MIT_SP: [Crítica] Espetáculo BURGERZ

Desencaixando os  Olhares
Por Lili Lucca

   Em quantas caixas somos ensinadas a entrar desde o primeiro dia de vida? Caixas essas que são desde o nome, roupas, maneiras, afetividades. Todas essas caixas e moldes são postos para que obedecêssemos uma forma de ser. Nessas caixas cabem objetos, utensílios, comidas e hambúrgueres.

   Burgerz, foi o espetáculo de encerramento da 7ª.MITsp, uma obra que tem a potência de nos transformar o olhar sobre corpos/corpas. Travis Alabanza, parte de sua própria narrativa de vida e escracha a violência que sofre todo dia. Em plena luz do dia, ile* foi agredide na rua, e foi lhe arremessado um hambúrguer contra seu corpo. Como ile nos conta: era um lugar que tinham umas 100 pessoas, ile estava passando e como de costume sentia alguns olhares. Em mais um passo que deu, gritos de ofensa e um hambúrguer foi arremessado contra ile.

   Pausa.

“Todos me olhavam como vocês agora. E ninguém fez nada. “

   Silêncio.

   Um silêncio, mais um silêncio que fazemos diariamente na rua, a violência que outres sofrem não nos afeta. Não dói. Naquele exato momento, espero que tenhamos mudado nossa visão aos corpos ao nosso redor.



   O solo de Travis, nos apresenta uma dramaturgia interativa, enquanto desencaixa todos seus elementos de cena que viram uma cozinha, nos convida todes para construir um hambúrguer e a desencaixar nossa concepção patriarcal sobre os corpos de outres. Durante seu solo ile, relata o horror da violência que seu corpo e de outres trans vem sofrendo ao longo de 2000 anos de privilégios cis-gêneros. Travis, quando expõe a violência que sofreu, questiona qual de nós precisou de ajuda ou precisou reconhecer que precisava de ajuda apenas para ser quem sempre quis ser.  E interroga o público:

Travis:  - O que veio primeiro o gênero ou a violência?

   Então chama da plateia um homem para que lhe ajude a fazer um hambúrguer. Porém é necessário que seja um homem branco, cis- hétero. A busca de Travis por esse diálogo em cena, é algo que emana a urgência social. Quem de nós compreende de fato a agressividade da construção do pensamento social de homens brancos cis-hétero? E como isso transforma em “lugar comum” o abuso que se faz contra outros corpos, que não se encaixam no padrão cis-hétero. Digo aqui urgência social, pois esse “comportamento” é hoje um dos atos que mais matam pessoas trans no mundo. Sua estimativa de vida é de 35 anos de idade. 



   Quando Travis, encara seu maior opressor, ele procura pela sua dramaturgia transgredir toda uma construção histórica arraigada em nosso olhar, em nossos discursos, em nosso modo de vida. Ile exibe para aquele homem enquanto cozinha com ele, toda a violência que seu corpo é ferido diariamente, é pedagógico quando fala sobre as pluralidades. De formas irônicas e direta, Travis, indaga sobre como é ser livre para um  homem branco cis - hétero, como é  ser aceito, sem precisar mudar quem é:

          Travis: -  Como você se sente sendo homem?- pergunta ile ao seu ajudante de cena.

   Silêncio.

   Novamente. 

   Não existe essa questão. Os homens brancos e héteros nunca precisaram se questionar, sobre como é ser homem. A caixa já veio pronta para que seu corpo, vontades couberam nela direitinho. Porque questionar?

   Nesse bate-papo franco, a resposta demora. Aquele homem simplesmente vai achando as palavras e tentando dizer que não existe essa dificuldade, está posto na cultura branca patriarcal a qual aceitação não é uma dificuldade. A liberdade do grupo hegemônico não depende da nossa liberdade, mas só serão livres quando nós formos, assim adverte Travis.

   Enquanto vai juntamente com esse homem cozinhando o hambúrguer, Travis passa a descortinar da nossa retina todo o preconceito que corpos que não se encaixam em um padrão são colocados diariamente. É como se os alimentos que compõem esse hambúrguer trouxessem para sua fala o paladar das ataques que sempre sofreu. Nessa edificação nos mostra que todes ali tem todo dia a oportunidade de fazer algo. E ninguém faz nada. E como se estivéssemos em um aprisionamento social onde, ou todos entram nas caixas, ou fora da caixa estarão todes reféns de um barbarismo social, que só atinge a corpos/corpas trans.

   A cada documento de vida que ile relata suas vivências de um corpo trans e preto, ile nos coloca de maneira potente, poética e libertárie que, o que deseja é que todes presentes ali saibam a beleza que é flutuar e ser livre. É por isso que ile luta, que ile diz,  questiona e enfrenta.

   Se formos falar de racismo quem ficará confortável aqui? Ninguém. Um país colonizado e padronizado pelo pensamento do homem branco cis hétero e cristão, não percebe que seu poder e liberdade nunca formam conquistas. Foram apenas opressão e destroços de outros poves, esses sim livres e de lutas.

   Desencaixar nosso olhar, sentir o peso do hambúrguer como ataque há um corpo. Ile propoe um desafio a uma mulher que lhe olha com compaixão, como tantas o fazem, mas antes do desafio ile a diz:

"Vamos fazer um juramento, vamos ser unides para sempre, e livrar a todes do aprisionamento de não conseguir ser livre."

   O desafio é: Você jogue esse hambúrguer contra mim agora??!! Com a negação da ação, Travis, joga contra o armário da cozinha o hambúrguer. O ato de assolar  é luta contínua para acabar com o preconceito e brutalidade contra esses corpos/corpas.

   A imagem do hambúrguer revela a má digestão diária de nosso comportamento transfóbico e de silenciamento e negação desses corpos/corpas.

   Um corpo trans, não binário, gay não quer a igualdade com o corpo cis hétero, ele quer apenas sua liberdade respeitada para poder flutuar. São seres humanos plurais e não singulares, porém livres e libertários, cheios de poesia e vida. Todos os corpos/corpas são naturais. 

...

*Os pronomes não binários “ile(s)” (em inglês “they”) substituem os pronomes pessoais “ela(s)” ou “ele(s)”. São termos que não demarcam o gênero, já que pessoas não binárias não se identificam como femininas ou masculinas.


Assista ao teaser clicando AQUI!

FICHA TÉCNICA:
CRIAÇÃO E PERFORMANCE: Travis Alabanza
DIREÇÃO: Sam Curtis Lindsay
DESIGN DE CENÁRIO E FIGURINO: Soutra Gilmour
DESIGNER ASSOCIADA: Isabella van Braeckel
DESIGN DE LUZ: Lee Curran & Lauren Woodhead
DESIGN DE SOM: XANA
MOVIMENTO: Nando Messias
FOTO 1: Elise Rose.
FOTO 2: Nereu Jr.



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