FESTAL 2021: Girar entre ruínas

Tessitura _ Bruno Alves


   Estou dentro de casa, enquanto procuro palavras para descrever uma narrativa coletiva que se forma diante da tela. Uma parte de mim quebrou no meio da jornada e agora procuro encontrar as direções que desconheço, procuro escrever de um outro lugar desabitado por mim, por tanto tempo. Entre fraturas e ruínas, busco a vida que gira em formato de festa. Uma festa que se propõe colar pedaços, diminuir distâncias, ajustar o movimento, enquadrar a tela a cada corpa, possibilitar amparo entre estruturas desestabilizantes, encontrar rebocos, areias, cimentos, rochas, pinos, fios, tipoias ou qualquer coisa que ajude a manter de pé a casa que delicadamente construímos. Não é sobre o conforto ou conformismo que gira essa roda. É mais sobre fazer explodir os gritos e o sangue cobertos pelo concreto. Estamos em festa, embora o coração esteja em luto. Estamos em festa, porque nos resta a luta.

  Aqui não trago receitas ou mesmo respostas. Trago a dúvida debaixo do braço, direito para ser mais preciso. Permita-me aqui duvidar das coisas e reclamar ausências. Permita-se também. Giremos juntes no meio da dúvida e da ausência, é possível. Te peço a presença.

  É parte da construção e pesquisa das Artes da Cena, o estudo e a busca pela presença. Diante da pandemia da covid-19 que vivemos, pensar a presença se tornou um desafio para muites artistes que mergulham e provocam experiências cênicas dentro do universo online. Mas, ouvindo o professor Victor D'Oliver da Universidade Federal da Paraíba em agosto deste ano durante uma aula, eis que uma frase sua me conecta ao momento que vivemos. Naquela ocasião, ele nos provocou: "Estamos falando o tempo todo sobre presença, quando na realidade é sobre as ausências que devíamos falar".


  Em 2021 a sexta edição do Festival de Artes Cênicas de Alagoas - Festal, eu ouso dizer, que é para tratar sobre ausências. Ausências, não como sentido de inexistência, mas de apagamento, invisibilidade  e silenciamento dentro das Cenas de Alagoas. É preciso falar sobre essas ausências e isso o Festal se propõe nessas cinco semanas de outubro. 

  São cinco giras que farão esse festival online e gratuito. Reflexões e tensionamentos sobre "Artes Cênicas e Cultura Popular", Memória e política", "Acessibilidades",  "Gênero e Sexualidades", "Cenas Pretas/Negras" são temáticas que criam um aquilombamento de resistência e celebração das coisas que aqui acontecem.

  Memória é um dos eixos do Festal. Em 2018, foi tema central da quarta edição e contou com uma mobilização para a construção da exposição “Fios da Memória das Artes Cênicas de Alagoas” que ficou exposta no Museu Théo Brandão durante o mês de outubro daquele ano.

  Nossa memória é feita de resquícios, um quebra-cabeça que vamos montando coletivamente a partir do que vivemos e do que outres viveram. Nossa memória carrega ruínas. Ruínas deixam vazios, às vezes imensos, às vezes pequenas pistas do que por ali se passou.

  Costumamos dizer, que temos memória fraca, que esquecemos com bastante agilidade do que há pouco se passou. Por isso, criamos narrativas diariamente para afirmar nossas presenças e existências no mundo. E se tratando das Artes da Cena, as experiências permanecem acesas naqueles que viveram, pois trazemos também na essência a efemeridade como pacto para o acontecimento. 

  Foi sobre construção de narrativas, memória e política que Telma César e Glauber Xavier foram convidados a falar na mesa de abertura da segunda Gira que contou com a mediação de Ana Antunes e tradução em Libras de Claudia na quinta-feira (07/10). Assisti-los é reafirmar um espaço de construção de narrativas, frase que me fixo graças às palavras iniciais de Telma César. Um espaço político sim, por necessidade e essência de resistência no fazer local. 

  A mesa de abertura nos aponta caminhos que hoje refletem na nossa história, que desembocam inclusive no surgimento do Festal. São trajetórias que falam por si mesmas e vemos nos Saudáveis Subversivos já no começo de sua caminhada, um exemplo de diálogo com outras tecnologias, inclusive com a existência de seu site que traz um acervo da história do grupo. 

  Seguindo o movimento da gira, na sexta-feira (08/10), noite em que o Brasil atingia a marca de 600 mil mortes pela Covid - 19,  A Cia El Gibor trouxe para nossas telas o arquivo do seu espetáculo “Mariah 's”. Um espetáculo que traça com beleza e lirismo, o movimento construído no espaço para contar histórias de mulheres e reafirmar que #somostodasmarias. Quantas Mariah 's foram tiradas de nós pelo vírus e incompetência governamental? Eu me pergunto, enquanto assisto.


  Existe um momento em que surgem dois depoimentos de duas mulheres falando sobre suas trajetórias de vida, suas relações com fé e maternidade. São momentos que nos conectam de uma maneira muito pulsante na tela, porque estamos todos os dias em busca de narrativas. Ouvir aquelas mulheres nos desperta e ficamos esperando que surjam outras Marias na tela. Selma Pimentel, diretora da Cia, torna o palco um espaço plural com corpas e experiências de vida e dança diferentes. Selma se percebe também como uma Maria que dança. Carrega em sua corpa o “você não pode dançar ballet”, ouvido na infância por ser uma mulher negra. Transforma os “nãos” que recebeu em escola de dança, em Cia, em movimento. Ela se desvia da rachadura e cria a própria narrativa voltando aos palcos para celebrar outras Mariah’s através da dança. 

  No sábado (09/10) giramos na ausência. "Um túmulo chamado Pinheiro" retorna ao bairro, destruído pelas escavações da Braskem, para num ato político retomar e exigir o respeito à memória das pessoas que viviam no lugar. 

  Caminhar entre ruínas, procurar memórias diante de um cenário de guerra, exigir o respeito e respostas que até hoje famílias inteiras esperam. O trabalho do grupo nos chama para adentrar os buracos abertos pelo sistema em que vivemos. Quem vai fechar o buraco deixado na história? A voz de Wagner Santos, a fotografia de Roberta Brito e a atuação de Alan Cardoso e Rilton Costa nos fazem caminhar entre vazios e moradas interrompidas. A audiodescrição de Bárbara Lustoza entra no espetáculo de forma simbiótica, narrando para nós o que restou do espaço. É interessante como esse encontro entre a prática artística e a audiodescritora criam uma potência maior ao espetáculo. A presença das máscaras teatrais fazem essa mistura do teatro com o audiovisual, mas deixa dúvidas se a intenção era tornar aquele rosto fora do comum ou tentar não identificá-los, porque disputam de alguma maneira a atenção com o espaço que já nos diz muito.  Como essas corpas mascaradas expressariam com mais profundidade o encontro com o vazio e a devastação?




  "No próximo passo tudo acontece"... Uma rachadura, um abismo, uma voz silenciada, um disparo... Em "Cadáveres não dão depoimento", apresentado na mesma noite, Everlane Moraes aponta o dedo na ferida cotidiana vivida por mulheres e a violência que sofrem a cada passo. Fala, principalmente, por mulheres negras e periféricas, lugar que conhece, que vive. Seu lugar de falar. É a segunda vez que temos Everlane na programação do Festal. De lá pra cá sua voz tem se tornado mais forte, seus gritos mais urgentes. Ela nos leva para trilhos de trem, pra dentro do mercado com pessoas passando e carne ao lado sendo vendida. Ela dança no meio da vida que pulsa resistente dentro do Mercado Público de Maceió. Lembra-nos qual é "a carne mais barata do mercado". 

  Quando sabemos que Everlane vai estar presente, sabemos que vem uma verdade direta, crua, sem melindres. Para mim ela representa uma das vozes mais pulsantes e potentes da nossa cena. Ainda pouco vista, ainda pouco ouvida. Ao vê-la nas ruas, no meio das trabalhadoras e trabalhadores da cidade pensei: "Sua atitude, seu discurso político, sua voz, sua dança é tudo que essa cidade precisa. Nós também precisamos ser mais Everlanes". 

  Agora que ainda reverbera em mim a potência do seu discurso, eu pergunto: Como ela poderia construir suas imagens de uma maneira que torne cada vez mais forte e potente sua voz? 

  No domingo (10/10) fizemos a roda virtual com artistes e público através da plataforma Zoom. Foi momento de ouvir e compartilhar impressões sobre os trabalhos. Ficamos mais próximos das práticas e da vida de Selma Pimentel e Everlane Moraes. Infelizmente não pudemos ouvir as pessoas envolvidas em "Um túmulo chamado Pinheiro". Essas ausências causam impacto no ritmo da Gira, porque a velocidade em que giramos é feita com a força de todes, mas a tarde seguiu com os diálogos com as artistas presentes e a mediação de Lili Lucca. Pela noite, e de volta ao canal do YouTube do Festal, voltamos a celebrar a vida com o show da banda Gato Negro de Arapiraca, porque é preciso celebrar os caminhos percorridos para continuar girando.

  Vivenciar a experiência online tem sido uma aprendizagem sobre presença. Construir experiências artísticas e um festival virtual é um giro entre os detritos  que nos cercam nos últimos tempos.

  O Festal nos aponta caminhos para a resistência e sobrevivência. Reconstrói em nós pedaços quebrados no caminho. Levanta outras estruturas, pontes e atravessa muros. Essa narrativa coletiva de esperança segue girando, mesmo que entre ruínas.



Imagem 01_"Um túmulo chamado Pinheiro"
Imagem 02 _ "Mariah's"
Imagem 03 _ "Cadáveres não dão depoimentos"

3 comentários:

  1. Olá!
    Adoraria ter sido convidado para a gira de conversa, infelizmente a produção do FESTAL não entrou em contato com os outros artistas envolvidos em "UM TÚMULO CHAMADO PINHEIRO"
    Alan Cardoso infelizmente não pode participar pois estava em um outro trabalho e segundo ele já havia comunicado ao FESTAL sua ausência. Eu mesmo tentei entrar na gira pelo link fornecido no Instagram, ao qual até hoje espero. De qualquer forma esperamos que nossa arte/Denuncia tenham de alguma forma ajudado, seja pra denunciar o crime cometido pela BRASKEM, ou fomentar de alguma forma o FESTAL.

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    Respostas
    1. Querido Wagner Santos,
      Lamentamos o ocorrido. Foi solicitado ao grupo selecionado previamente um representante para os bate-papos de domingo. Tudo divulgado com antecedência na programação. Infelizmente, por problemas, na internet, o representante do grupo não pôde estar conosco na data prevista. São os desafios de se fazer um festival virtual. Sobre a questão da entrada no Zoom, estamos avaliando, para que nos próximos bate-papos não ocorra esta falha de comunicação. Vivemos um momento em que as nossas salas são invadidas, por isso, tomamos o cuidado de garantir entrada no Zoom com um prévio cadastro. O Festal é colaborativo e coletivo, esperamos que você esteja com a gente na produção do próximo Festal.

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  2. Para bens Filezeiros pelo belo trabalho no Festal. Sempre com ótimos textos dos trabalhos já exibidos pelo Festal. O Filé é uma referência em Alagoas e o trabalho desenvolvido por vocês é de suma importância para as artes e cultura de nosso Estado. Parabéns.

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