado à vida, a vida em toda sua potência e plenitude, em seus aspectos trágicos e cômicos, tristes e alegres, sombrios e luminosos. Ancestralmente e miticamente, o riso é ligado à mulher e à fertilidade. O riso, que aporta o renascimento, a ultrapassagem da morte e do luto para a celebração e a continuidade da vida em sua exuberância e fertilidade, tem a mulher como figura simbólica e mítica. A mulher como portadora e provocadora do riso, que traz a luz, a vida e o eterno jogo de recomeçar.   1



O FEME nasce nesse luto coletivo para nos lembrar a continuidade da vida, o recomeço, a luz e a vida que pode ser transformada. É com o riso que elas, donas da ação, nos fazem revisitar as nossas vidas, as nossas escolhas e o que podemos fazer daqui pra frente.

São as mesmas mulheres que um dia tiveram negadas a sua liberdade de rir e fazer rir que agora assumem o comando.

Desgovernadas, como propõe o título do Cabaré de abertura, donas de si, rindo e fazendo rir das nossas questões mais humanas. Desgovernadas, porque não há governo que as represente e por que jamais cederão ao machismo e patriarcado.

Mulher que faz rir é transgressora. O “fazer graça” nunca caiu bem a figura feminina como nos lembra Luciane ao dizer que:


Ora, somos, ainda, educadas para ser graciosas, não engraçadas.Tampouco incentivadas a fazer rir e “bancar a palhaça” da turma. É necessário se portar direito, como meninas, mocinhas ou mulheres devem se comportar.Fecha as pernas, penteia o cabelo, se arruma, não ri alto, fala baixo, fecha o decote, olha a bragueta, não coça a xereca, mastiga direito, seja mocinha, dança pro titio, não te exibe, põe um saltinho. Bonitas, belas, simpáticas, agradáveis, sociáveis, polidas, sensuais, elegantes, bem-educadas, etiquetadas, lustradas e boas-moças.
A figura da “bela, recatada e do lar” vez ou outra insiste em surgir cada vez que as mulheres se manifestam e se colocam da maneira como querem, sendo protagonistas de suas histórias. A sociedade insiste em querer enquadrar a mulher em padrões de opressão e de inferioridade aos homens.


“Mulher palhaça é coisa fora da norma, do padrão e do esquadro, do que se espera de uma “boa” mulher, com vida e profissão direitas e decentes – ainda hoje é assim.”


Nos lembra Olendzki ao escrever sobre o avanço da palhaçaria feminina no Brasil e no mundo.

A mulher engraçada que nos trouxe o FEME vem para afirmar esse espaço de empoderamento e de afirmação em uma área ainda dominada por homens.

Durante a mesa “Mulher Faz-se Rir” pudemos conhecer um panorama da palhaçaria feminina no Brasil e em outros países. Sentíamos vontade de poder ter tempo para passar uma tarde com cada uma daquelas mulheres que ali estavam. Estiveram presentes e mediadas por Wanderlândia Melo, a homenageada Peró de Andrade (AL), Geni Viegas (RJ), Nara Meneses (PE), Dani Majzoub (SP) e Vanessa Rosa (SP).
De regiões diversas, com contextos diversos, pudemos conhecer as temáticas que cada uma traz consigo. A palhaçaria feminina é um universo amplo e que trata de questões das mais diversas possíveis, como escreve Luciane:

A meu ver, a palhaçaria feminina não se detém em uma questão de gênero, tampouco em assuntos em torno do que se pode caracterizar como sendo “feminino”, de ou sobre “mulher’. Tudo cabe no nariz, no corpo-ser e na arte das palhaças – a vida, a arte, o existir, as realidades e a humanidade.
Foi isso que ficou comprovado durante a conversa e todo o festival. Cada palhaça traz consigo as questões de seu universo. “Tudo cabe no nariz”.

Nesse contexto de diversidade de temas e questões não podemos esquecer de destacar a presença de Dani Majzoub (SP) que relatou seu processo de criação em palhaçaria trazendo questões de aceitação do próprio corpo e a desconstrução através do riso de questões relacionadas a gordofobia. Dani passou por um processo de criação que lhe emociona ao falar, pois foi mexer em questões que lhe acompanharam e acompanham durante toda sua vida.

Vanessa Rosa (SP) é também um forte exemplo que nos provocou bastante, pois possui uma pesquisa encantadora sobre a palhaçaria negra e indígena. Sentimos vontade de conhecer mais sobre a pesquisa e trabalho de Vanessa Rosa, pois o que ela traz consigo é ainda pouco conhecido e discutido dentro desses espaços. Vanessa além de trazer a questão negra e indígena dentro da palhaçaria, ela traz em seu corpo e vida todo o pertencimento e força de sua ancestralidade.

Poder conhecer o panorama da palhaçaria feminina e histórias como a de Dani e de Vanessa foram verdadeiros presentes para a nossa vida.

É observando o crescimento dessa rede de mulheres engraçadas que vemos fluir o empoderamento e o ato de ser feminista por estarem ali ocupando um espaço que é por direito de cada uma delas, refletindo em suas criações questões e tensionamentos das mais variadas origens, pois Stubs escreve que:
(...) uma estética feminista se caracteriza também por um elo indissociável entre arte e vida, entre arte e experiência e entre arte e produção de subjetividade. Elos que reforçam o entendimento de que a arte pode ser tanto um espaço de tensionamento e resistência social e política, quanto um espaço de produção de um outro ethos com a vida.

Enquanto nos últimos dias vemos um humorista famoso condenado por oprimir com suas piadas a minorias sociais e protestar o direito de poder rir do negro, da mulher, do homossexual, do nordestino, e de outras minorias, aqui em palcos alagoanos, vemos mulheres assumirem o comando do riso, trazendo questões das mais distintas para serem colocadas através do humor de uma forma que não nos envergonha ou oprime, pelo contrário, nos liberta.

São dois risos que se apresentam dentro do nosso contexto atual: De um lado Gentilis e afins cobrando o direito de rir do outro, não importando o quanto a pessoa poderá ficar ferida; do outro existem as mulheres engraçadas, donas de si, governadas pelas próprias vontades e ideias, levando com seus corpos, peles, cabelos e histórias de vida questões que revelam uma outra possibilidade de riso: O riso que nos revela como seres humanos, iguais, diferentes e necessários uns para os outros.

O Riso das Mulheres Engraçadas aponta caminhos não somente para o fazer rir, mas também para o como se organizar, como estar junto, como se fortalecer e como estabelecer relações de sororidade.

Ao levarem para as plateias outras mulheres (e homens também) elas fortalecem um público que passa a rir junto, porque se reconhece e se sente representado nas ações ou mesmo por achar em alguma figura ali em cena um lugar de muito absurdo, mas não muito longe das pessoas da nossa realidade.
Eliane Brum escreveu em sua coluna recentemente que:

Precisamos rir. Rir junto com o outro, não rir do desespero do outro. É o perverso que gosta de rir sozinho, é o perverso que goza da dor do outro, como faz Bolsonaro, como riram os soldados que deram 80 tiros no carro da família que ia para um chá de bebê. O deles não é riso, é esgar. Já o riso junto com o outro tem uma enorme potência.

O FEME em sua primeira edição nos mostrou essa potência, nos ensinou a rir junto com todas as mulheres e a reconhecer que esse riso nos aproxima e fortalece.



Durante todas as noites que estive presente aos espetáculos saia sempre com um sentimento de renovação. Desde a virada do ano sentia-me paralisado e os espetáculos e ações de formação do FEME me fizeram voltar a rir e entender que é preciso muito riso para “estar atento e forte”, afinal, “não temos tempo de temer a morte”.

Todas as noites ao final de cada sessão eu pensava “Seria bom ter o FEME toda semana”, mas tirando a vontade um tanto longa para se ter um festival o ano inteiro, a frase foi para ilustrar o quanto minha alma se sentia renovada e não somente por conta dos espetáculos e ações que o festival proporcionou. Era por conta de todo o acontecimento. Tínhamos, finalmente em Alagoas, um Festival feito por mulheres, mulheres engraçadas, desgovernadas e donas de toda a graça.

É preciso muito riso. É preciso que as mulheres engraçadas ocupem todos os espaços. E o F.E.M.E. veio para trazer a tona o que já existe, o que sempre existiu, mas que há muito tempo é negado e reprimido. 

Outro dia conversando com uma menina de 9 anos ela dizia que um dia sonhava em ser palhaça, os que estavam ao redor logo riram achando absurdo, quando lhe contei da existência do F.E.M.E. seus olhos brilharam por saber que é possível sim, ser palhaça! Que receberia em sua cidade pela primeira vez um encontro com mulheres palhaças de todo o Brasil.

O F.E.M.E. fortaleceu esse espaço, mostrou a existência e resistência das mulheres engraçadas e como em um mapeamento sensível e amoroso foi em busca das mulheres que tanto nos fazem rir por aqui.

Trouxe a tona e libertou risos diversos.

Essas mulheres e essas meninas, que desde cedo já sabem transgredir com o riso, precisam cada vez mais se empoderar e apropriar desse ato político e de resistência. É preciso que elas estejam nas escolas, em seus trabalhos formais, em suas casas, em suas ruas, na fila da padaria, no ponto de ônibus… Que mostrem cada vez mais a sua graça, que mostrem que não é engraçado a desgraça do outro e que a gente junto possa somar ao coro das risadas que libertam e vencem toda opressão.

Afinal, Eliane nos pede:


Vamos rir juntos dos perversos que nos governam. Vamos responder ao seu ódio com riso. Vamos responder à tentativa de controle dos nossos corpos exercendo a autonomia com os nossos corpos. Vamos libertar as palavras fazendo poesia. Como escrevi tantas vezes aqui: vamos rir por desaforo. E amar livremente.

O FEME foi e é esse primeiro grande passo de reconstrução de um tempo. Um tempo de riso, um tempo de força, um tempo onde as mesmas mulheres que um dia gritaram #elenão, permanecem mais fortes, somando coros, acolhendo a todos que queiram explodir de amor, de sonho e riso.


Referências:


OLENDZKI. Luciane. T.P.M. (tantas palhaças mulheres) em necessárias alterações do humor na palhaçaria. Para a Revista #Textão nº6. Disponível em:http://coletivovolante.blogspot.com/2018/05/revista-textao-n-6.html

STUBS. Roberta. Pensando uma estética feminista na arte contemporânea: diálogos entre a história e a crítica da arte com o feminismo.Rev. Estud. Fem. vol.26 no.1 Florianópolis  2018  Epub Jan 15, 2018.

BRUM. Eliane.  Cem dias sob o domínio dos perversos. Disponivel em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/10/opinion/1554907780_837463.html

Fotos _ Benita Rodrigues



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