CRÍTICA: "Se eu fosse Iracema": Sentir tem que ser ação

Tessitura _ Lili Lucca

Se eu fosse Iracema, espetáculo do 1COMUM Coletivo do Rio de Janeiro, passou por Maceió, na mostra Aldeia Sesc Palco Giratório, propõe um olhar sobre o universo indígena brasileiro, transitando entre a tradição e a sua situação atual, e questiona: qual a real possibilidade de convivência entre as diferenças? 



Como um raio de sol que surge, a luz corta a cena e um olhar. A imagem de um ver que compõem a imensa escuridão, dali somos apreendidos pela atriz Adassa Martins. Sobre um tronco de árvore, com botas e saia de “plástico” e um colar foice de metal/aço a cena é desenhada, e ela se reconstrói durante a encenação juntamente com a iluminação, desenvolvendo espaços e trazendo contornos para todo o espetáculo. 

Espetáculo esse que em se tratando de teatro suas formas de pesquisa e de execução, foi feito com muita responsabilidade e habilidade. Percebe-se ali um trabalho intenso e harmônico dos que estão e estavam nessa pesquisa de criação e feitura. Nesse fazer a luz torna-se não apenas um elemento do teatro como constitui as imagens desse, todas as configurações de luz feitas no decorrer da cena acessaram não somente nossos sentidos como nos reportaram para lugares e nos rendiam perante as ações.

“A luz intervém no espetáculo ela não é simplesmente decorativa, mas participa da produção de sentido do espetáculo.” Pavis, Patrice¹

A luz da sentidos, ela age como um elemento vivo, junto a performance da atriz em cena. Espetáculo esse de uma atriz só, narrando fatos, contando histórias, apresentando personagens, encarando o público. De peito aberto e livre, gerando alegorias indígenas, do povo originário dessa terra. Uma atriz que usa seu corpo instrumento para o cumprimento da ação. Ela compõe a cena com concretude. 

“A verdadeira composição é aquela que imprime inexoravelmente uma experiência, mas não expõem as razões de sua escolha. Deixe somente rastros…” Bonfitto, Matteo ²


E ela deixa não só rastros, traz para cada um ali presente no que diz pela dramaturgia o ato de refletir sobre você, sua história e seu lugar, o Brasil e seu povo. 



“Se eu fosse Iracema”, Iracema é uma história de amor inventada. O amor entre uma colonizada e um colonizador. Quem seria você se fosse Iracema? Aquela que na literatura é a que amou seu colonizador. Seria impossível enumerar aqui nessa tessitura todas as pautas lançadas pela dramaturgia do espetáculo e sua relevância e urgência, na atual história desse país. Pautas ditas como do povo nativo, do povo Indígena. Pautas que são nossas. 

A busca de ato pela consciência, é o que me grita a dramaturgia, ao relatar genocídio, depredação, violência, colonização, e EXPLORAÇÃO de um lugar em todos seus espaços com vida. Apagamento da história desse país, de seu povo, história nunca contada. História dos povos INDÍGENAS.  A todo instante, somos lembrados que a exploração acontece há 518 anos, todo dia. Assim é contada a história, a história que eles nos contam. A Terra de Vera Cruz, existe a partir do que nos conta o homem branco, aquele que está no poder da colônia que vem sendo oprimida e dizimada a cada dia. Por isso um ato de consciência a quem ouviu aquelas falas, a quem se atravessou, a quem estava no teatro e sentiu, será que realmente nos importamos? 

Pessoas dormem nas ruas, pessoas comem do lixo. Pessoas que dormem na rua são queimadas vivas. 100 famílias expulsas de suas casas. 80 tiros no carro de uma família. Pessoas são decapitadas. Pessoas perdem o seu direito por ser. Gentes (gentes mesmo ou gentis?) perdem o direito por serem primitivos. Por ser primeiro dessa terra. 

“Que é o primeiro a existir; no momento inicial ou na origem de; original: a condição primitiva do ser humano; o estado primitivo do ouro.”³

Um ato de consciência, por essa consciência ser uma ação. Uma sociedade de consumo, uma sociedade que produz, um capital que consome tudo. Sociedade produz e cultiva para gerar capital, cultivo de misérias humanas, que acabarão em extinção total. Extinção que começa por um povo primitivo e originário e determina o nosso próprio fim. Fim enquanto pessoas, fim de todas as gentes deste país. Fim de gente que sente. É como se num ato de decisão o ESTADO e a JUSTIÇA daqueles homens brancos do poder, determinam que sua casa não é sua, que sua existência e modo de vida não servem para modernidade. Gente como você que lê esse texto, você e seu grupo. Você e a gentes do seu bairro. Você e as pessoas de toda sua cidade. Você e as gentes de sua família. É decisão, do estado que você saia e deixe de existir para que possamos produzir e crescer, produzir e evoluir. Produzir para ter progresso. Você e suas gentes sair para termos ordem. O ato de consciência tem que ser sentido agora, ou chegará ao ponto que não sentiremos mais. Sentir tem que ser ação. Se não assinaremos por um fim, o verdadeiro fim de nossa história, aquela nunca foi contada. Em breve, apagada: 

”Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós.  
De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs, avós, bisavôs e bisavós, ali estão os cemitérios de todos nossos antepassados.
Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui.

Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos.
Sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo em ritmo acelerado. Sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo e indígena histórico, decidimos meramente em sermos mortos coletivamente aqui. Não temos outra opção esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS. “  




Quantas pessoas tem na sua casa? No seu prédio? Vocês estão prontos para retirar-se do seu lugar? O trecho acima é da carta dos Guarani-Kaiowá em outubro de 2012, onde esses solicitavam o direito à morte, já que os homens brancos que estão no poder lhes negam o direito à vida, cerca de 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças. Um povo inteiro. Uma comunidade inteira, um condomínio inteiro, uma rua perto da sua casa. Se não nos importarmos. Se não agirmos na ação consciente agora. Qual a real possibilidade de sobrevivência entre as diferenças? Entre os diferentes povos que formam essa nação?

“Disse aos homens brancos que, se algum dia eles herdassem aquela terra, que a pisassem suavemente, porque se não aprenderem a respeitar vão acumular detritos sobre detritos, até que vão acordar enterrados no próprio vômito.” Ailton Krenak  

Referências:
1- Patrice Pavis- Dicionário de Teatro
2- Bonfitto,Matteo- O Ator compositor
3-Dicionário Google- Palavra_Primitivo.
4--Carta dos Gurani Kaiowá á Justiça do Brasil -https://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/carta_pyelitokue.pdf
5- Entrevista do Expresso- https://leitor.expresso.pt/diario/quinta-1303/html/caderno1/temas-principais/03_entrevista-indio-brasileiro--christiana-

*Lili Lucca, é atriz, encenadora e crítica no Coletivo @FilédeCríticas.

Se eu fosse Iracema

// Ficha técnica //
Intérprete: Adassa Martins
Dramaturgia: Fernando Marques
Direção, iluminação e cenografia: Fernando Nicolau
Figurino e caracterização: Luiza Fardin
Trilha sonora original e desenho de som: João Schmid
Preparação vocal: Ilessi.
Direção de arte e projeto gráfico da comunicação: Fernando Nicolau
Escultura do busto: Bruno Dante
Caracterização das fotos: Luiza Fardin
Fotografia: Imatra
Produção executiva: Clarissa Menezes
Idealização: Fernando Nicolau e Fernando Marques
Realização e produção: 1COMUM Coletivo

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