Festal 2019: Um festival inteiro para Elza!

Tessitura _ Bruno Alves

Elza caga na rua
no Largo de Santa Cecília
não limpa a bunda
nem por isso morreu ainda
a guarda metropolitana não ousa prendê-la
não há nada no código penal
que diga que cagar em via pública é crime
se tivesse, Elza cagaria do mesmo jeito
dizem que Elza não tem juízo
os sem juízo
são imunes perante Deus e a polícia
e nem sequer sabe da existência de papel higiênico
Miró da Muribeca


   Elza, da pele negra, pouco mais de trinta anos, com aparência de mais de quarenta pelo desprezo da vida. 

   Elza é moradora da Praça Sinimbú, junto com muitas Marias, Josés e crianças sem infância. Ela conhece aquela praça, porque é sua morada. Sabe de quem passa todos os dias, sabe das coisas que acontecem quando a noite cai. Sabe dos estudantes de arte que atravessam sua casa todos os dias em busca de conhecimento. Ela sabe, talvez poucos saibam dela.

   Há uma distância histórica que separa Elza daquele Espaço Cultural. Elza poderia ser parte dele também, mas a rua lhe coube como casa e lugar de acolhimento.

   Elza talvez não soubesse, não lhe foi pedida autorização para que na sua sala acontecesse um festival, o 5º Festival de Artes Cênicas de Alagoas - Festal, que pelo segundo ano ocupa aquele mesmo espaço que ela.

   Mas Elza fez questão de receber o público e abrir o festival.

   Era o dia 17 de outubro às 17h, quando a Orquestra Pedagógica da UFAL, conduzida por Miran Abs, uma maestrina negra como Elza, começou a reger o repertório daquela tarde em plena praça pública. Não demorou para que Elza fosse a mais próxima do palco e de baixo começasse a reger junto com Miran aquela orquestra universitária.


   Certamente um cena engraçada, poderíamos pensar de primeira, ao ver uma mulher com roupas sujas e embriagada reger uma orquestra inteira, mas foi no meio dessa graça que a atriz/palhaça Wanderlândia Melo me olhou e perguntou-me:

“O que foi que impediu Elza de estar lá naquele palco?”.

   Sem espaços para risos de escárnio e com essa reflexão estava aberto o 5º Festal na Praça Sinimbú.

   Um espaço histórico de ocupação de artistas em Maceió, que em outras décadas teve por ali a instalação de um circo que serviu de escola para muitos artistas que conhecemos e admiramos hoje.

   É nesse espaço também que se encontram os cursos de formação em licenciatura de Dança, Música e Teatro, além da crescente expansão da Escola Técnica de Artes, um espaço de referência em formação para muitos artistas. 

   Muitos artistas da minha geração tiveram seu caminho trilhado dentro daquele espaço. É um lugar, para muitos de nós, de lembranças de um começo de caminhada e até hoje continua sendo um espaço de abertura e acolhimento de muitos que querem seguir a carreira artística e/ou docente.

   Pelo segundo ano o Festal mira esse espaço como um lugar em potencial para o diálogo com a cidade e os artistas que por lá se formam. 

   Pensando nesse espaço de formação a curadoria do Festal escolheu como oficina a proposta do Coletivo Filé de Críticas e sua “Tessituras Cênicas” para ampliar o pensamento crítico dos estudantes em formação e dos artistas veteranos que por lá também circulam. Foram quatro dias de oficina com um espaço de intensa troca entre participantes e em alguns momentos com artistas que por lá apresentaram seus trabalhos.

   Vale destacar que durante os dias 17, 18 e 19 o Festal dedicou uma intensa programação gratuita para a população alagoana, com atividades nas salas do Espaço Cultural, um palco no meio da Praça Sinimbú e a participação da Feirinha Empoderada. Com isso o Festal propôs para a Praça Sinimbú um espaço de convivência, no qual as pessoas podiam ficar na praça, se relacionar com ela e apreciar o espaço público como espaço de troca, encontro e apreciação artística.

   As/os estudantes da Escola Técnica de Artes e dos cursos de Licenciatura foram convidados a compor a programação com os trabalhos que realizam ao longo do curso e da conclusão de disciplinas. Durante os três dias tivemos uma programação extensa das atividades dos estudantes. Linguagens distintas, temas que iam da autoaceitação, ao empoderamento e pertencimento a um grupo e principalmente as questões políticas tão presentes e perturbadoras do nosso tempo. Não houve muito tempo para se discutir as obras apresentadas. A programação extensa quase não dava brechas para um bate-papo sobre o que era apresentado, mas isso não foi um problema, pois o Festal por lá celebrava a resistência e o surgimento dessas criações que precisam cada vez mais romper com os espaços da academia e se aproximar de outros públicos.

   No sábado 19 de outubro, último dia de Festal, tivemos além da programação dos estudantes/artistas, a apresentação de dois espetáculos selecionados pelo edital do Festal 2019.


   O primeiro espetáculo foi “Geni - Não Recomendada”. Uma narrativa intensa e visceral que diante de sua força e entrega nos causou sensações das mais diversas. Vimos crescer a narrativa e os artistas arriscarem mais em sua musicalidade e atuação. Causa-nos incômodo o discurso do opressor que de tão realista chega a sufocar-nos com tamanha agressividade. Como não deixar vencer essa narrativa opressora? Como encontrar o tom de nuances na narrativa em que tenhamos momentos de alívio? Precisamos de alívio diante das questões levantadas? São questões que levanto diante da potência do que foi apresentado.


   O segundo espetáculo “Sentido Contrário” de Avaristo Martins é uma obra difícil de assistir. Por ter visto Avaristo em outros trabalhos durante sua passagem pela Escola Técnica de Artes, reconheço sua capacidade enquanto ator de se entregar e realizar um bom trabalho, mas em “Sentido Contrário” não é possível estabelecer uma relação de empatia com o personagem e com a obra apresentada, pois ele entra em uma viagem introspectiva ao ponto de nos anular como plateia. Nem mesmo quando este chega a convidar uma pessoa da plateia para compor a sua cena acontece uma troca, pois quando essa pessoa lá chega, ele a ignora, não sabemos o motivo que o levou a chamá-la no palco e vemos apenas uma pessoa sendo abandonada em um palco sem estabelecer relação nenhuma com aquela narrativa. Mas isso vai além desse momento, pois a dramaturgia não nos aproxima, não nos dá um sentido, ficamos contrários aquela história que não entendemos, pois até mesmo o tom de voz baixo nos distancia do que ali acontece. O ator é quem escreve e dirige o espetáculo,  o que não é um problema, pois muitos atores e atrizes se dirigem e escrevem suas histórias, mas talvez a falta de um outro olhar sobre aquilo que ele propõe tenha levado Avaristo a caminhar cada vez mais em uma viagem introspectiva que não se abre e não nos convida para o acontecimento teatral.

   Todas as noites o Festal encerrava sua programação com um show convidado em seu palco na praça. Era momento de todas as pessoas presentes celebrarem mais um dia de festival, mais um ano em que nos reuniamos para celebrar as nossas artes cênicas. Lembro que em 2018 esse mesmo espaço cênico deu lugar a uma assembleia dos moradores de rua, os quais discutiam com pessoas do Consultório na Rua, melhores condições para as suas existências.

   É no show, no teatro, na dança, na performance e no circo no meio da praça que acontece o ato político do Festal. Artistas, moradores de outros bairros e moradores da praça se juntam para celebrar aquele momento.

   Diante de um momento em que as verbas e os ataques para a cultura se intensificam, o Festal promove uma ação de dignidade, democratização, humanização e descentralização dos fazeres em artes cênicas. E é preciso ressaltar a palavra ação. O Festal não segue como reação aos ataques, é claro que ele nasce muito mais como uma resposta a ausência de políticas públicas e de um festival que nos represente em Alagoas, mas para além desses motivos que nos aproximam ele é uma ação que se solidifica a cada ano, mostrando alternativas, possibilidades de uso do espaço público, de democratização do acesso às artes, de aproximação entre artistas, entre públicos diversos também e a descentralização dos espaços convencionais.

   O Festal é da Praça Sinimbú, como é do Vergel, do Bom Parto, da Cidade Sorriso, da Garça Torta e de todos os bairros de Maceió. É também desse estado, porque nasceu nele e é feito por artistas que nele habitam. Assim como foi para esses espaços, poderá se ampliar para outras cidades e espaços, poderá por que é feito por artistas que acreditam na coletividade e na aproximação com as pessoas, pois do contrário, sem essa aproximação, não existiriam essas linguagens.

   O Festal foi um festival inteiro para Elza que pode conhecer artistas, que pode ser artista por alguns minutos também, enquanto regia a orquestra universitária. Foi para Elza, porque esteve no lugar em que ela mora, porque dividiu com ela o mesmo espaço, porque sabem que em outro tempo e forma de construir a história, Elza não seria uma moradora de rua, mas uma artista que teve a oportunidade de estar próximo da arte desde cedo, como todos deveriam. 


Foto 1_ Benita Rodrigues
Foto 2 e 3 _ Xanda Souza

Nenhum comentário:

Postar um comentário

“Estendam ás mãos já! - Narrativas Individuais para Construções Coletivas”

    Tessitura_ Lili Lucca            Ainda andamos de mãos dadas Cacau, aqueles que na cena construíram espaços de criação de arte ao seu la...