CRÍTICA: AQUELAS: FÉ CEGA, FACA AMOLADA

Tessitura _ Felipe Benicio*

Aquelas: uma dieta para caber no mundo, do grupo Manada Teatro (CE), foi o espetáculo responsável pelo encerramento do Aldeia Palco Giratório. E se nos dias anteriores, o artístico e o político mostraram-se intimamente ligados ao longo da programação, neste último dia de Aldeia não foi diferente. Tendo como ponto de partida a história de uma santa popular do Ceará, Maria de Bil, as atrizes Juliana Veras e Monique Cardoso, sob direção de Murillo Ramos, trazem ao palco a (re)encenação de algumas formas de violência a que são submetidas as mulheres que vivem entre as engrenagens da nossa sociedade machista. 



Num país onde os grandes assassinos da história são homenageados, com seus nomes servindo de inspiração para cidades (Florianópolis) ou ruas (Avenida dos Bandeirantes), não é de se estranhar que uma mulher do interior do Ceará seja imortalizada no imaginário cultural, e santificada no cânone popular, trazendo em seu nome o nome de seu assassino, e pior, como se a ele pertencesse: Maria de Bil. De Bil, que traiu Maria com a irmã dela, Madalena; Bil, que se enfureceu (?) por Maria (talvez) querer deixá-lo (?); Bil, que montou uma emboscada para Maria, que estava grávida de seu terceiro filho e estava indo levar marmitas para seus irmãos na roça; Bil, que matou Maria a facadas e depois comeu suas panturrilhas; Bil, que virou lobisomem (?!) e sumiu dentro do mato (?) para nunca mais ser encontrado (!). Amém?

Talvez não haja uma oração para Maria de Bil, mas se houver, de acordo com as atrizes e o diretor do espetáculo, ela, a oração, muito provavelmente não mencionará o fato de Maria ter sido vítima de feminicídio, com requintes de crueldade. Segundo o grupo, que fez questão de participar de uma procissão que ocorre anualmente em homenagem e em agradecimento aos milagres operados por Maria de Bil, todos/as os/as fiéis entrevistados/as se esquivaram frente a questões relacionadas à morte da santa, como se isso fosse uma espécie de tabu. E esse é um triste exemplo de como a fé cega da religião ignora (e ao mesmo tempo compactua) com a faca amolada do machismo.

Há muitas incógnitas sobre a história de Maria de Bil. Não há dados nos registros oficiais nem parentes vivos/as que possam corroborar ou refutar as poucas informações disponíveis. É justamente por essa brecha que o grupo Manada Teatro envereda para criar sua dramaturgia, preenchendo com “ficção” as lacunas históricas, dando voz, inclusive, a personagens secundárias desse microrrelato hagiográfico, como a irmã de Maria, Madalena. E se grifei “ficção” anteriormente foi para frisar que a liberdade criativa do grupo, para além de criar situações de diálogo entre Maria e Bil, por exemplo, acrescenta outros relatos convergentes, como o das relações assimétricas de gênero e de poder que são estabelecidas na sala de aula e que desembocam em violências e violações simbólicas e concretas.

Em uma proposta de encenação menos convencional (que geralmente é apresentada em palcos de arena, mas que, na falta deste ou de um espaço similar, foi apresentada no palco italiano do teatro Jofre Soares, o que, certamente, gera outros efeitos e suscita outras leituras), o grupo opta por uma luz mais aberta, de modo que o palco esteja sempre todo às claras; uma trilha sonora que é tocada e cantada pelas atrizes em cena; uma atuação em que as atrizes ora são personagens, ora são “elas mesmas”; tudo isso estruturado dentro do que o grupo chamou de “blocos performativos”.

Estar no palco sem artifícios, muitas vezes sem a mediação de um personagem, é um ato extremamente corajoso. (Embora, diga-se, ao pisar no palco qualquer um/a já é outro/a, pela força mesma que o espaço exerce sobre ele/a. Mas isso é assunto para outro texto.) Mas, no caso de Aquelas, esse estar-em-cena-desprovidas-de-personagens contribui para que as atrizes consigam criar uma relação de profunda empatia com a plateia. Para o bem ou para o mal, em certos momentos, a transição dessa espécie de modo neutro para a atuação enquanto personagem é algo difícil de determinar, uma vez que não há qualquer dispositivo (de luz, de som, de adereço ou mesmo corporal) que indique de maneira explícita essa mudança, o que faz com que, às vezes, você só entenda que se trata da fala das atrizes (nesse modo neutro) ou das personagens no meio do texto.

Mas o grupo é muito enfático em sua denúncia contra o machismo, contra as violências perpetradas contra as mulheres em nossa sociedade patriarcal, de tal modo que chega a flertar com uma estética gore, com direito a muitas facas, carne crua sendo cortada e (o clássico do gore) banho de sangue. Há muitas cenas fortes no espetáculo, pela sua crueza ou pela energia (em alguns casos, demasiada) colocada na palavra, que irrompe em grito; mas há também cenas potentes, do ponto de vista simbólico e artístico, tal como aquela em que uma atriz se deita de bruços sobre a mesa, enquanto a outra se deita embaixo da mesa; a de baixo (fazendo as vezes de Bil), empunhando uma faca, apunhala a madeira a cada frase que profere, enquanto a de cima (fazendo as vezes de Maria), responde, lacônica, às palavras-punhaladas. Fazer coincidir a palavra e a facada aponta, de maneira metafórica, para aquelas violências que existem no nível do discurso, mas que, nem por isso, deixam de ser menos destrutivas.

Embora a opção por uma estrutura em blocos resguarde o grupo de qualquer crítica do ponto de vista de uma dramaturgia mais tradicional, chamo a atenção para o fato de a peça chamar-se Aquelas: uma dieta para caber no mundo; trazer em boa parte de seus blocos a história de Maria de Bil; e terminar com uma das atrizes afirmando que “este espetáculo é para as araras”, em alusão a um relato que havia sido feito em algum momento durante a encenação. Do mesmo modo que há questões que são levantadas e deixadas no ar, há também aquelas que se repetem ao longo do espetáculo. A ideia de “blocos performativos”, neste caso, deixa a impressão não de fragmentação (técnica amiúde explorada pelas narrativas pós-modernas), mas de disformidade, disjunção, uma vez não há um fio norteador explícito (o que há são temas e histórias que vêm e vão), não se busca uma unidade de efeito, tampouco a fragmentação é abraçada por inteiro. Mas, como afirmei anteriormente, a proposta do grupo parece ir na contramão de uma dramaturgia tradicional. 

Apesar disso, Aquelas é um espetáculo necessário, que fala direto às dores da nossa sociedade, e que é feito por artistas que usam a arte como instrumento de luta e o palco como amplificador de discursos. É uma peça impactante. E precisava sê-lo. Porque, como disseram os/as integrantes do grupo, tratando de assuntos tão complexos, eles/as não poderiam correr o risco de ser líricos/as, tornando turvo o caminho até a mensagem por eles/as pretendida. E se faço, aqui e ali, algum comentário menos palatável é por escolher tratar o espetáculo como a obra de arte que ele é (que possui mecanismos e modos de significação próprios dessa linguagem), e não apenas como um discurso social. 

Espetáculo: Aquelas: uma dieta para caber no mundo
Grupo: Manada Teatro (CE)

FICHA TÉCNICA
Direção: Murillo Ramos
Elenco: Juliana Veras e Monique Cardoso
Direção Musical: Juliana Veras
Iluminação: Wallace Rios
Operadores de Luz: Luís Albuquerque e Wallace Rios


* Felipe Benicio é poeta, ficcionista e doutorando em Estudos Literários (Ufal). É também membro dos conselhos editoriais da Revista Fantástika 451 (SP) e da revista do Coletivo Volante de Teatro, #Textão (AL).




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