CRÍTICA de "Baldroca" da Associação Teatral Joana Gajuru

Crítica de Baldroca *

Tessitura _ Lili Lucca

A rua e seu espaço democrático tem sido nesses dias o lugar dos transeuntes que veem na arte um lugar de comunhão. Teve início no último dia 17 de outubro a mostra de espetáculos do FESTAL – Festival de Artes Cênicas de Alagoas. Um festival que tem, na sua feitura, 13 grupos, 13 coletivos que se articularam há mais de 3 anos, buscando criar forças e dialogar com a cidade, propondo seus trabalhos e pesquisas. A arte se faz no encontro com o público, e, por acreditarmos que somos mais fortes juntos, a esses trazemos, nessa 4ª edição do FESTAL, a arte para a praça e para um itinerário que se alimenta nesses espaços avizinhados, tais como o Museu Théo Brandão, Espaço Cultural , Casa Jorge de Lima e a Praça Sinimbú.




O FESTAL traz nesse ano a exposição Fio da Memória, que busca desenhar uma linha histórica, trazendo registros dos grupos que fizeram e fazem a história das artes cênicas, a nossa arte que vem sendo registrada na memória afetiva de cada espectador, cotidianamente. O registro do teatro é no efêmero do encontro também. E a Praça Sinimbú, que já foi  recanto de um dos nossos maiores poetas, Jorge de Lima, fez palco para a Cia Joana Gajuru. Era fim de tarde de uma quarta-feira, luzes se acendiam para a abertura dos espetáculos, a arena circular se formava, as pessoas se aproximavam, algumas apenas passavam e aproximavam, de longe, o olhar, sentindo-se convidadas. Conversas, discussões políticas, abraços e até cantorias daqueles que iam chegando e aguardando o início da representação. 

A Associação Teatral Joana Gajuru, reestreia o espetáculo Baldroca, trazendo para a cena do teatro alagoano novos atores e atrizes e, assim, novas possibilidades de recontar essa história. O grupo, que completa 24 anos de história, reafirma seu objetivo de contribuir para o fomento da cultura e do imaginário popular, e a busca de cada vez mais promover a identificação junto ao público com a cena que se passa.

Eis que sobre o um círculo de sal grosso os atores e atrizes surgem perante nosso olhar, com cores da terra arenosa, clara, que também habita a praça. O teatro de rua confunde-se com a própria história da humanidade, é o ser humano na busca de dramatizar suas cenas cotidianas. E a Cia Joana Gajuru traz ao povo sua mais antiga forma de expressão. Baldroca se inicia em meio a cantoria, perfumes, folhas jogadas ao ar e dança circular, um festim para que o público esteja ali conosco. Uma FARSA, como foi dito pelos próprios artistas que a encenaram, a farsa que, no teatro, é tida também como a pimenta que alimenta e complementa o alimento cultural e sério da alta literatura. Baldroca é uma livre adaptação da Cia. Joana Gajuru, feita por Abides de Oliveira, que traz de forma encenada o conto “Corpo fechado”, de Guimarães Rosa, para rua e para o encontro com o povo, tal qual a arte se faz e refaz.



A narrativa de trapaça que Baldroca apresenta é, ao mesmo tempo, lúdica e real, traz personagens que conversam com o público, que se reconhecem a partir da história que contam. Uma baldroca, uma mentira, um conto e uma fofoca de personagens que vivem de forma singela. Uma mentira que não fere, não traduz “dor”. É uma mentira pra contar vantagens, para fingir ser quem não é. É como se o povoado da Laginha, onde a trama acontece, fosse o lugar de histórias incríveis e grandes aventuras, e tal mentira, contada pelo personagem Mané Fulô, não trouxesse nada além de encantamento e ensinasse que a coragem vem dos que são grandes por dentro. Assim como é o ator Reginaldo Meneses que, no desempenho de seu ofício, vem se mostrando desmedido para compor novas molduras. Essa Baldroca confeccionada pela Gajuru é algo que sempre habitou na literatura e na arte, pois que devemos estar todos atentos, uma vez que hoje grandes mentiras se tornam verdades descomunais que interferem diretamente na nossa vida. Uma baldroca encenada é um divertimento na arte; uma baldroca consolidada, na verdade, é um perigo para a vida. Atenção.

Em meio à contação feita por Mané Fulô, surgem curandeiros, ciganos, valentões, burrinhas, todos eles vivendo e evidenciando as histórias que são contadas pelo doutor da cidade. Laginha traz histórias de pessoas que estão sempre próximas umas das outras, essas histórias que são fantasias que, quando contadas de forma afetiva, viram historietas de um lugar, atraem turistas que buscam encantamento por simples fatos vividos. Tal qual todos nós, hoje tão atentos à imagem das vidas de outros pelas redes sociais, porém ansiosos da palavra e do contato com outros. Em meio a enganos e fraudes que vão sendo contados e vividos novamente por todos, nós, como se estivéssemos nas memórias de seu Mané Fulô, vamos acompanhando tudo de forma alegre, ativa, tal qual a turista paulista que vê histórias de vida, as quais, na realidade dela, quem sabe nunca fossem possíveis. Ela registra tudo por foto e escuta, estando atenta por mais informações, percorrendo as memórias e os lugares das histórias de Laginha e seu povo, como nós, seus aliados ali, acompanhando cada cena, registrando e interagindo a cada fato.

Eis que em meio a tanto acontecimento surge Maria das Dores, chega reparando em tudo e todos, ao trem que passa, aos que vêm de longe e de perto, à procura de se embelezar para falar de amor e lutar por ele, o seu amor, que está ameaçado por um valentão. O amor que hoje é tão banal a alguns é o que mantém Laginha unida e a torna um lugar de corajosos, de destemidos. A fala trazida e o enlevo da personagem construída por Ivana Iza, traz a frase que todos precisamos reconfortar: “Já estamos criando o amor”. E assim ela busca adjuntórios para que seu amor seja comemorado de forma valiosa. Pois o amor, aquele que ainda está em construção, é algo valioso, e só o amor vencerá a força do mal e da violência que o Valentão Targino emprega. E quantas de nós temos a força e a coragem de lutar contra os valentões em prol do amor? 



Baldroca, que traz uma história cheia de mentiras, também nos mostra que é preciso coragem diariamente para que essas histórias lúdicas e fantasiosas não passem a ser a nossa realidade. É preciso coragem, respeito a todas as fés, é preciso que nos escutemos em grandes narrativas, para que baldrocas sejam transformadas apenas em cenas. Situações que são contagiantes e de forma responsável, tal qual o espetáculo encenado pela Associação Teatral Joana Gajuru, que nos invade de lúdico e nos faz rir em meio à praça de personagens reais, e que brincam de ser, mas que, porém, evidenciam que sua maior vontade de ser sempre será na realização do amor.

Com direção de Lindolfo Amaral, com um elenco diverso e potente, Baldroca, em sua remontagem, traz uma encenação cheia de imagens potentes, sua dramaturgia é viva e traz conflitos que precisamos repensar e vivenciar, pela alegria do lúdico que nos traz consciência, em meio a músicas e cantorias. E queríamos mais cantorias, por elas serem um modo melódico e expressivo de melhor dizer o texto e desenrolar a fábula, logo, contribuindo para o ritmo pedinte da rua de mais gentes, mais ação seguida, como a própria rua, sem extensões e tempos muito dilatados. Baldroca é como o FESTAL, um resgate a memórias daqueles que compuseram aquela cena, como foi dito por Waneska Pimentel, assistente de direção do espetáculo, e que está na construção contínua dessas cenas desde suas origens. Reviver Baldroca é, de certa forma, catucar nossa memória efêmera nas cênicas, é relembrar e ovacionar aqueles que já compuseram essa cena. O sorriso largo do Vitor Rodrigues em cena e na vida; e a sapiência e sabedoria do Eris Maximiano, que hoje estão na memória e na história do teatro alagoano.  

É necessário estarmos juntos e fortes na resistência de entender as trapaças da cena, é necessário nos unificarmos cada vez mais. Sermos resistência como todo teatro e artista tem sido em anos. E o grupo Joana Gajuru, ao nos apresentar e nos colocar de novo perante Baldroca, reafirma e nos fortalece na história de sermos e continuarmos a resistir criando cenas e arte. A rua é o lugar do encontro corriqueiro, da troca de histórias cotidianas. Tal qual o teatro que se faz na troca com o público, vivemos e somos somente juntos. 


* A crítica foi construída durante o Festal 2018, capa do Caderno B da Gazeta de Alagoas no dia 23 de outubro de 2018, e republicada na Revista #Textão nº7.

Ficha Técnica

Direção – Lindolfo Amaral
Texto Original – João Guimarães Rosa
Adaptação – Abides Oliveira
Assistente de direção: Eris Maximiano e Waneska Pimentel
Preparação corporal: Glauber Xavier e Nani Moreno
Preparação vocal: Sabrina Pimentel
Direção musical: Tércio Smith
Letras das músicas: Abides de Oliveira
Percussão: O grupo
Cenário: Eris Maximiano e Marcelo Peres
Figurinos: Marcondes Lima e Felipe Quèrette
Execução de Figurinos: Maria Lima e Atelier Arlene Bulhões
Texturização de adereços: James Rodrigues e Marcelo Peres
Bonecos: Aquiles Escobar
Maquiagem: Eris Maximiano e Marcelo Peres
Material gráfico: Pedro Lucena e Fernando Coelho
Produção: Grupo
Elenco: Alex Walker, Waneska Pimentel, Cadu Moura, Ivana Iza, Ticiane Simões, Toni Edson, Matheus Marin e Reginaldo Meneses.

Fotos _ Jadir Pereira

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