MIT_SP: [Crítica] "O Riso que me Sufoca" do Espetáculo "Tenha Cuidado".

   Por LILI LUCCA

   Sobre um palco quase vazio, alguns varais de lenços com cores vivas e cubos com peças de roupas organizadas por seus matizes de forma harmônica. É tudo simples e bonito.  E também sobre esse mesmo palco surge uma mulher, Mallika Taneja. Uma artista indiana, uma mulher que em seu discurso traz o que toda e qualquer mulher é ensinada ao nascer: Tenha Cuidado!

   O espetáculo é um ato de revolta, ao estupro coletivo que mulheres sofreram na Índia.

   Na superfície cores e tecidos. Black out. Uma mulher nua. Um corpo, apenas ele, sem roupas ou disfarces. Um corpo de uma mulher que nos enxerga, nos vê, nos encara. Um corpo com toda sua fragilidade física e toda sua força feminina. Esse corpo enfrenta nosso olhar. Esse corpo se apresenta como um corpo tão-somente, e interroga nosso ver a todo instante.


   Quantos olhares são colocados em um corpo feminino diariamente?

   Quantas falações carregam essas visões?

   Quanto desejo e juízo é carregado por corpos femininos?

   Toda menina ao brotar no mundo, é colocada em cátedras. E desde muito pequena ouve que seu comportamento deve ser cuidadoso. Deve ser diferente dos meninos. Como nos diz Mallika: “tenha responsabilidade”. Ao sentar, ao falar, a olhar, sua responsabilidade é um dever seu para com todos a sua volta. Pai, mãe, avô, irmão, vizinho e sociedade.

   Ao vestir um short: “Não ande de ônibus!” Ao cobrir seus seios: “Não encare os homens!” Ao vestir uma saia: “Não saia sozinha de casa”. Ao vestir um vestido: “Fale baixo”. Ao vestir uma calça: “Feche as pernas”. “Tenha cuidado, é sua responsabilidade!”.

   Mallika, nos descreve de forma irônica e direta como a exigência pela responsabilidade da mulher passa a existir de maneiras mais corriqueiras possíveis, existe sempre a justificativa perspicaz de uma verdade posta socialmente. Uma atmosfera social. Um ambiente que deve ser mantido pelas mulheres, é de sua responsabilidade saber se comportar. 

   "Não saia a noite!" Porque é perigoso? A noite foi estabelecida apenas para homens. "O que quer uma mulher a noite na rua?" . "Tenha cuidado. Seja responsável."

   A dramaturgia, franca e atemporal nos diz sobre mulheres em lugares comuns no cotidiano feminino. E a caça e a procura pela paz dos nossos corpos de fêmeas.  Mallika, provoca o público diretamente, quase diálogo direto. São com questões óbvias, como se não tiver companhia a sair a noite. Não saia! Não é assim? (Falem, vocês podem falar!)


   Na sua ação demasiada de colocar roupas existe um grito e uma luta por liberdade que a mulher nunca conquistou, existe uma vontade incessante de mostrar que não se trata do que veste ou não uma mulher. Seu corpo é ALVO nessa sociedade. Ao colocar, recolocar variadas peças de roupas até sumirem do palco todas as cores, ela oculta totalmente seu corpo. E é nesse sufocamento do corpo da mulher, que reside toda ação machista da nossa sociedade. Ação essa que está no discurso de todos nós e que é urgente percebermos. URGENTE!

   Tive aperto no peito, ao ver o corpo de Mallika totalmente invisível sobre o amontoado de roupas, uma angústia dolorosa ao ouvir o riso que vinha da plateia. O sufocamento de uma mulher, gera o riso?

   A agonia crescente durante o espetáculo e a busca por compreender que não é o “tenha cuidado”, não é a roupa, não é a atmosfera que causam essa agonia. É o Corpo da mulher feito em alvo e o ser mulher alvejado cotidianamente por mais que todas nós tenhamos cuidado. 

Com o corpo todo coberto dos pés à cabeça.

Com a voz baixa e olhando para o chão.

Com total responsabilidade de suas ações.

   Um dia você vai ter que correr, mulher!

   Um dia você vai ter que dizer: Não foi culpa minha!

   Por isso: TENHA CUIDADO!



   Na Índia de Mallika, os crimes reportados contra mulheres cresceram 83% no país. A média de estupros é de um a cada 15 minutos.

   No Brasil, são 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma a cada 7 horas, em média.
Mallika Taneja desafia os costumes que oprimem a mulher indiana, mas quando ela o faz é por todas nós,  todas nós mulheres do mundo e a precisão de seu ato está no potencial que anuncia essas atrocidades. Estamos todas com ela, para desafogar mulheres!
                              
   Será que estamos dessensibilizados pelo sofrimento alheio? Afetem- se. Hoje, dia 8 de março é  um dia para lembrar a todos e todas, que mulheres no mundo morrem diariamente pelo simples fato de “NÃO TEREM CUIDADO!”

   Tenha Cuidado você! A mulher ao seu lado viva é uma vítima em potencial.

   Ao final do espetáculo e com ainda o riso que vinha da plateia ressoando em meu ouvido, me perguntei:

   Qual a graça no sufocamento dessa mulher?

...


Assista ao teaser clicando AQUI!

FICHA TÉCNICA:

CONCEPÇÃO E PERFORMANCE: Mallika Taneja
TURNÊ E PRODUÇÃO: Meghna Singh Bhadauria
DIVULGAÇÃO INTERNACIONAL: Judith Martin e Ligne Directe
Imagem 1: Tani Simberg
Imagem 2: Sissel Steyaer
Imagem 3: David Wohlschlag

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