Aldeia Arapiraca 2019: Tarja Preta da Cia do Chapéu

Tessitura_Bruno Alves

I - A escuridão


   Poderia ser sobre o caminhar na escuridão, ou sobre o desconhecer-se e reconhecer-se nas cintilações da vida, ou mesmo sobre a penumbra que paira vez ou outra na existência humana. Poderia ser sobre ela e sobre nós também. Poderia.



   Em seu percurso de criação do espetáculo Tarja Preta a Cia do Chapéu compartilha conosco inquietações que atravessam o tempo dentro da trajetória do grupo, pois essas questões começam a nascer em 2010 e  agora em 2019 continuamos a receber lampejos de uma obra em continuo amadurecimento. Então, esse espetáculo poderia ser também sobre não desistir de si ou do teatro e acreditar na força que essas paredes possuem quando se quebram e nos colocam em cena, revelando-nos e fazendo crescer um clarão que nos indica e provoca a abertura de muitos caminhos.

   Poderia ser sobre depressão, bipolaridade, ansiedade e transtornos mentais inúmeros. Poderia ser e é, mas também é forte por não ser, ou por não querer definir-se em uma situação específica ou numa estrutura narrativa, mas por revelar e deixar que nos revelemos diante daquilo que vemos.

   Todos ali presentes, naquele teatro, naquela casa escura, naquele quarto solitário, somos colocados diante do silêncio, somos obrigados a silenciar verdadeiramente, porque silêncio é coisa que desconhecemos e talvez ele se apresente a nós em algumas vezes nas madrugadas insones, em noites que se repetem e nunca parecem ter fim.

   Caminhamos de um lado para o outro, tudo se torna pequeno, o espaço é infinito quando o tempo parece não passar e a luz, a luz nos acompanha mesmo no meio da escuridão. Ela nos desperta, nos mostra que estamos vivos e quebra a escuridão toda vez que a invocamos ou que sem perceber ela atravessa pelas arestas do lugar em que vivemos.

II - O lugar em que vivemos

   O corpo, essa casa que nos acompanha nessa nossa existência na terra, essa casa em constante movimento e transformações, que às vezes para, mas que em outros momentos rebela-se nos levando a movimentos que não conhecíamos.

   Somos um corpo olhando para o teto. Seguindo os batimentos de um relógio que segue em descompasso com o coração. Não temos tempo, mas agora temos todo o tempo do mundo. Um tempo que não queríamos, um silêncio que não procuramos.

   Comida é alimento para o corpo, como a ação é alimento para o teatro, mas se não comemos o alimento ou se esse corpo rejeita, viveremos um duelo de não comunicação entre o que saí e o que entra dentro de nós.

   Somos muitos e carregamos duplos, personas que nos seguem e só se revelam no nosso cotidiano, mas é a nossa sombra que nos apavora.

III - O corpo outra vez...


   Tarja Preta provoca uma sensação terrível dentro de nós, mas há beleza no terrível. Como há beleza nas próprias contradições da vida.

   Construímos ao assistir o espetáculo uma outra obra dentro de nós. Nossos corpos, nossos arquivos humanos saltam querendo encontrar sentidos, criar narrativas e lincar as imagens que vemos com as nossas experiências mais profundas.

   Joelle Malta é um corpo inquieto, em movimento contínuo de buscar por encontros e autoconhecimento. Isso se revela quando vemos a trajetória desse espetáculo e vemos saltar de maneira inquietante de movimentos coreografados para movimentos do descontrole, do corpo em risco, do corpo doente. Um corpo que vai de movimentos simples e repetitivos ao corpo em processo de adoecimento e descontrole. Percebemos a sua investigação desses estados e vemos como tem crescido esse trabalho da atriz nesse estudo e percepção de si mesma para a construção de outros estados corpóreos. 

   O que vimos ontem, no Teatro Hermeto Pascoal, era um corpo carregado de histórias e querendo expressá-la em cada impulso, em cada pausa, batida, repetição, descontrole e desequilíbrio. É um corpo afetado pelos encontros e principalmente, como ela mesma definiu, um corpo “que é provocado pela atuação da própria luz em cena”.

Citando Deleuze, Ferracini nos lembra que: 

“Não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que pode ele, isto é, quais são seus afetos, como eles podem ou não compor-se com outros afetos, com os afetos de um outro corpo, seja para destruí-lo ou para ser destruído por ele, seja para trocar com esse outro corpo ações e paixões, seja para compor com ele um corpo mais potente”1
   E é esse corpo potente que tem se revelado nesse processo de investigação sobre si mesma que Joelle faz, e também uma nova potência surge a partir do momento em que escolheram trazer a cena a luz como um personagem cada vez mais presente e parte dessa narrativa.

   Agora Laís Lira não se esconde mais, mas torna-se esse corpo presente, essa sombra ao redor daquela cena, esse duplo, essa persona presente que pode ser um estado físico ou mesmo imaterial. O encontro de Joelle e Laís cria para Tarja Preta um corpo mais potente que provoca em Joelle a experiência de mergulhar cada vez mais em seu próprio material corporal para que no encontro e “confronto” com Laís descubram um novo estado.

   É bonito vê-las juntas. É bonito ver como mesmo em estados cênicos diferentes elas duas se complementam, se espelham e se reconstroem. Dá vontade de ver mais esses momentos de encontro das duas e principalmente de vê-las em processo de espelhamento e confronto. Quando esses momentos acontecem, ou mesmo os momentos mais sutis de encontro das duas, vemos grandes momentos de potência para o espetáculo.

IV - A luz outra vez


   Se no princípio da história do teatro a luz do sol serviu durante muito tempo para contar histórias e acompanhar as narrativas, o uso de outros elementos como o fogo, a vela e mais recentemente a eletricidade, causaram grandes revoluções no modo de fazer artes cênicas.

   Poderíamos questionar mais uma vez as dificuldades que encontramos na nossa cena de poder ter acesso a um equipamento de iluminação e o quanto isso nos tem custado nos últimos anos o não surgimento de profissionais dedicados a investigação da dramaturgia da luz, impedindo muitas vezes que nossos espetáculos tenham um crescimento e investigação significativas nesse campo, porém em Tarja Preta vemos nascer uma investigação de luz através de elementos não convencionais como lanternas e mesmo a vela.

   Esse processo de investigação desses elementos foi ao longo dos anos criando uma potência narrativa muito forte em Tarja Preta. Se antes a luz já era uma personagem dessa narrativa, pois ela enquadrava as cenas, narrava histórias e direcionava o nosso olhar. Hoje ela se tornou mais presente, compondo as cenas com mais ousadia e sendo parte fundamental dessa narrativa.

   Agora vemos Laís entrar em cena para iluminar Joelle e já não sabemos a distância da presença da luz nessa cena, pois ela é quem cria a espacialidade, que configura as imagens a serem exibida, como em fotografias cinematográficas. Os movimentos da atriz são desenhados por essa luz. São projetados pelo espaço. Parece-nos agora que temos nesse espetáculo três personagens, sendo elas: Joelle, Laís e a Iluminação. Um encontro onde ambas se fundem em muitos momentos do espetáculo.

   Essa mesma luz que cria o espaço, é aquela que redesenha o tempo em sua inconstância e impermanência, pois:

“ o tempo também não é só o “tempo dramático” em que ocorre a ação, por exemplo, entre a chegada e a partida de alguém, mas o tempo que descreve esse intervalo entre a chegada e partida. Não são momentos que saltam de um ponto a outro, mas uma duração, um fluxo temporal que já não pertence ao plano da narrativa”. 2
   Esse tempo, esse fluxo, esse intervalo entre o que poderia ser, o que é e o que se revela nesses intervalos, são potencializados pela luz que não somente marca o tempo entre uma cena e outra, mas que marca o não-tempo que existe nos intervalos dos acontecimentos.

V - O resto é silêncio


   Percorremos uma saga atemporal de uma mulher caminhando na escuridão, desenhando o espaço com a luz e narrando com seu corpo histórias que nos impulsionam a criação de outras tantas dentro da gente.

   Somos atravessados pelos afetos, pelos impactos que a narrativa daquelas imagens constrói dentro de nós.

   Uma pessoa da psicologia certamente iria descrever sobre os mais profundos aspectos de algum transtorno mental que ali identificou.

   Alguém com depressão iria ver-se movimentando-se naquele espaço.

   Um padre talvez narrasse sobre como Deus poderia ajudar aquela mulher ali naquela situação.

   Cada pessoa, de sua poltrona saberia conduzir uma narrativa muito íntima e própria da experiência que assistimos, mas é curioso como somos aprisionados nessa história e como não sabemos como sair dela.

   A peça acaba e vivencio essa sensação pela segunda vez. Não sabemos o que fazer, não conseguimos aplaudir. Será que esse final desperta uma dúvida na plateia e surge como algo inacabado na narrativa? Será que a plateia por algum momento não sabe que acabou ou espera que a qualquer momento aquela história continue?

   Pode ser. Pode não ser.

   Pode ser que algumas pessoas não saibam que ali era o fim, mas pode ser também que outras simplesmente paralisem diante da imagem congelada e fiquem no teatro sozinhas, diante de um relógio, sem saber o que fazer com aquilo que viveram, sem conseguir inclusive aplaudir, sem saber como levantar daquela poltrona e sair pela porta do teatro e voltarem para as suas vidas. 

   Pode ser. Pode não ser.

   Eu faço parte desse segundo grupo de pessoas.

Citações:
1 – Ferracine, Renato. Ensaios de Atuação. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2013.
2 – Camargo, Roberto Gill. Luz e cena: impactos e trocas. Revista Sala Preta. Vol. 15. Nº 2. 2015
Fotografias de Frederico Ishikawa









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