CRÍTICA de "Mamilos" da Coletiva Corpatômica: Feminina Explosão

Tessitura _ Bruno Alves
Não estava preparado para encontrar no dia 29 de março de 2019 A COLETIVA CORPATÔMICA durante o Pluralidades Cênicas do Curso de Teatro Licenciatura da UFAL.
Entreguei-me ao silêncio de três mulheres sentadas, vestindo calçolas vermelhas e de seios de fora.
“Mamilos” é o nome do trabalho da coletiva que já disse para que veio desde o momento da escolha do próprio nome.

Poderíamos sentar nas cadeiras espalhadas pelo pátio bem próximo as performers, mas eu como a maioria das pessoas que lá estavam, preferimos sentar a distância. Parecíamos temer qualquer ameaça de um corpo livre e empoderado.
Verônica Veloso escreve sobre esse incômodo que nós espectadores contemporâneos carregamos conosco ao dizer que:

 “A questão do espectador está diretamente relacionada ao seu atual estatuto dentro da cena teatral contemporânea e também da performance. Se em uma acepção mais convencional do teatro, o espectador sabe exatamente como  deve  se  comportar,  por  já  ter  sido  disciplinado  para  isso,  nas  modalidades  cênicas  deambulatórias  que  ocupam  o  espaço  público,  o  corpo  do  espectador  passa  a  ser  interpelado  de  outras  formas.”

Nossos corpos ali pareciam também estar em risco. O risco que a performance e alguns espetáculos teatrais trazem consigo ao nos fazer viver uma experiência e não somente apreciar alguma coisa que se passa.  Sobre isso Larrosa vai nos dizer que:

“É experiência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação.”

Assistir “Mamilos” é portanto um processo de transformação, principalmente do olhar.
Olhar esse que não tinha como fugir a ação silenciosa das performers. Durante alguns (longos) minutos sentadas, respirando e nos observando percebemos que ali elas encontram um lugar de tranquilidade e de naturalidade com seus corpos e suas histórias. Não é o seio de fora que incomoda. É a nossa nudez se revelando enquanto espectadores. Nós quando experienciamos a ação vamos sendo despedidos e nossas fragilidades se revelam pelo simples fato de termos em nossa frente mulheres que afrontam e enfrentam todos os pudores morais.
Enquanto elas respiram, nós vamos ficando com a respiração oscilante, procurando uma outra maneira de se sentar, querendo talvez uma fuga para sair dali de fininho, antes que a nossa moralidade seja despida por completo.
O estado de presença das performers durante o longo silêncio é revelador de todas nós. É ousada essa entrega, é estado de risco, é estado de nudez da mais potente forma, como escreve Schechner ao dizer que:
“A  performance  se  resume  a  esse  ato  de nudez  espiritual,  uma  des/coberta  que  não  é construção de personagem, no sentido convencional do termo, mas também não é muito diferente. É um ato que acontece naquela região difícil, entre o personagem e o trabalho que o performer faz sobre si mesmo.” 
E eis um ponto que chama atenção ao longo do trabalho. Depois da quebra do silêncio, surge um encadeamento de ações. As mulheres correm ao encontro da plateia, seus seios quase encostam os nossos rostos, elas nos mostram os seios, pegam, balançam, batem no próprio corpo. É uma sequência cheia de aflição para quem assiste. Elas correm, entram dentro de formas geométricas desenhadas no chão e começam a criar paralelamente partituras corporais. Vão se transformando, agora já não há silêncio, há um lugar que beira a uma revolta, é sobre violência que elas trazem em seus corpos. É sobre sangue derramado. É sobre beber o próprio sangue e ressurgir mais forte.
Se segundo Schechner, “a performance é esse ato de nudez espiritual, uma des/coberta que não é a construção de uma personagem” vemos em “Mamilos” uma nudez espiritual quando ali em cena/vida estão expostas diante de nós a verdade de cada uma das performances, porém existem disparidades em alguns momentos entre as performers durante a ação. O rosto de Mirella e Maria, vindas da dança, constroem uma narrativa que vai da neutralidade ao afrontamento durante a ação, isso torna bastante potente o mínimo gesto que elas fizerem. Yolanda Ribeiro, que tem em sua trajetória o teatro, transita entre a neutralidade, o afrontamento e nas ações finais um rosto que me parece ser a construção de uma personagem. Quando uma personagem exita em surgir diante de tudo que foi construído, torna frágil e tende a nos desconectar, não por que ela não esteja fazendo bem, mas por que do início ao fim vemos ser proposto um jogo da verdade, sem máscaras, jogo de exposição, afrontamento e da cara  exposta no sol. Ali quanto mais forem Mirella, Maria e Yolanda mais potente o trabalho ficará.
É entre “silêncios”, corridas, olhares e enfrentamento que “Mamilos” vem ao mundo dizer que cada corpo tem sua história. Que todo corpo é bonito. Que quanto mais coragem se tem de ser o que se é, mais a vida vai se transformando.
Elas sabem a corpatômica que carregam. Sabem o que é ser mulher todos os dias e ser sempre um corpo em risco. É por isso que gritam em seus silêncios que é dos seus corpos que saem às suas próprias regras.
Gritam em seus silêncios o sangue derramado, porque sabem que em 2018, segundo uma pesquisa do Datafolha, encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 16 milhões de mulheres acima de 16 anos sofreram algum tipo de violência, com uma média de 536 mulheres agredidas por hora e 177 espancadas.
Gritam porque sabem que esses números tendem a crescer com o aumento do conservadorismo, com homens decidindo a vida das mulheres, com uma sociedade que cada vez mais vai querendo tirar seus direitos que a muito sangue derramado foram alcançados.

Durante a performance eu me perguntava o tempo todo ao perceber algumas reações na plateia:
Por que ainda incomoda tanto a nudez do mamilo feminino?

E talvez eu não encontre a resposta, mas veja refletida no cotidiano o incomodo que é para uma sociedade machista ver a mulher sendo o que ela quiser.
Que elas ocupem todos os espaços e que desnudem toda a hipocrisia. Que haja explosão desses e outros corpos. Que continuem denunciando com seus corpos, vidas e ações. E que incomodem ao ponto de causar uma explosão feminina de empoderamento e transformação.

Referências:

Jorge Larrosa Bondía. Notas sobre a experiência e o saber de experiência
Schechner, Richard. (2009). Performer. Sala Preta, 9, 333-365; 
Veloso, Verônica. (2017). Quando olhar é fazer: do espectador convidado ao espectador ausente. Sala Preta, 17(1), 103-122;
Pesquisa DataFolha sobre Agressão a Mulheres em 2018. Acessada em 03/04/2019 às 17h39min. Disponivel em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/02/26/mais-de-500-mulheres-sao-agredidas-a-cada-hora-no-brasil-diz-pesquisa.ghtml

SERVIÇO:
Performance _Mamilos
Criação_COLETIVA CORPATÔMICA
Performers_ Maria França, Mirella Pimentel e Yolanda Ribeiro.

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