CRÍTICA: "A Memória da Flor" _ Qual é o tom da vulnerabilidade?

Tessitura _ Bruno Alves

Foi durante a primeira edição do Festival de Artes Cênicas de Alagoas - FESTAL, em seu formato organizado e gerido por vários grupos e artistas, que estreou o primeiro espetáculo do Teatro da Poesia.

“A Memória da Flor”, antes interpretado por Jadir Pereira e Louryne Simões, nascia dentro de uma efervescência da cena alagoana, em um período no qual  artistas começavam através da construção do festival a unir forças para discutir e fomentar a cena alagoana. 

Em 2016, em meio a ruínas da falta de políticas culturais, de diálogo da classe, da falta de patrocínio para o festival, nascia um festival, nascia também com ele um espetáculo e um novo grupo na cena local.



A inspiração do espetáculo é a música homônima do cantor alagoano Júnior Almeida. Vemos ao assistir se desenhar o relacionamento de um casal através das cartas trocadas entre ambos. Ele (Tom) um homem perdido em seus próprios traumas e ela (Flora) uma cantora que decide não mais cantar(?).

Em 2019, o Teatro da Poesia, decide remontar o espetáculo. Dessa vez Jadir Pereira assume a direção e Jamerson Soares e Louryne Simões compõem o elenco. Jadir assume o desafio de dirigir um elenco potente e cheio de possibilidades. 

Há ganhos com a chegada de Jadir a direção. Em sua reestreia vemos ser melhor elaborada as cenas e a narrativa da história, no entanto, não existem grandes mudanças ou desconstruções. Jamerson Soares assume o Tom e traz para ele novas nuances, mas segue a narrativa como outrora era apresentada. Percebe-se que é um ator potente e visceral que se desprende e se entrega ao personagem que lhe é proposto, mas esse desprendimento, característico de seu personagem, por ser mais “largado”, pode beirar o exagero na interpretação em alguns momentos, perdendo as nuances que poderiam ser melhor aproveitadas de seu trabalho de ator. 

É tudo muito limpo e organizado visualmente, seja o figurino ou os elementos que compõem os adereços e cenografia. Característica que o Teatro da Poesia tem mantido em seus dois espetáculos. Não há problema em querer trazer essa “limpeza” na visualidade dentro do espetáculo, mas quando se busca a verossimilhança esse cuidado nem sempre se torna uma força, principalmente quando estamos falando sobre estados humanos de decadência.



Não fica entendido se Flora decide não cantar mais ou se realmente foi o tempo que a fez perder a voz. Parece um retrato de uma cantora da noite em decadência, que devido o passar dos anos, o envelhecimento e questões de saúde vocal foi afastada dos palcos. No entanto, Flora não é decadente visualmente, vocalmente e corporalmente falando, embora sua história e o que vemos retratado ali no palco nos traga uma mulher que acumula fracassos na vida e na carreira. O perfil construído para o espetáculo não nos deixa ver a decadência dessa mulher. Ela é revelada de forma deslumbrante, altiva e pouco vemos de vulnerabilidade.

É certo que entre ela e ele existem diferenças de personalidade e formas de ver o mundo, mas visualmente e corporalmente a vulnerabilidade de Flora é pouco explorada, enquanto o desprendimento de Tom é mais visível e explorado de maneira exagerada durante a maioria das cenas. 

A escolha dos elementos de cena também precisam de um maior cuidado, pois a própria Flora fuma durante a peça e esse cigarro usado por ela é quase como uma extensão de seu corpo, com o qual ela deveria manter uma relação de intimidade.

Vemos a dramaturgia se desenrolar, vamos entendendo a história do casal, a luz nessa reestreia ganha uma nova potência e nos ajuda a entender a narrativa. Tudo é feito com muito cuidado e atenção. Seja na escolha das cores, dos elementos de cena e nas marcações do espaço. 



O excesso do cuidado e o querer que esteja tudo bonito em cena nem sempre acrescenta a narrativa. Nesse espetáculo os corpos parecem querer esconder as ruínas. Há beleza na decadência e na ruína. Tudo que é inerente ao ser humano torna-se importante e belo no teatro. É certo que, como já sugere o nome do grupo, a palavra vem como ponto fundamental para contar a história, mas uma palavra distante do que vemos se desenrolar em cena nos faz pensar que algo está sendo escondido de nós. 

“O presente que o ator deve dar à plateia, o objeto direto que complementa o verbo dar, é a própria pessoa do ator. Ele deve comungar a si mesmo com seu público, mostrando não apenas o seu movimento corporal e sua mera presença física no palco, mas seu corpo-em-vida, seu ser, os recantos mais profundos e escondidos de sua alma. E para isso é preciso coragem: coragem para buscar essa vida, coragem para buscar esse presente e, além de tudo, coragem para doar esse presente, sem restrições e sem medo.”¹

Não saberemos qual é o presente se não tirarmos o embrulho.

O “estar limpo” falado anteriormente reflete nessas questões e nos deixa com a sensação que faltou alguma coisa acontecer. Há um momento em que a vulnerabilidade de Flora se mostra sutilmente e esse momento é exatamente quando não há música, não há palavra e de pé diante de nós ela vive o silêncio.

“Não é simplesmente seu corpo, mas seu “corpo-em-vida”, como diz Eugênio Barba. Um corpo-em-vida é um corpo em constante comunicação com os recantos mais escondidos, secretos, belos, demoníacos e líricos da nossa alma. É o receptáculo da poesia do teatro. O ator é um “atleta afetivo”, como diz Artaud”.

Quando as afetividades são desenhadas e reveladas dentro do espetáculo, somos pegos por instantes.

É preciso assumir a vulnerabilidade como potência criadora. A vulnerabilidade de estar numa relação caótica, ou no ato de ter para si memórias do que foi vivido e feriu. Vulnerabilidade e risco como as de criar um festival ou um espetáculo sem patrocinadores ou políticas culturais, por exemplo.

É no silêncio, no cantar e principalmente no não cantar de Flora que se encontra a ruína final. É no que está escondido no ator e na atriz, nos seus recantos mais secretos e demoníacos que se poderá encontrar a poesia e isso pode ser lindo.

Referência:
¹ Ferracini, Renato. A arte de interpretar como poesia corpórea do ator. Campinas, SP. Editora Unicamp, 2003.

Espetáculo "A Memória da Flor"

FICHA TÉCNICA
Producão  Geral: Teatro da Poesia
Direção: Jadir Pereira
Elenco: Louryne Simões e Jamerson Soares
Direção de Produção: Geraldo Neto e Lídia Santos
Cenografia: Louryne Simões e Jadir Pereira
Desenho de Luz: Edner Careca
Iluminação: Moab de Oliveira
Sonoplastia: Cleyton Alves
Fotografia: Jadir Pereira
Responsável Visual: John Fortunato
Preparador Vocal: Max Claudino
Violão: Daniel Maia


2 comentários:

  1. Gratidão pelo olhar atento. Vida longa ao Filé de Críticas que veio preencher um espaço que faltava no cenário da alagoano.

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    1. Nós do Coletivo Filé de Críticas agradecemos a sua leitura e comentário.
      Que cada vez mais possamos impulsionar diálogos através da arte, seja nos palcos, seja em espaços como esse.

      Queremos agradecer a vocês também pelo espetáculo, por toda a luta e resistência. Que tenha vida longa o Teatro da Poesia!

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