Crítica: Esperando o Grilo



Tessitura_Jocianny Carvalho

Começaremos pelo fim, já que assistimos no dia quatro de setembro do ano de dois mil e dezenove a uma livre adaptação de Esperando Godot de Samuel Beckett, da Cooperativa Alagoense de Teatro. Precisamos dar espaço aqui a quem merece o espaço: Otávio Cabral, que neste dia foi homenageado por seus 55 anos de carreira no teatro alagoano, dos tablados imaginamos que durante esse período ele sempre recebeu aplausos ao fim de cada espetáculo, mas seu trabalho na Universidade Federal de Alagoas tão importante quanto, é que nos causa ainda mais admiração, falo por todos do Filé de Críticas quando digo que ele nos apresentou os melhores clássicos, nos ajudou a construir um olhar crítico e todos nós sentimos um vazio imenso das suas aulas de literatura dramática, mas essa placa de “grande professor” felizmente ou infelizmente é imaterial, mas carregamos ela todos os dias que entramos em uma sala de aula. Por isso e por muito mais, agradecemos e nos alegramos de sua presença na cena teatral de Alagoas. 

Esperando Godot da Cooperativa Alagoense de Teatro contém doses protuberantes de ironia, o cenário aproxima-se das tradicionais montagens de Beckett, uma árvore muito poética em ruínas e dois bancos de madeira ao centro da cena. O figurino também é invernal e na face a maquiagem envelhece a todos. Uma luz que em alguns momentos chega a ser etérea na sua simplicidade. Certamente não se pode começar a falar dessa montagem sem falar que a dramaturgia de Samuel Beckett pertence ao Teatro do Absurdo, e a livre adaptação da cooperativa mantém sua característica ilógica e atemporal com muita fineza.


O Teatro do Absurdo propôs um teatro despido de finalidade, ele não conta uma fábula com um enredo bem definido em seu início, meio e fim e também não tem personagens bem definidos que se apresentam claramente e nos dão indicativos de suas personalidades para assim traçarmos uma identidade. Tudo é posto em dúvida. Martin Esslin, disserta sobre as características do Teatro do Absurdo em seu livro The Theatre of Absurd, quando diz:

Inevitavelmente, peças escritas dentro dessa nova concepção, se julgadas pelos critérios de outra estrutura, forçosamente serão consideradas como falsas e vazias de sentido. Se uma boa peça tem enredo bem construído, estas com efeito não possuem boa história. Se o critério de uma boa peça é a sutileza dos personagens e das motivações, estas estão fora de classificação, pois em geral apresentam ao público figuras humanas mecanizadas (...) Se uma boa peça tem que ter um tema completo, satisfatoriamente explanado que é claramente exposto e resolvido, estas peças serão condenáveis, pois não possuem um princípio nem um fim demarcado.


Dois personagens estão sempre em cena, Vladimir e Estragon, ou somente Didi e Gogo, contracenando com a espera. Aguardando Godot eles tem diálogos maçantes e necessários, de uma veracidade quase impiedosa, de uma banalidade quase infantil, de uma irracionalidade quase racional. A expectativa do surgimento de Godot faz com que eles estejam sempre vigilantes, e a chegada de Pozzo e Lucky engrossam mais um denso acúmulo de diálogos que são coerentemente dolorosos, fundamentais e quotidianos:

Estragon -Nós perdemos o nosso direito.
Vladimir - Não. Nós renunciamos à ele.
Estragon - Nas urnas...


As palavras com certeza eram justas e estavam no lugar preciso, camadas e camadas e enxurradas de fatos de Lucky, faziam até o espectador mais frio se remexer na cadeira ou rir denervoso. E havia também um grilo cantando insistentemente, que em algumas lendas é sinal de boa sorte e prosperidade, mas em outras de um sinal de praga, castigo. Até mesmo o animal ali de forma aleatória, nos põe em dúvida. Por isso tão facilmente a humanidade pode ser enganada por quem afirma e reafirma com veemência qualquer discurso. Afinal a certeza sempre foi superestimada, tire a morte como prova. 

Sobre a encenação o uso do espaço aglomerado causou certo desconforto, em algumas cenas alguns personagens ficam anulados. E a escolha do objeto esférico e reluzente que aqui chamaremos de lua, fica inquietante a seguinte questão: por que pôr um fim tão claro a uma busca incessante por um diálogo labiríntico? 


Um texto estreado em 1953, livremente adaptado em Maceió no século XXI, com ares de esquerdista? Panfletário? Pozzo ou Bozzo? Bozzo? Mito? Deixem de mi mi mi, o Teatro do absurdo está apresentando os fatos, como já disse Pozzo: não se deve ser gentil com essa gente, eles não aguentam. A Cooperativa Alagoense de Teatro trouxe situações, cabe a nós digeri-las enquanto esperamos, Godot, Deus, o grilo, o mito, o dinheiro, o colapso da natureza, a lua, marte, o apocalipse ou algo assim.


Referências:
BECKETT, Samuel. Esperando Godot;
ESSLIN, Martin. The Theatre Of Absurd;


Ficha técnica:
Texto: Livre adaptação da obra de Samuel Beckett
Dramaturgia: Cooperativa Alagoense de Teatro
Direção: David Farias
Elenco: Abides Oliveira, Lara Couto, Silvinho Leal e Otávio Cabral
Desenho de luz: Henrique Oliveira
Direção de arte: Alex Cerqueira
Preparação Vocal: Geová Amorim
Preparação Vocal para canto: Myrna Araújo
Preparação Corporal: Reginaldo Oliveira
Arranjos sonoros: Miran Abs


Fotos: João Erisson

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