Tessitura_ Lili Lucca
O teatro e
suas possibilidades, como é instigante saber que necessário para ele acontecer
precisamos todos estar presentes. Uma mesa, dois instrumentos de corda, um
microfone. E ELAS, todas as vozes e todas as FALAS, para AQUELAS. Aquelas duas
atrizes, uma do Cariri outra de Fortaleza e ambas do Ceará, que vem cruzando o
país, pelo projeto do SESC Nacional, Palco Giratório. Elas passaram aqui por
Maceió, pelo Aldeia e encerram a programação. Elas passaram e em meio a
potência de sua cena, nos lembraram que todos os dias as mulheres precisam SER.
Ser coragem e ser luta, para ter liberdade de ser e sentir.
Feminicídio. A
fé do povo está acima da dor de uma mulher. A fé de um povo está acima da
verdade da vida de mulher. A fé do povo cala o grito de uma a mulher. Uma fé.
Uma mulher, assassinada pelo marido. Uma mulher assassinada pelo marido em
1926. Virou santa. De 1926 até 2019 quantas mulheres foram assassinadas e
mortas pelos seus maridos? Tem se uma “conta” de que por dia 13 mulheres são
assassinadas, por dia. Peço que faça as contas desde Maria de Bil até hoje,
contando 13 mulheres por dia, qual o número de santas que teremos? Ou melhor
quantos lobisomens se escondem na floresta?
Apenas mais
uma narrativa para que todos nós possamos entender que o corpo da mulher, não é
apenas a carne posta para ser servida, ou a carne a servir em todos os sentidos
possíveis da palavra. Essa carne que tem vida, essa fêmea tem vida. Sua carne é
livre, seu corpo é livre.
Aquelas, uma
dieta para caber no mundo. Um espetáculo, uma ação cênica, ações performativas.
Uma cena com luz branca e aberta, facas de todos os tamanhos, facas que não são
só imagens simbólicas, facas que servem para ação e carregam nela toda a dor do
feminino. Facas que cortam, que sangram e que ferem todo dia, as mulheres. O
espetáculo em que a sonoplastia é feita pelas atrizes, a sonoridade que
desperta a dor pela palavra cantada e nos rasga o verbo pelas cordas tocadas
pelas facas. É o corpo da mulher que grita a cada facada, mas esse grito parece
ser musicado, pois nunca é ouvido. Um espetáculo que a todo momento gera
imagens de dor e reconhecimento de mulheres que a suportam, mas vivem. Em meio
a pedaços de carne cortados, palavras cuspidas e cotidianas ao ouvido de
meninas, a cena desordenada se constrói.
Duas atrizes
mulheres contando em narrativas a história de uma Maria, que não era do Bil,
foi morta por ele. Duas atrizes que nesse processo de criação da obra trazem
suas experiências e vivências do ser mulher, em uma sociedade que nos limita o
ser. O trabalho nos coloca em frente a vida de mulheres e suas dores, e por ser
permeado por narrativas diversas é necessários entrega total a ele, é
necessário correr o risco do corte sem o medo, porque o corte já está exposto
na palavra e na ação que discorrem. O corpo ali é instrumento e mais que nos
mostrar na imagem a dor, ele tem que ser dilatado com máxima intensidade. Não
tem como a mulher não correr o risco. Não queremos mais sangrar, não precisa
mais ter sangue, mas é necessário correr o risco, gerar impulso e experiência
nas cenas. O que precisa aparecer é a visibilidade dessa existência na cena,
está ali basta ser exposta mais e mais. É imprescindível fugir à representação,
ela não é prejudicial, mas embaraça.
“o ator/atriz
não é o executante, mas sim o sujeito da obra, aquele que também cria o
espetáculo. Não existe um papel destinado de antemão, ao contrário o ator deve
encontrar a si mesmo na totalidade da peça teatral. “ Welmininski, Andrezej-(in)
COHEN, Renato¹
Aquelas duas atrizes, e suas
presenças ao elevado. Aquelas duas atrizes que quando nos apresentam Maria de
Bil, que teve a identidade anulada pelo seu assassinato e pela fé que lhe foi
posta, nos despertam a dor de todas mulheres, elas devem ser mais que desenho
na ação.
Enquanto todos nós que somos o
que se chama de sociedade, não nos importarmos com as facadas que as demais
levam, permaneceremos com a fé hipócrita que mata e sangra a vida de tantas. Homens
pergunte as mulheres o que ficaram das facadas que elas levam todos dias?
A mulher que todo dia é:
Cortada por olhares de desejo.
cortada, pelo
esbarrão no coletivo público, pelo uber, pelo táxi
cortada, pelo
serviço duplicado, o do lar que ela tem obrigação de manter, depois de 8 horas
de trabalho por dia ou mais.
cortada, pelo diferente
salário que recebe mesmo executando o mesmo serviço que homens
cortada,
quando tem que mesmo sem tesão algum dar prazer ao seu homem, pela roupa veste,
pelo jeito que se permite
cortada, pelas
pessoas que a chamam de vadia por ser livre e responder aos seus desejos e
querer gozar
cortada,
quando apanha dentro de sua casa, espancada pelo amor de sua vida, pelo seu
marido, pelo pai de seus filhos
Cortada e
não percebe que sangra. É cortada e sangra, é cortada e permanece. Tem aquelas
que sentem o sangue escorrer e não conseguem sair, é como se fio da faca que
esbarra na sua carne fosse o mesmo, que sem querer sangrou ao cortar a cebola
na hora cozinhar a carne. Mas agora é a sua carne que sangra.
E quando a
mulher não aceitar mais levar as facadas?
É necessário
ver AQUELAS, é necessário que o grupo Manada de Teatro continue a andar e a
construir esse DESPERTAR, é indispensável esse espetáculo ser visto. É
necessário parar de cortar a carne dessas mulheres. AQUELAS, TODAS AQUELAS.
CORTADAS.
Referências:
¹COHEN, Renato – Work in Progress na Cena Contemporânea _2006
Espetáculo: Aquelas: uma dieta para caber no mundo
Grupo: Manada Teatro (CE)
FICHA TÉCNICA
Direção: Murillo Ramos
Elenco: Juliana Veras e Monique Cardoso
Direção Musical: Juliana Veras
Iluminação: Wallace Rios
Operadores de Luz: Luís Albuquerque e Wallace Rios
Lili Lucca é atriz, encenadora e crítica no Coletivo Filé de Críticas*
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