Aldeia Arapiraca 2019: Dois Perdidos Numa Noite Suja - Cia de Teatro Fulô de Mandacaru

A noite em que nos perdemos em Arapiraca


 Tessitura_Bruno Alves

"Um quarto de hospedaria de última categoria, onde se veem duas camas bem velhas, caixotes improvisando cadeiras, roupas espalhadas etc.". 1

É assim que nos descreve o espaço em que acontece a história, a rubrica escrita por Plínio Marcos para o texto Dois Perdidos Numa Noite Suja, escrito em 1966 e apresentado pela primeira vez no mesmo ano no Bar Ponto de Encontro, na cidade de São Paulo. A obra foi ainda adaptada para o cinema em 1970 e, mais recentemente, em 2002.



Em Dois Perdidos Numa Noite Suja temos, dividindo o mesmo espaço de um quarto de hospedaria, Tonho e Paco. O texto de Plínio Marcos é composto de dois atos, sendo o primeiro ato por cinco quadros e o segundo por um quadro único. Nas noites em que se segue a narrativa vemos se desenvolver os conflitos e questões que envolvem os personagens, ambos em situações de extrema pobreza. O grande dilema de Tonho é não possuir um par de sapatos e, por isso, queixa-se da vida e das oportunidades de trabalho que não lhe surgem; em contrapartida, seu parceiro de quarto, Paco, tem um par de sapatos novo que destoa com o restante de sua roupa. Tonho vive momentos de questionar de onde o seu parceiro teria roubado aqueles sapatos, já que ele não teria dinheiro para comprá-los. Paco, que na primeira cena do texto toca uma gaita, um dia trabalhou como flautista, mas teve sua flauta roubada e vive ao longo da narrativa a provocar Tonho em muitos aspectos, inclusive, chamando-o de homossexual.

O ápice do texto se dará quando, no decorrer da história, Tonho, que conseguiu um revólver para vender e obter algum dinheiro com ele, resolve armar um assalto junto com seu parceiro, para que assim, assaltando especificamente um casal de namorados na noite, eles possam roubar seus pertences, consigam um par de sapatos para Tonho e  dinheiro para comprar outra flauta para Paco. Ao final, depois da realização do assalto, somos surpreendidos pelos embates dos dois personagens e vemos Tonho atirar e matar Paco, roubar seus sapatos e seguir sentindo um prazer louco em ter matado e se tornado uma pessoa perigosa.

A Cia de Teatro Fulô de Mandacaru, residente e atuante na cidade que nos recebe nessa Aldeia SESC 2019, apresentou na noite do dia 17 de setembro, no Teatro Hermeto Pascoal, a sua versão de Dois Perdidos Numa Noite Suja. Tendo como diretor Ítalo Souza e no elenco Henrique Avlis (Paco) e Denis Sylva (Tonho).

   Somos encontrados na porta do teatro por Henrique Avlis (Paco) que, tocando sua gaita, nos leva até o espaço cênico, onde aconteceria o desenrolar da história. Adentramos o teatro e visualizamos uma cenografia correspondente a rubrica do texto de Plínio Marcos. Acomodamo-nos e vemos acontecer o desenrolar de toda a história.

Temos em cena dois atores com atuações muito potentes e viscerais, uma iluminação bem elaborada que constrói em nossa frente imagens bastante interessantes, com quadros e cenas bem marcados com referências realistas e cinematográficas.

Não há dúvida de que existe muita potência criadora dentro do espetáculo. A Cia Fulô de Mandacaru aposta no realismo, vai beber nas referências do cinema, seja na construção dos personagens, ou mesmo na marcação de cenas para construir diante de nós um espetáculo que, em sua estrutura, é bem executado.




    É observável que o grupo peca pelo excesso de querer mostrar e “causar impacto na plateia”, como falou o diretor Ítalo Souza, e talvez pela falta de profundidade e maturidade das escolhas estéticas. O que não quer dizer que eles não tenham referências, porque vimos que têm, mas a busca estética beirando a inspiração na linguagem cinematográfica muitas vezes passa a sensação de querer retratar um realismo que somente o cinema e seus recursos tecnológicos são capazes de fazer com precisão e mais possibilidades. É visualmente bonito e interessante os quadros de imagens que constroem. Parece-nos, em certo ponto, que foram beber nas referências, mas de alguma maneira ainda parece que precisam extrapolá-las, reconfigurá-las e transformá-las em outra coisa e em um lugar mais particular do próprio grupo.

 Quando essa busca pela particularidade do grupo e suas escolhas cênicas acontecem, como, por exemplo, quando vemos a inserção de termos usados em nosso cotidiano no texto de Plínio Marcos, vemos aí uma tentativa de um processo antropofágico que é bastante interessante por aproximar de nós um texto da década de sessenta (com questões atuais, é claro!) e tirar dele algumas gírias especificamente paulistas.

Esse processo de investigação e transformação do texto ainda não se completou e mostra que eles possuem grandes possibilidades de amadurecer a obra que construíram, embora haja tentativas de releitura da obra que, naquela noite, se apresentaram de formas muito contraditórias.

Nem sempre o que desejamos mostrar corresponde à forma de recepção das pessoas, o que poderá causar embates por mexer em lugares da singularidade de cada espectador. Dois exemplos disso acontecem quando o personagem Paco resolveu debochar e xingar Tonho de homossexual. Esse discurso, escrito por Plínio Marcos, retrata de forma crua e sem filtros o que pensam muitas pessoas sobre ser homossexual, colocando a imagem do gay como uma figura inferiorizada e pejorativa. Sergio Manoel Rodrigues, citando Oswaldo Mendes, explica que


"essas personagens marginalizadas incomodam o público não porque suas falas são carregadas de palavras de baixo nível, mas porque falam o que sentem e o que pensam  a respeito de suas necessidades e condições de vida."2
É interessante observar que a reflexão do autor a respeito da escrita de Plínio Marcos revela também que expor ao público o que sente e o que pensa pode se tornar um dilema em 2019, porque, na polarização em que vivemos, vimos crescer um discurso pelo direito de oprimir, pelo politicamente incorreto. Certamente, essa não era a intenção de Plínio Marcos ao trazer diálogos tão fortes e de cunho homofóbico, mas hoje, ao analisarmos a conjuntura do tempo em que vivemos, temos que ter muito cuidado para não fortalecer discursos de pessoas que, assim como o personagem, acreditam naquilo que foi dito. Durante o debate foi externalizado inquietações na plateia que se sentiu constrangida e ofendida com a reprodução daqueles diálogos, mas daí poderíamos pensar que o texto não foi escrito pelo grupo e que se trata de uma obra muito importante para a dramaturgia brasileira. Obviamente, o grupo não é responsável pelas palavras escritas por Plínio Marcos, mas ao escolher falá-las, eles tornam-se responsáveis pelo discurso e escolhas estéticas que assumem como seus. E o que fazer para atualizar essa narrativa?
...

   Não podemos esquecer que o grupo é responsável pelas escolhas que fazem. Uma das escolhas mais emblemáticas da noite, e aí percebemos que houve uma busca por criação de cenas, está na inserção de uma cena de estupro que não existe no texto original de Plínio Marcos. Da passagem do primeiro ato para o segundo, no texto original, não existe indicação de criação de cena de assalto. Os dois personagens aparecem no segundo ato e o assalto aconteceu sem que tenhamos a construção dessa imagem, vemos apenas o desenrolar da conversa após o assalto e sabemos o que aconteceu através do diálogo dos personagens. Ficamos sabendo que Paco bateu com um pau na cabeça do namorado da moça, mas não há referência ou citação que ele a estuprou. A Cia Teatral Fulô de Mandacaru optou por criar a cena do assalto em off, fora da nossa vista e, enquanto ouvíamos o assalto acontecendo por trás das coxias, o palco era tomado por uma luz vermelha. Uma imagem bastante interessante não fosse a "cena surpresa" que aconteceu diante de nossos olhos, quando uma mulher foi estuprada de forma bastante realista por Paco.

É óbvio que o grupo tem a liberdade de criar e fazer releituras da obra, mas é preciso ser responsável por essas escolhas. Principalmente quando essas envolvem questões tão profundas nas vidas das mulheres. Uma atriz que não esperávamos, cuja personagem não conhecemos e que entra na narrativa para fazer uma cena de estupro causa certamente um impacto muito grande na receptividade do público e divide opiniões entre os que acham necessário aquela exposição e as que se sentem agredidas de alguma maneira com aquela cena. É preciso compreender que tudo que se coloca em cena traz uma informação. É preciso se perguntar também por que motivo foi necessário dar esse destaque à cena de estupro, quando a cena do assalto foi construída de uma outra forma, inclusive com potência teatral. Ao colocar uma atriz, e, como salientado pelo público presente, uma atriz negra, para ser estuprada em cena, eles não só colocam mais uma mulher, colocam também os dados das pesquisas que apontam que as mulheres negras são em sua maioria as maiores vítimas de estupros no Brasil.

   Se, de alguma maneira, eles desejam abordar a temática do estupro dentro da obra, podem encontrar formas e metáforas que apresentem não somente o problema, mas que apontem caminhos de possibilidades narrativas, além daquilo que vemos na TV e no cinema. É claro que o teatro não conseguirá responder ou encontrar as soluções para os problemas humanos, mas, ao questionar esses problemas, ao expor de maneira coerente e articulada, transformando através dos símbolos e metáforas, podemos, sim, apontar caminhos e talvez não respostas, mas novas perguntas. Para Pavis, metáfora quer dizer:

"utilização icônica do símbolo: determinada cor ou determinada música remete a esta ou àquela atmosfera; está ligada à condensação, aos vetores acumuladores e embreadores".3
São as metáforas que nos possibilitam recriar narrativas, ampliar as possibilidades de leituras, "recriar" a linguagem teatral e ampliar as possibilidades de diálogo com o público. Talvez se o grupo mergulhasse na criação de outras metáforas para ampliar a narrativa de seu espetáculo, poderíamos ver, com outros olhares e leituras, cenas que nos incomodariam e causariam desconforto pelo impacto de sua construção metafórica e teatral, e não porque são realistas e, de certo modo, inconsistentes em seu pensamento e elaboração, remetendo a uma falta de diálogo, cuidado e busca por outras formas de narrar um mesmo fato.


Durante o debate, ao final do espetáculo, muitos desses pontos foram levantados, momentos de tensionamento apareceram, mas o que mais se destacou foi a dificuldade de escuta. Algo muito característico desse tempo polarizado em que vivemos, em que muitas vezes não estamos dispostos a ouvir o outro e, quem sabe, até compreender a forma como ele vê e recebe as coisas.

Não podemos esquecer que cada pessoa que ali assistiu é dono e dona de um olhar muito particular sobre o espetáculo e que, no fundo, são olhares e não uma ordem para que algo seja mudado. Assim como essa crítica que pretende muito mais querer ouvir, dialogar e trazer perguntas, sempre mais perguntas do que respostas. Enquanto não nos ouvirmos nesse processo de recepção daquilo que é mostrado, estaremos nos perdendo uns dos outros, ficando distantes, sem possibilidade de aprendizado e amadurecimento, estaremos perdidos se não estivermos juntos aprendendo e se desconstruindo a cada dia. Nos perderemos de nós mesmos, numa noite...


Referências:
1 - Marcos, Plínio. Dois Perdidos Numa Noite Suja. 1966.
2 - Rodrigues, Sérgio Manoel. As personagens marginais em Dois Perdidos Numa Noite Suja de Plínio Marcos. Revista Estação Literária. Londrina. Vol.12. Jan. 2014.
3 - Pavis, Patrice. Dicionário de Teatro.
Fotografias de Frederico Ishikawa
Revisão: Felipe Benício



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