MIT_SP: [Crítica] Espetáculo Gota D'Água {PRETA}

Gota d’Água {PRETA} = é um pote até aqui de mágoa/dor/sofrimento

                                           
Por LILI LUCCA


Ao ver dois corpos pelo chão, o que vemos nós?

Ao ver dois corpos negros de crianças pelo chão o que vemos nós?

Sobre a bandeira da nação restos de gente negra morta. A quantidade é imensa temo ao arriscar um número, e temo mais ainda em pesquisar sobre isso.

TÁ TUDO ERRADO.

NÃO TÁ CERTO.

   A dramaturgia clássica de Chico Buarque e Paulo Pontes, é apresentada na 7ª. Edição da MIT- SP, nos trazendo uma grandiosa obra e assim alertas pela arte. Um espetáculo. 
“O espetáculo é a categoria universal sob as espécies pela qual o mundo é visto.” Barthes.(1975:179)¹
   E o mundo que nos foi apresentado através desse espetáculo é cheio de música, ancestralidade negra e rituais. Abarrotado de gentes brasileiras, gentes que vivem nas vielas, que sustentam a cidade, que movem a nação. Gentes que para muitos, lhes falta classe. Todas as classes, pois uma classe abastada sempre lhe proferiu um lugar abaixo, mesmo hoje quando dança seu samba tombado como bem maior dessa cultura. Samba esse que embala a história, junto com Rap dos Racionais que diz a verdade e complementa a dramaturgia.



   Todo enredo da peça é ao redor da história da Joana e Jasão, personagens de uma vila, comunidade, grota, senzala. Um lugar sem perspectiva de vida. A história da mulher traída, da mulher que vinga, é conhecida por muitos. A Medéia dos trópicos. O que move Joana é a ferida, o que move o mundo é o capital, como isso afeta a vida daqueles que tem sua breve esperança esmagada diariamente? Como isso muda suas relações? Será que percebemos?

   Jasão, casado com Joana. Dois filhos. Artista. Anos e anos lutando para vencer. Emplaca um sucesso e a fama o leva a lugares. A esperança desponta novamente. E ele escolhe mudar de vida, a começar pela esposa. Um sambista que vê uma nova possibilidade de história.



"Sem condições e perspectivas de melhoria, alguns vêem, no exemplo do sambista cujas canções são tocadas no rádio, a ilusória via do sucesso como possibilidade de ascensão. A gota d’água do espetáculo é o samba de Jasão; é também a condição de Joana, mulher apaixonada que, no seu abandono, é capaz de atitudes extremas; mas é também, e sobretudo, a condição de um povo sem casa, sem chances, sem a voz que lhe reste" (BARROS, 2005, s.p.)²
  O samba Gota d’água, e a revelação do mau caratismo do homem, e é também a tentativa de justificar a única da saída da miséria e da luta diária sempre sem recompensa. Todo o desenrolar dessa história se passa sobre a bandeira da nação brasileira, no palco elementos de cena pontuais, como cadeiras demarcando a cena e representando status quo. Uma banda ao fundo, uma alusão ao boteco, caixotes pelo espaço, atabaques, batuques, e muitos tambores. Tudo bem microfonado, essa voz precisa e deve ecoar cada vez mais alto. A beleza do cenário é preenchida por elementos diversos da cultura afro e toda sua religiosidade. Todos os Orixás e guias embelezavam o cenário.

   Creonte e sua filha Alma, são o retrato claro de uma elite ignorante brasileira atual, de Romero Britto a preconceitos com religiões afro brasileiras, exibem o maior fracasso de seu povo, a estupidez fantasiada de moralismo burguês.  Exploradores, com discurso benevolente de assistência social, arruínam diariamente a vida de quem é movido pela coragem e pela labuta diária.  A manutenção das misérias desse país é feita por essa gente. E eles destroem tudo fantasiados de economia, de juros, mas o que eles mais fazem é tirar do povo brasileiro a dignidade que nunca conheceram.

   Jasão, homem forte, sonhador, compositor. Criado sobre a cultura patriarcal e machista, aprende com Joana o que é o amor, aprende o que é ser um homem.  Ele voa, malandro como todo bom sambista brasileiro.  Joana, deusa do amor e da força, dedica sua vida a esse amor, a esse homem.  No enredo maior que essa traição, maior que a loucura escrita e colocada para Joana, é com certeza a cultura que nos foi posta e vinha sendo mantida a anos.  A cultura que a mulher tem prazo determinado para ser amada. Mas nós despertamos, mais que isso, nós mulheres sempre nos apoiamos de alguma forma. O que nunca aceitamos ou aceitaremos é o prazo certo para nosso CORPO ser amado. Então homens, meninos, moleques.

  “ Esse seu amor com prazo fixo não vale nada”

   E se tentarem nos enlouquecer, saibam que a Medéia foi criada por um homem, e elas sempre surgem através de machistas. Carreguem essa culpa. Culpa que não carrega e não têm tempo os vizinhos da vila que Joana mora, iludidos pela promessa do perdão da dívida já inexistente são levados ao trabalho por Creonte. Dono da vila, das prestações e de “suas liberdades”. É ele quem paga o salário e cobra a prestação. Esquecem o ódio necessário muitas vezes para que acordemos. Despertar dessa pouca alegria de vida.  Despertar para uma luta que nos dê maiores motivos para acordar todos os dias.

   Quantos são os conjuntos habitacionais de cada cidade desse país, e quantas são as mansões? Quantas horas de trabalho e de lazer tem cada habitante desses lares, sejam eles moradores de mansões ou casebres?

   Quantos têm as necessidades básicas e os direitos garantidos nesse país?

   Perguntas fáceis de responder. Cor, difícil de ser igualada. Classes que se mantêm no privilégio. Gota d’Água {PRETA} revela mais que um caso de amor em tragédia. Revela uma tragédia social e retrata um país escravista, escravocrata. Que todos nós em nossos lares assistimos na lógica de achar isso normal. É Creonte o dono do capital, é Jasão o sonho de ascensão social, é Joana e sua vila a luta pelos seus direitos, por igualdade e dignidade. Uma classe Possuidora, um coletivo que nada possui.  É assim:

 No nosso mundo, isso significa que: a classe possuidora, a burguesia, sempre quererá mais lucro, mais concentração de dinheiro nas próprias mãos; enquanto isso, a classe despossuída sempre procurará melhorar a própria situação de vida, sempre buscando que os recursos disponíveis sejam bem distribuídos para melhorar a vida em termos gerais, coletivos, não privados.³
  Em Gota d’água PRETA a luta de classes, é o grande enredo, é o grito que ecoa mais forte em todos os personagens. É o Candomblé e suas divindades que costuram esse enredo com seus rituais. Jasão, que quer seu bem privado garantido, se esforça para conseguir migalhas de esperança para sua comunidade, pessoas que lutam diariamente, mas precisam todo dia de uma nova oportunidade para conseguir pagar, comer e viver. Povo que se enfraquece na luta, mas luta todo dia para sobreviver.  Nós que ficamos por horas no teatro, esperando a morte dos filhos de Joana, esperando a solução para os moradores daquela vila lúdica. Assistimos Creonte em sua alegoria quebrar a quarta parede e nos chamar de porcos, preguiçosos e imundos. Não era uma cena, era um diálogo que nos cala e nos é dito diariamente. Voltamos para casa como? 



   A consciência está desperta, ou estamos com nossas riquezas garantidas, como a viagem pra Disney ou para o nordeste? O dólar tá alto né?!

   Portanto, a consciência de classes é a tomada de consciência das contradições insuportáveis em nosso mundo e, assim, a tomada de responsabilidade e compromisso para mudar este mesmo mundo.4
   Assim é necessário que despertemos enquanto nação, é necessário, mudarmos a história, é necessário que as classes tomem consciência de seu compromisso com o mundo. Ainda temos milhares de Joanas e suas manas na luta, que elas consigam acordar a responsabilidade da luta aos seus Jasões, e que todas as vilas, comunidades e grotas desse país façam revolução. A força, a beleza, a coragem daqueles corpos negros no palco nos enfatizam e afirmam que todo dia esse país é feito por esses braços fortes. Um elenco com atores e atrizes negros e negras, que subvertem as expectativas da maioria branca sobre o palco e as telas em seu ofício, e que ocupam seu lugar por direito. Um elenco que maturando seu labor, aperfeiçoará cada vez mais seu trabalho. Com corpos negros, se conta essa Gota d’água e vale lembrar que esses corpos e de seus antepassados que construíram esse país.

Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água
 Pode ser a gota d’água

   No copo, a borda já transbordou a Gota d’água PRETA, já cansou de esborrar, de sacrificar o suor e o sangue por um país. Negros são 75% entre os mais pobres; brancos, 70% entre os mais ricos... A questão é: o que você está fazendo ativamente para combater o racismo estrutural desse país?  


Assista ao teaser clicando AQUI!

FICHA TÉCNICA:

DRAMATURGIA: Chico Buarque e Paulo Pontes
DIREÇÃO-GERAL, CONCEPÇÃO E IDEALIZAÇÃO: Jé Oliveira
ELENCO: Aysha Nascimento, Dani Nega, Ícaro Rodrigues, Jé Oliveira, Juçara Marçal, Marina Esteves, Mateus Sousa, Rodrigo Mercadante e Salloma Salomão
BANDA: DJ Tano (pickups e bases ), Fernando Alabê (percussão), Gabriel Longhitano (guitarra, violão e cavaco) e Suka Figueiredo (sax)
ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO: e Figurino Éder Lopes
DIREÇÃO MUSICAL: Jé Oliveira e William Guedes
PREPARAÇÃO VOCAL: William Guedes
CONCEPÇÃO MUSICAL E SELEÇÃO DE CITAÇÕES: Jé Oliveira
CENÁRIO: Julio Dojcsar
MONTADOR DE CENÁRIO: Jé Oliveira
ARTISTA GRÁFICO: Murilo Thaveira
LIGHT DESIGN: Camilo Bonfanti
OPERAÇÃO DE LUZ: Camilo Bonfanti e Lucas Gonçalves
TÉCNICO DE SOM E OPERAÇÃO: Alex Oliveira
ASSESSORIA DE IMPRENSA: Elcio Silva
COORDENAÇÃO DE ESTUDOS TEÓRICOS: Juçara Marçal, Jé Oliveira, Salloma Salomão e Walter Garcia
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Janaína Grasso
PRODUÇÃO GERAL: Jé Oliveira
VÍDEO E EDIÇÃO: Marília Lino
REALIZAÇÃO: Itaú Cultural
PRODUÇÃO: Gira pro Sol Produções

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