Aldeia Arapiraca 2019: MAMILOS, OLHARES E VOZES - Coletiva Corpatômica (AL)

Tessitura _ Felipe Benicio*

     Mamilos, da Coletiva Corpatômica (AL), foi o espetáculo ao qual o público presente no Teatro Hermeto Pascoal assistiu no segundo dia da mostra Aldeia Arapiraca. Mas eu também poderia dizer que Mamilos foi um experimento social, realizado pelas artistas da Corpatômica, ao qual, nós, o público, fomos submetidos/as. Ou ainda que Mamilos foi uma experiência artística coletiva construída pelas artistas e pelo público. 

       Mas Mamilos foi tudo isso e nada disso.  

     Partindo de inquietações das integrantes da Corpatômica no que se refere às pressões sociais marcadamente machistas de controle sobre o corpo feminino, Mamilos ocupa um lugar de hibridez entre a performance e a dança, e sua dramaturgia é uma incursão profunda no universo do poético e do simbólico. 



     O poético, em oposição ao prosaico, é aquilo que nos tira da nossa zona de conforto, que nos desautomatiza, que nos obriga a lançar um olhar renovado às coisas mais cotidianas. No espetáculo da Corpatômica, isso já está presente desde o momento em que entramos no teatro, uma vez que todo o público fica no palco, ou seja, é deslocado de seu local habitual de contemplação; e, no palco, as cadeiras estão dispostas de maneira não linear, criando um pequeno labirinto no centro do espaço cênico. 

     Uma vez em cena, sentadas em meio às pessoas, seria quase impossível distinguir as integrantes da Corpatômica da plateia. Então, um blecaute. Quando a luz inunda o palco novamente, as três artistas estão vestindo apenas shorts vermelhos e nada mais. E ali estão os “mamilos” do título. 

     Creio ser possível dividir o espetáculo em três momentos: no início, as performers ficam sentadas e observam a plateia, olhando, fixamente, uma pessoa por vez. No segundo momento, em que predominam as ações dos corpos, elas, primeiramente, correm pelo espaço; depois, performam três solos simultâneos. Por fim, cada uma delas pede para um homem da plateia “molhá-las”, entregando a eles garrafas de vidro que contêm um líquido vermelho. 

     A sequência inicial de Mamilos é de uma quase inércia: sentadas, os seios à mostra, as três mulheres em cena apenas observam as pessoas, numa cena em que o tempo é bastante dilatado, fazendo nascer uma rede de olhares cruzados, como uma grande teia invisível na qual eu, embora fosse a aranha, me via mosca. Embora as performers estivessem sentadas de maneira bastante confortável, parecendo até, em alguns momentos, como se posassem para um retrato de John William, eu via no olhar delas um ar de desafio, como se fosse uma espécie de vingança antiescopofílica: aqui estão nossos corpos, à mostra, mas somos nós quem observamos vocês. Não que essa minha leitura tenha caído por terra, mas, posteriormente, ainda naquela noite, eu veria a mesma cena com os olhos de outra pessoa. 

     Os dois últimos momentos são aqueles em que mais predomina o simbólico. A dança contemporânea, liberta das amarras da representação e da narrativa, enveredou por uma perspectiva de arte não mimética, em que os movimentos do corpo não são tributários de um conteúdo que se encontra fora do universo particular de cada obra, nem precisam ser orquestrados de maneira a contar uma história. Em muitos casos, os movimentos dos corpos, por si, nada dizem, adquirindo sentido apenas dentro (e a partir) do microcosmo criado pela obra.  


     No segundo momento de Mamilos, embora cada uma das mulheres em cena construa um solo a partir de movimentos distintos (ou seja, na contramão de uma coreografia), esses três segmentos simultâneos gravitam em torno de alguns elementos em comum: é como se uma força aprisionasse os corpos delas ao chão, e a tentativa de levantar-se e colocar-se sobre duas pernas é o que parece reger os movimentos. Observadas de maneira isolada, essas ações corpóreas poderiam significar muitas coisas — desde uma luta interna, consigo mesma, passando por questões de autoaceitação, até conflitos externos, seja com a sociedade ou com questões de ordem metafísica. 

     Mas uma obra não existe senão enquanto conjunto, e, em Mamilos, assim como na montagem cinematográfica, o plano seguinte (neste caso, o momento seguinte) é o que confere significado ao anterior. Na última parte do espetáculo, quando três homens da plateia cobrem de uma substância vermelha (que, simbolicamente, remete ao sangue) os corpos das performers em cena, é como se fosse entregue ao público a chave de leitura necessária para penetrar as aparentemente abstratas camadas que compõem a obra: o que está em jogo ali é a violência contra as mulheres, e aquela força que aprisiona os corpos ao chão de maneira tão agressiva parece ganhar um contorno mais nítido quando associada ao machismo.  


Durante o bate-papo, após a apresentação, ao compartilharmos nossa experiência enquanto plateia, sobretudo no que se refere à cena de inicial, descobrimos que homens e mulheres presentes tiveram leituras totalmente distintas a respeito do fragmento de abertura de Mamilos: o mesmo olhar que eu lera como desafiador foi interpretado como um olhar de dor por parte de algumas mulheres. E foi nesse momento que eu compreendi a dimensão do espetáculo para além do artístico — como uma espécie de experimento, que mostrava, na prática, como um mesmo dado (neste caso, uma mesma cena) pode gerar leituras distintas a depender de quem observa. 

     Como disse uma das integrantes da Coletiva: “Isto é uma denúncia, não um espetáculo”. E, nesse sentido, há que se reconhecer o grau de ousadia do grupo ao escolher como veículo para a sua denúncia uma dramaturgia que aposta em uma linguagem mais indireta, enviesada, que estará sempre exposta ao risco de soar hermética ou de ter seu sentido sequestrado por leituras descontextualizadas. Mas um aspecto positivo dessa escolha é que, ao abrir mão de um texto e até mesmo de uma trilha sonora, o grupo acaba evitando o didatismo excessivo e, por vezes, redundante de algumas produções artísticas contemporâneas que também trazem pautas marcadamente políticas para a cena.  

Por conta disso, acredito que o bate-papo após a apresentação deve ser considerado como parte do espetáculo (um quarto momento), pela sua força e importância, pois foi nesse momento em que vieram à tona inúmeras questões, relatos e leituras, ora conflitantes, ora confluentes. No entanto, fiquei profundamente curioso para saber qual seria a postura do público em relação à obra em um debate em que as artistas não fossem as primeiras a falar (o que, inevitavelmente, acaba predefinindo alguns caminhos para as indagações da plateia). Por ora, independente disso, tenho a sensação de que Mamilos foi uma experiência que continua a dilatar-se dentro de nós, como um vírus que se prolifera ou como uma semente germinando muito, muito lentamente.  

     Então, eu poderia dizer que, às 22h, fomos embora do Teatro Hermeto Pascoal. Mas, dentro de nós, Mamilos ainda não acabou. 

* Felipe Benicio é poeta, ficcionista e doutorando em Estudos Literários (Ufal). É também membro dos conselhos editoriais da Revista Fantástika 451 (SP) e da revista do Coletivo Volante de Teatro, #Textão (AL).

Mamilos
Coletiva Corpatômica 
Fotografias: Frederico Ishikawa


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