CRÍTICA: AQUELAS – Uma dieta para caber no mundo

Tessitura _ Joelma Ferreira*


Manada foi o último grupo a passar por Maceió cumprindo o potente programa do Aldeia Palco Giratório, no dia 26.05.19. Em circulação nacional, a Cia cearense trouxe para o teatro Jofre Soares o espetáculo AQUELAS – Uma dieta para caber no mundo




Duas mulheres em cena usam galochas brancas de cano curto, shorts pretos e blusas cinzas, roupas num estilo cotidiano. Como cenário, no chão do palco, à boca de cena, três bacias de alumínio e, dentro delas, várias facas com cabo branco e uma tábua com carne vermelha. À esquerda, sob a ótica da plateia, uma cadeira de madeira; ao lado desta, um contrabaixo e um violão. Do lado direito, refletores iluminam um microfone. No centro do palco uma mesa retangular aparentemente feita de alumínio (material que dialoga em composição com as facas e com a cor do figurino das atrizes) é explorada durante todo o espetáculo, contribuindo para possíveis leituras de cena.

As facas são objetos provocadores de sentimentos, o manuseio demasiado delas formam imagens interessantes e aguçam sensações através do barulho ao serem jogadas ao chão, pregadas na mesa, passadas nas cordas do contrabaixo, momentos de pura cinestesia.

De um modo geral, o cenário nos leva a uma cozinha, lugar onde, no Nordeste, é comum as mulheres receberem amigas, vizinhas, visitas, como um espaço de convivência da casa, transformando o fazer, o servir e o alimento em sutis demonstrações de afeto. Nesse contexto, as duas atrizes dividem, através do texto, histórias de diversas mulheres brasileiras, a partir da história específica de Maria de Bil, mulher assassinada pelo seu marido e que se transformou em mártir, sendo até hoje ícone de devoção na região de Várzea Alegre (CE), a qual apresenta um alto índice de feminicídio. Esse enredo já propõe questionamentos: Que fé é essa que cala o grito à vida? Que fiéis são esses que reproduzem a história trágica da sua Santa de devoção? Que Brasil é esse que não dá suporte à vida feminina?

Com esse roteiro as atrizes constroem imagens fortes, reflexivas, bonitas, poéticas, de dor e sofrimento, intercalando com cenas mais descontraídas, buscando dar um ritmo flexível ao espetáculo diante de tantas tensões que são criadas. As trocas de expressões e, consequentemente, de sensações são respiros assertivos. 

Frente às imagens de risco, observo levemente rumores de algumas pessoas na plateia, que conseguiram sentir o desafio da atriz em atravessar, descalça e vendada, a mesa cravada com facas. Tecnicamente, essa cena oferece um grau de dificuldade aparentemente não vivenciado, visto que a pessoa convidada da plateia para guiar oralmente o caminho mais seguro para a atriz foi ajudada pela outra atriz. Entendo que quando um artista se propõe estar em risco em cena, de fato, ele precisa vivenciá-lo com sinceridade e verdade, se expondo ao risco que se propôs realizar.

As músicas compostas para o espetáculo são lindas e alimentam as cenas, ora num tom de reza e acolhimento, ora num timbre de enfrentamento e revolta.

A iluminação sugere simplicidade quando é definida por claridade total, deixando tudo à vista, favorecendo os instrumentos utilizados em cena. Dois pontos de luz acentuam a presença dos objetos cênicos à boca de cena e alguns refletores usados próximo ao microfone não apresentavam influências tão significativas à composição da peça. 
  
É comum ouvirmos que os artistas criam suas obras atravessados pelo contexto em que vivem. Em nossa atualidade reaparecem histórias já vividas e contadas, costumes e comportamentos que não cabem mais à nossa sociedade, mas que continuam se repetindo da mesma forma ou camufladas. É necessário observar qual a raiz das problemáticas para que haja eficientes soluções.

Desde a infância, a menina cresce sendo moldada por regras que viraram costumes e se naturalizaram. O machismo se naturalizou e é preciso desenvolver um trabalho de reeducação social para que, nós mulheres, possamos, em primeiro lugar, viver e, em segundo lugar, viver com respeito, numa sociedade mais igualitária. Essa educação passa por diversas camadas de instituições e agentes responsáveis pela mudança. A arte é sem dúvidas uma das maiores ferramentas educacionais com elevado alcance de aprendizagem.  Diante disso, parabenizo aos curadores do Sesc por selecionar trabalhos que dialogam diretamente com o cotidiano, sendo extremamente necessário todos os encontros e discussões proporcionados pelo Aldeia Palco Giratório.

Todos precisam assistir a esse espetáculo...

Para que nenhuma mulher precise de uma dieta para caber. Mas para nos amarmos a ponto de entendermos que: amor não precisa caber, precisa transbordar. Sobretudo o amor próprio.  


Espetáculo – AQUELAS – Uma dieta para caber no mundo

FICHA TÉCNICA
Direção: Murillo Ramos
Interpretação: Juliana Veras e Monique Cardoso
Direção Musical: Juliana Veras
Iluminação: Wallace Rios
Operador de Luz: Luís Albuquerque e Wallace Rios

*Joelma Ferreira, é formada em Dança pela UFAL, dançarina na Companhia dos Pés desde 2009, desenvolvendo pesquisa em danças populares do Nordeste e criação em dança contemporânea. Arte Educadora na Secretaria de Educação do Estado de Alagoas.



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